DISTÚRBIOS RELACIONADOS À MÁ ALIMENTAÇÃO

Prof. Fabiano Moraes Miguel

Nesta unidade temática, você vai aprender

Introdução

Até aqui, estudamos tudo o que compreende uma boa alimentação. No entanto, o ato de comer nem sempre é algo corriqueiro e de fácil compreensão.

Algumas pessoas sofrem bastante quando o assunto é comida, seja pela falta de alimentos ou necessidade de restrição calórica, seja por questões mais complexas em que o aspecto emocional está envolvido. Diante disso, veremos alguns dos principais transtornos relacionados à alimentação e o quão complexa é a nossa relação com os alimentos.

TRANSTORNOS ALIMENTARES

O comportamento alimentar envolve um conjunto de situações associadas ao alimento que englobam desde a escolha até a sua ingestão, assim como tudo que está a ele relacionado. Nesse sentido, o comportamento alimentar faz parte de um repertório de atividades que garantem a sobrevivência humana.

Já os transtornos alimentares são doenças psiquiátricas que, segundo o Manual de Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde – CID 10, se caracterizam por padrões de comportamento relacionados tanto ao consumo como à absorção dos alimentos.

Os transtornos alimentares são considerados multifatoriais e se manifestam através de comportamentos distorcidos com a alimentação, inquietude excessiva com o peso e modelo corporal, sobrepeso e obesidade. Além desses fatores, incidem a cultura familiar, aspectos da personalidade da pessoa e padrões sociais vigentes na sociedade. 

Fique de olho!

De acordo com o CID 10, os principais transtornos alimentares são a anorexia e a bulimia. Entretanto, é possível descrever outros tipos de transtornos como a hiperfagia e a vigorexia. Alguns desses transtornos iniciam ainda na infância e adolescência.

Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência

Os transtornos alimentares quando surgem na infância e na adolescência se manifestam por meio de uma dificuldade em se alimentar adequadamente levando a uma perda ou uma falha em ganhar peso de forma satisfatória, ocasionando dificuldades para o seu desenvolvimento. Essa dificuldade não pode ser melhor explicada por uma condição clínica geral, a problemas psiquiátricos ou a falta de alimentos.

Os transtornos alimentares mais comuns na infância e na adolescência são a pica e o transtorno de ruminação. A primeira, denominada pica ou alotriofagia, pode ser considerada a ingestão persistente de substâncias não nutritivas, inadequadas para a alimentação dos seres humanos. O nome pica provém de uma espécie de pássaro que possui por hábito comer absolutamente tudo que enxerga pela frente. Esse transtorno costuma ser diagnosticado na primeira infância e pode ser encontrado em mulheres grávidas. O padrão alimentar necessita ser recorrente há mais de um mês. 

Fique de olho!

As substâncias mais frequentemente consumidas por pessoas acometidas por esse transtorno são: terra, barro, cabelo, alimentos crus, cinzas, fezes de animais, esmalte, palito de dente, gelo, entre outros.

Segundo Kachani e Cordás (2009), o transtorno de pica constitui-se um desafio para os profissionais que se deparam com seus sintomas devido a sua etiologia possuir um amplo espectro de fatores que podem ser: sociais, culturais, psicológicos, biológicos, comportamentais ou ambientais. Entretanto, atrasos no desenvolvimento, retardo mental e história familiar de pica são condições comumente associadas a esse transtorno.

Outro transtorno alimentar típico que pode iniciar na infância e na adolescência é o de ruminação ou mericismo, como pode ser denominado. Os sintomas implicam em hábitos de regurgitação ou remastigação de alimentos de forma reiterada e que não são explicados por problemas gastrointestinais ou nenhuma condição médica geral. 

A ocorrência desse transtorno é comum em crianças com atraso no desenvolvimento e as principais implicações clínicas desse transtorno podem ser a desnutrição, perda de peso, alterações do equilíbrio hidroeletrolítico, desidratação e, em alguns casos, até a morte.

O tratamento desses transtornos, dada sua etiologia multideterminada, implica necessariamente a abordagem sob diversos ângulos, incluindo médico, psicológico e nutricional. A realização de acompanhamento multiprofissional é imprescindível diante da necessidade da modificação e supressão do comportamento inadequado, a atenção nutricional deve visar à redução de danos no organismo e diminuir os agravos ao desenvolvimento do infante. 

