A compreender como filtrar a informação advinda de meios digitais por meio da consciência da sua não espontaneidade e dos processos que estão produzindo informações e notícias falsas;
A entender como funciona a operacionalidade das redes digitais e seu "efeito bolha", buscando evitar o isolamento em comunidades excessivamente fechadas;
A desenvolver argumentos para enfrentar estratégias performativas de exposição que ignoram argumentos e se afirmam por meio de efeitos alheios à racionalidade mínima.
Após a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2017, as vendas do livro "1984", de George Orwell, dispararam. Segundo a agência de notícias Deutsche Welle, a demanda foi tão grande que a Editora Penguin teve que imprimir com rapidez 75 mil cópias do livro para dar conta da demanda. O livro também passou a figurar no topo dos mais vendidos na Amazon, seguido de "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley. Orwell e Huxley foram talvez os mais célebres escritores de distopias totalitárias do século XX com tais romances. Ao lado deles, Zamiátin (na obra "Nós"), Ray Bradbury ("Fahrenheit 451"), Philip K. Dick ("O Homem do Castelo Alto") e, mais tardiamente, Margaret Atwood com "O Conto da Aia", recentemente adaptado em uma bem-sucedida série televisiva, figuram como grandes escritores do gênero.
Mas o que teria gerado tal interesse?
O fato do então presidente Donald Trump insistir em afirmações falsas, sem correspondência com os dados objetivos, e sua assessora Kellyanne Conway invocar "fatos alternativos" como resposta a cobranças da imprensa sobre dados citados de modo incorreto aguçou a imaginação dos consumidores de livros sobre possíveis cenários futuristas em que o compromisso com a verdade teria caído em completo descrédito. Como sabemos, a mais célebre passagem – quase um meme – de "1984" é a 2+2=5.
Isso tem relação direta com a cultura digital. Foi a partir de uma estratégia de comunicação baseada sobretudo no Facebook que Trump conseguiu atingir uma massa de pessoas inédita até então com afirmações que em geral não passariam pelo crivo das editorias jornalísticas.
É curioso, pois alguns anos antes o evento seria considerado um avanço. Quando a Internet passou a ocupar um espaço cada vez maior na vida cotidiana dos países, a expectativa era que a comunicação se tornasse cada vez mais direta e sem mediação das tradicionais fontes de informação típicas da Modernidade, entre elas a própria mídia.
No entanto, a maioria dos pensadores entusiasmados com a emergência da rede acreditavam no postulado de que a comunicação ocorre, via de regra, de modo sincero e argumentativo, buscando-se a descoberta da verdade. Assim, uma maior publicidade e transparência, além da intervenção de múltiplas instâncias sociais, corrigiria distorções jornalísticas e possibilitaria uma "cultura participativa" que, por si só, seria mais democrática que a esfera pública moderna.
Havia, entretanto, mais fatores em jogo, sobretudo a dimensão dos afetos, e por isso as grandes esperanças racionais acabaram sendo engolidas por uma atmosfera pessimista em relação às potencialidades da Internet, sobretudo no que tange às redes sociais como Facebook, Youtube e Twitter e aos fóruns digitais.
O presente capítulo tenta recuperar em parte essa história cujos efeitos estamos sentindo diretamente durante a pandemia do COVID-19.
O Oxford Dictionary escolhe uma palavra todos os anos como símbolo do que se passou. Para dar um exemplo, a palavra selfie, que talvez para pessoas muito jovens seja óbvia, não é tão antiga quanto parece: o próprio Oxford Dictionary a nomeou como palavra do ano em 2013, percebendo que o movimento de fotografar a si mesmo passava a ser um gesto habitual do cotidiano e a palavra se tornava conhecida em todos os lugares.
Em 2016, o dicionário escolheu a palavra "pós-verdade", definindo-a como um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.
Entretanto, como as pessoas que estudam filosofia sabem, a palavra "verdade" está longe de ter um significado unívoco. Na realidade, trata-se de um dos termos mais difíceis em torno dos quais se pode obter um consenso. Na tradição da filosofia analítica, por exemplo, há pelo menos três grandes grupos de teorias da verdade: (1) verdade como correspondência (verdadeiro é aquilo que está conforme os fatos); (2) verdade como coerência (verdadeiro é aquilo que é mais coerente com o restante das crenças); ou (3) verdade pragmática (verdadeiro é o que funciona), entre muitas outras (ver, por exemplo, Stanford Encyclopedia, verbete "Truth", 2021).