TRANSTORNOS ALIMENTARES MAIS COMUNS

Os transtornos alimentares de maior prevalência na população em geral são a anorexia, a bulimia e o transtorno de compulsão alimentar periódica. Essas disfunções apresentam alguns fatores em comum, tais como: preocupação excessiva com o estado atual ou um possível aumento de peso, busca exagerada pelo emagrecimento, alterações da imagem corporal, utilização de práticas danosas para a saúde para controle do peso, culpa ao se alimentar, entre outras.

ANOREXIA

Esta palavra possui origem grega e significa falta de apetite. Sua definição engloba, essencialmente, o medo de engordar e perturbações na imagem corporal. O quadro sintomático inicia, geralmente, na infância e adolescência, fases do desenvolvimento humano na qual a pessoa apresenta modificações significativas no seu organismo.

Fonte: Freepik. 

A anorexia é um transtorno com prevalência maior nas pessoas do sexo feminino. Conforme dados da OMS, ocorre entre 0,5 a 3,7% da população, numa proporção de um homem a cada 10 mulheres. Culturalmente, sabe-se que a mídia possui um papel importante nos fatores de risco para o desenvolvimento desse transtorno, pois fomenta a existência de um padrão de beleza feminino. Além disso, algumas profissões como bailarinas, atletas e modelos, entre outras, denotam risco aumentado para desenvolvimento desse transtorno.

Os pacientes anoréxicos demonstram preocupação excessiva com o peso que gradativamente evolui até viverem exclusivamente em função da dieta, do peso e da forma corporal, restringindo suas áreas de interesse e levando, consequentemente, ao isolamento social. O padrão alimentar vai se tornando cada vez mais secreto e ritualizado. A prática de exercícios físicos é, muitas vezes, exacerbada, chegando à exaustão com o objetivo de queimar calorias e perder peso.

No quadro abaixo, podemos verificar, de acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM V, os critérios para a avaliação desse transtorno: 

Fonte: adaptado de DSM – V (p. 338). 

A partir da análise dos critérios diagnósticos para anorexia, é possível perceber que os pacientes demonstram uma insatisfação com seu próprio corpo e passam a sentir como se estivessem acima do peso real, ocasionando uma distorção na percepção de sua própria imagem.

Em decorrência da desnutrição e de comportamentos purgativos podem surgir complicações como a anemia, alterações endócrinas, osteoporose e alterações hidroeletrolíticas que podem causar arritmias cardíacas e, em casos graves, a morte súbita. A internação hospitalar é indicada para pacientes com peso corporal abaixo de 75% do mínimo ideal para acompanhar suas condições clínicas.

Os manuais de classificação de transtornos apresentam dois tipos de anorexia: a do tipo restritivo e do tipo compulsão periódico/ purgativa. Na anorexia do tipo restritivo, a situação de perda de peso é alcançada por meio da limitação da alimentação, através de dietas, jejuns e excesso de exercícios físicos e ingerindo o mínimo de calorias possível. No segundo tipo de anorexia, a pessoa, geralmente, tende a ter familiares obesos ou possuírem histórico de peso corporal elevado e o paciente ingere grande quantidade de alimentos e, em seguida, busca sua eliminação, seja através de vômito autoinduzido ou utilizando laxantes.

Conforme estudos como de Campana, Macedo e Clemente (2019), ao comparar os dois tipos de anorexia, a do tipo restritiva é menos preocupante e apresenta melhor prognóstico quando comparada a pacientes do segundo tipo. Outro ponto apresentado nos estudos diz respeito ao elevado índice de comorbidades associadas ao transtorno alimentar da anorexia, tais como: depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, ansiedade, entre outros. 

BULIMIA

A palavra bulimia também de origem grega deriva de “bous”, que significa boi, e “limos”, que significa fome. Juntas, aludem à fome bovina. A característica central desse transtorno é a ingestão de uma quantidade exagerada de alimentos e sua purgação.

A prevalência da bulimia é de 1,1% a 4,2%, segundo a OMS. Tal como na anorexia, é um transtorno que acomete mais as pessoas do sexo feminino e, raramente, inicia antes dos 12 anos de idade.

O ciclo desse transtorno pode, inicialmente, estar relacionado à fome, mas progressivamente se instaura a compulsão alimentar-purgação que gera sentimentos de frustração, tristeza, ansiedade e solidão. Esse transtorno envolve um aspecto comportamental significativo, que seria comer uma quantidade de comida considerada exagerada se comparada ao que uma pessoa em condições normais comeria, e o componente subjetivo, que é a sensação de falta de controle sobre seu próprio comportamento, ocasionando sentimentos de culpa, autopunição e vergonha. 

Fonte: Freepik. 

Logo após a ingestão dos alimentos, o paciente com bulimia provoca o vômito, que ocorre em cerca de 90% dos casos e ocasiona o alívio do desconforto físico ocasionado pela ingestão exacerbada de alimentos e a redução do medo de ganhar peso. A frequência dos vômitos é incerta. No início, o paciente necessita de manobras para sua indução. Após a evolução da doença, não é mais necessária a estimulação.

Os pacientes bulímicos podem apresentar outras estratégias para alcançar seu objetivo, como o uso inadequado de medicamentos do tipo laxativo, diurético, tireoidiano, entre outros. Também podem lançar mão de exercícios físicos exagerados, embora eles ocasionem menor número de complicações clínicas que as manobras executadas acima.

Segundo o DSM – 5, os critérios para o diagnóstico desse transtorno alimentar incluem: 

Fonte: adaptado de DSM – 5 (p. 345). 

É possível, ainda, a partir desse referencial de diagnóstico, especificar a gravidade do quadro de sintomas em níveis que podem ser leve (1 a 3 episódios compensatórios ou purgativos por semana), moderado (4 a 7 episódios por semana), grave (8 a 13 episódios por semana) e extrema (mais de 14 episódios por semana).

As complicações clínicas decorrentes das manobras compensatórias ou purgatórias dos bulímicos são: esofagites, problemas dentários, alargamento das parótidas, alterações cardiovasculares, hipopotassemia, entre outras. 

Fique de olho!

Um dos aspectos que diferem entre pacientes bulímicos e anoréxicos refere-se ao fato que os primeiros conseguem manter o peso dentro do limiar de normalidade ou imperceptivelmente abaixo deste e, em alguns casos, podem estar acima do peso.

O terceiro transtorno alimentar mais comumente detectado é o transtorno da compulsão alimentar, que se destaca em função dos pacientes não utilizarem as medidas extremas para evitar ganho de peso como os demais grupos. A sua prevalência na população em geral é de 2%. O diferencial dos pacientes que apresentam esse transtorno e daqueles que possuem obesidade é a gravidade psicopatológica, pois não respondem aos regimes de tratamento.

Os critérios diagnósticos a partir do DSM – 5 abarcam:

Fonte: adaptado de DSM- 5 (p. 350). 

O tratamento dos transtornos alimentares deve ser realizado por equipe multiprofissional devido a sua dificuldade de evolução e complexidade. A integração entre as abordagens médica, psicológica e nutricional constitui-se a tônica da terapêutica. Além disso, é fundamental que o grupo familiar do paciente seja acompanhado e participe ativamente do processo, caso contrário, a evolução dos casos não é positiva. A abordagem farmacológica deve ser considerada, principalmente, no tratamento das comorbidades. 

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais [recurso eletrônico]: DSM-5. Tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento et al. Revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli et al. 5. ed. Dados eletrônicos. Porto Alegre: Artmed, 2014.

APPOLINÁRIO, J.C. e CLAUDINO, A.M. Transtornos Alimentares. Revista Brasileira de Psiquiatria. 2000, 28-31.

CAMPANA, H.L., MACEDO, F.L. e CLEMENTE, R.P. Anorexia e transtornos alimentares: Aspectos da vida contemporânea. Revista interciências. 2019.

CLAUDINO, A.M. e BORGES, M.B.F. Critérios diagnósticos para os transtornos alimentares: conceitos em evolução. Revista brasileira de psiquiatria. 2002, 7-12.

DO VALE, A.M.O.; ELIAS, L.R. Transtornos Alimentares: uma perspectiva analítico-comportamental. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. 2011, 52-70. 

Créditos

Coordenação e Revisão Pedagógica: Claudiane Ramos Furtado

Design Instrucional: Gabriela Rossa

Diagramação: Vinicius Ferreira

Ilustrações: Lucas Dias

Revisão ortográfica: Ane Arduim