Assim como em muitos outros casos, achamos que intuitivamente sabemos o que é "verdade", assim como "tempo", "mente" ou "amor", mas, quando nos aproximamos da definição por meio de um exercício racional, as coisas ficam mais complicadas. Nada diferente, aliás, do que Sócrates fazia ao arguir seus interlocutores sobre conceitos que eles acreditavam bem definidos, chegando-se ao final "frustrante" de que "só sei que nada sei".
Contra isso, há quem afirme que foi justamente a profusão das "filosofias da suspeita", em geral associadas ao movimento intelectual chamado de "pós-modernismo", a responsável pela pós-verdade e a crença em "fatos alternativos" que passam de teorias da conspiração a afirmações simplesmente inverídicas. A relativização por meio da crítica ao colonialismo da ideia de verdade, até então um baluarte do Iluminismo na sua defesa da ciência e da razão, teria enfraquecido o discurso racional e permitido que ideias sem base argumentativa pudessem invadir a esfera pública. É o que defende, por exemplo, Michiko Kakutani, que em seu livro "A Morte da Verdade" (2018) relaciona a explosão de mentiras na Era Trump ao enfraquecimento do realismo no pensamento contemporâneo.
Contra esse raciocínio, muito se escreveu também afirmando que as ideias dos pensadores citados pelo jornalista, como Michel Foucault ou Jacques Derrida, são muito mais complexas do que suas reduções a poucos e fracos clichês relativistas. No caso de Foucault, por exemplo, interessava entender os processos concretos pelos quais a verdade era produzida, sem com isso subscrever um "ceticismo" que nega a existência da verdade. Talvez com isso se obtenha uma verdade superior, na qual o próprio processo de sua produção é levado em consideração. Enfim, filosofias à parte, o debate é bem concreto e permeia nosso cotidiano de modo formidável, sobretudo em tempos de pandemia. Basta vermos a necessidade de se afirmar hoje nos canais públicos que "devemos crer na ciência", algo que há 20 anos parecia um tanto quanto óbvio: não há registros, por exemplo, de revoltas contra campanhas de vacinação do sarampo como hoje sabemos que circulam.
Apesar da indefinição semântica do termo verdade, a noção de pós-verdade consegue sobreviver sem a necessidade de ter um conceito perfeito para referir situações em que todos os consensos da comunidade científica, documentos, registros, evidências, experimentos, enfim, tudo que se acumulou em termos do que epistemicamente é definido como conhecimento é simplesmente ignorado em prol de uma relação puramente afetiva, dada por relações de pertencimento, com um certo grupo social.
Um exemplo muito claro e relativamente inconteste desse regime está no aumento dos adeptos da "teoria" de que a Terra é plana. Coloquei teoria entre aspas porque, evidentemente, não se trata de uma hipótese que mereça ser levada a sério, dada a profusão de incontáveis provas físicas, fotográficas, documentais, entre muitas outras, de que a Terra não é plana. No ótimo documentário produzido pela Netflix, A Terra é Plana (2018), por exemplo, somos apresentados a boa parte dos participantes da comunidade terraplanista nos Estados Unidos e aprendemos como pensam, agem e se organizam.
Ao sermos apresentados aos personagens do documentário, percebemos em geral pessoas isoladas em busca de alguma crença que permita a elas pertencer a alguma comunidade. O caráter plano da Terra funciona como um código, segundo elas mesmas, de pertencimento. Em vez de se apoiar nos dados existentes e estabelecidos em consenso pela comunidade científica, eles estabelecem um vínculo por desconfiança, uma espécie de contrariedade como sinal de insatisfação e pertencimento. Ao mesmo tempo, há uma certa ingenuidade no sentido de uma verdade íntima, como ocorre quando uma das personagens responde: "não acredito em nada, só em mim mesma", ou quando, diante do fracasso de um complexo experimento, os sujeitos colocam a força de vontade de continuar acima da constatação simples de que estão errados. Mas por que deveríamos confiar que estamos certos simplesmente porque sentimos estar diante de numerosas outras evidências que escolhemos ignorar? O que esse "senso íntimo" tem de tão especial que nos faria desprezar centenas de provas que indicam estarmos errados?
Talvez a explicação do aumento da adesão ao terraplanismo, assim como outras teorias da conspiração, deve-se menos a um impulso irracional que a uma insatisfação com a forma como as coisas estão postas no mundo.
Um dos principais ambientes em que se dissemina a pós-verdade são os fóruns de discussão como 4Chan e Reddit.
Neles, uma conhecida figura do mundo digital, bastante familiar para quem navega na rede há muito tempo, habita e praticamente domina o espaço: o troll. Conhecidos com campanhas do início da década de 10 como "Não alimente os trolls" (don't feed the trolls), normalmente são usuários anônimos que sequestram um debate da caixa de comentários para o tópico que desejam discutir.
Assim, o sujeito faz um texto sobre a morte de um cantor de MPB, como por exemplo João Gilberto, e rapidamente o troll, mediante estratégias agressivas de comunicação, transforma em um debate sobre o racismo e o "politicamente correto". Alguém que faça tardiamente a aterrissagem na caixa de comentários provavelmente irá ficar pasmo: como aquele post sobre João Gilberto se tornou uma discussão com dez mil comentários sobre o racismo no Brasil?
Angela Nagle (2017) e Dale Beran (2019) investigaram a emergência da cultura troll na rede e diagnosticaram-na como uma reação – no interior do que chamam de "guerras culturais online" – ao ativismo de movimentos sociais como feminismo, LGBT e negro.
Segundo eles, tais grupos de pessoas, em geral jovens do sexo masculino desconfortáveis com seu lugar social e nos ambientes que habitam, associam o avanço das demandas como sintomas de que elas são o novo establishment, e – na herança dos movimentos contraculturais dos anos 60 e 70 – reivindicam-se como "os novos rebeldes". A insatisfação social, assim, é canalizada contra esses grupos, etiquetados de forma pejorativa como politicamente corretos ou "guerreiros da justiça social" (social justice warriors).
Uma característica fundamental do discurso troll que compõe o regime da pós-verdade é a indecisão entre o sério e o jocoso. Ou seja, quando o troll enuncia algo, nunca se pode saber de antemão se está falando aquilo de modo sério ou como piada. Na verdade, esse é um mecanismo bastante eficaz para recuar de declarações violentas: basta afirmar que nada daquilo que estava sendo dito era para valer, e se tratava pura e simplesmente de fazer chacota da seriedade com que os ativistas costumam tratar suas causas. Assim, o debate sai do plano argumentativo para o plano da performance: tudo que importa é parecer, independentemente da validade objetiva do argumento.
Um exemplo disso está no episódio The Waldo Moment, da série Black Mirror (2013, Dir. Bryn Higgins). Ali, Waldo, um urso de desenho animado desbocado, resolve desafiar os políticos locais e concorrer na eleição – diante do sucesso estrondoso da sua performance agressiva contra o favorito. Sua estratégia não é baseada em argumentos nem ideias: ele apenas se apropria da revolta e a descarrega em performance desbocada, fazendo com que a audiência possa rir.
Ou seja, é fácil perceber a relação entre cultura troll e pós-verdade: na medida em que os enunciados não valem mais pelo que estão sendo ditos, mas pela performance que desempenham, é mais simples fazer circular afirmações que não correspondem aos fatos.
Um dos documentários mais comentados de 2020 foi o "Dilema das Redes" (2020), produzido pela Netflix. Nele, fica clara a relação entre a dinâmica interna das redes sociais – isto é, como elas operam para se considerar valiosas – e a profusão de notícias falsas e afirmações sob o regime da pós-verdade. O documentário, que conta com a participação de vários dos programadores que ajudaram a construir as plataformas que hoje se tornaram Big Techs, nada mais fazem que expor um modo de funcionamento que já havia sido anteriormente exposto por autores como Shoshana Zuboff (2017) e Jaron Lanier (2018), que inclusive também participam da obra com depoimentos.
Assim como muitos textos que usam a expressão Down to the rabbit hole ("entrando na toca do coelho", em referência ao romance Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e ao filme Matrix, que usa a imagem do romance), até pouco tempo as plataformas eram simplesmente neutras, ou "agnósticas", para usar a expressão de Seymour (2019), acerca do conteúdo. Ou seja, o que estava em jogo era pura e simplesmente uma economia da atenção.
As plataformas funcionam por meio de uma programação baseada em algoritmos que dependem de constante alimentação dos usuários a fim de aprimorar a experiência. Assim, quando abro o Instagram e deixo uma curtida na imagem de um cachorro, imediatamente esses dados são recolhidos e minerados para estabelecer meu perfil. Quando abro algum portal de notícias, imediatamente aparece um banner de alguma Pet Shop ou a venda de algum produto para animais na tela. No início, as pessoas ficavam assustadas, depois simplesmente se acostumaram. Para a plataforma, o que interessa não é espionar (os homúnculos que aparecem no documentário como espécie de demônios da conectividade talvez mais confundam que ajudem a compreender). Em princípio, a atividade é executada apenas por máquinas que administram uma grande quantidade de informações (Big Data). Com isso, elas conseguem me apresentar o produto que procuro ("olha, encontrei uma coleira pelo preço mais barato!") e, ao aprimorar a experiência, garantem que eu vá acessar novamente a plataforma. Ao fazer isso, podem vender anúncios que são diretamente direcionados aos usuários com o perfil correspondente (LANIER, 2018; SRNICEK, 2018; ZUBOFF, 2017).
Foi exatamente esse o mecanismo que permitiu, de um ponto de vista que chamamos "tecnopolítico", o avanço da pós-verdade. Na medida em que as plataformas só estavam interessadas em manter os usuários atentos às telas para coletar seus dados e com isso vender mais produtos, elas permitiram que qualquer tipo de conteúdo prosperasse independentemente de curadoria.
Com isso, teorias da conspiração – como a atual Q-Anon, uma hipótese completamente paranoica sobre o mundo sendo controlado por vampiros pedófilos – conseguiam, mediante obtenção de cliques, ligar-se umas às outras e produzir uma experiência integral de atenção dos usuários. Quanto mais cliques, mais visibilidade. Quanto mais visibilidade, maior o número de cliques. E assim o terraplanismo, o Q-Anon e o movimento antivacina conseguiram mais visibilidade que jamais teriam caso a curadoria fosse mediada por seres humanos.
Costuma-se usar a metáfora da "bolha" para caracterizar essa espécie de mundo fechado do algoritmo: na medida em que nossa exposição às telas aumenta, refina-se o algoritmo e nosso próprio contato com a realidade vai se tornando cada vez mais dependente daquilo que vejo no smartphone. Com a pandemia do COVID-19, como não poderia deixar de ser, as coisas evidentemente se agravaram mais – gerando uma preocupação regulatória das plataformas para restringir a circulação de certos discursos notoriamente falsos e prejudiciais à saúde pública.
Figura 3: Exemplo de captura de tela que mostra a preocupação especial do Google em relação a notícias falsas sobre a COVID-19. Fonte: Google.
Em síntese, da utopia da "cultura participativa" e da "democracia direta" baseada na plenitude do acesso à informação – algo que a Wikipédia representou muito bem – a maioria das análises da rede hoje destaca os problemas que as plataformas produziram, com seu "efeito bolha" algorítmico, e a necessidade de que haja algum tipo de regulação mínima para evitar a propagação de informações falsas. Por isso, o debate sobre regulação tornou-se tão forte e hoje é uma das principais discussões colocadas na esfera pública.
BERAN, Dale. It came from something awful: how a toxic troll army accidentally memed Donald Trump into office. New York: All Points Rocks, 2019.
KAKUTANI, Michiko. A Morte da Verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Trad. Andre Czarnobai, Marcela Duarte. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
LANIER, Jason. Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
NAGLE, Angela. Kill All Normies: online culture wars from 4Chan and Tumblr to Trump and the alt-right. Winchester/Washington: Zero Books, 2017.
SEYMOUR, Richard. The Twittering Machine. London: The Indigo Press, 2019.
STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Verbete "Truth". Disponível em: <https://plato.stanford.edu/entries/truth/>. Acesso em: 7 fev. 2020.
SRNICEK, Nick. Platform capitalism. London: Polity, 2017.
"'1984', de George Orwell, lidera lista de mais vendidos nos EUA após 'fatos alternativos' de Trump", por Deutsche Welle. 25/01/2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/1984-de-george-orwell-lidera-lista-de-mais-vendidos-nos-eua-apos-fatos-alternativos-de-trump.ghtml>. Acesso em: 7 fev. 2021.
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação. In: Tecnopolíticas da Vigilância. Org. Fernanda Bruno et al. Trad. Heloísa Mourão et al. São Paulo: Boitempo, 2017.
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