A analisar globalmente as relações entre tecnologia e sociedade com apoio de perspectivas teóricas, dados sociais e obras de ficção;
A pensar criticamente as relações entre a tecnologia e o mundo do trabalho, com especial ênfase para a automação;
A desenvolver um perfil mais versátil, criativo e complexo do que especializado e exclusivamente técnico;
A refletir sobre os riscos e potencialidades que o aprendizado de máquinas provocam.
No oitavo episódio da série Electric Dreams (Channel 4, 2017), baseada em contos do escritor de ficção científica Philip K. Dick, os personagens estão em um acampamento tentando elaborar estratégias para vencer a Autofac, que é basicamente uma indústria comandada por um algoritmo de inteligência artificial que providencia o que supostamente – e nesse supostamente está toda ambiguidade e interrogação do episódio – necessitam os humanos. A Autofac é blindada a fim de evitar que os humanos façam intervenções que desequilibrem o fornecimento da indústria.
O filme Transcendence: a revolução (2014, Dir. Wally Pfister) parece trazer uma situação mais ou menos análoga. Nele, um grande gênio da programação está às vésperas da morte e consegue, em um último esforço, fazer o upload da sua mente para a nuvem. A partir de então, ele tenta integrar cada vez mais os sistemas, uma vez que deixou de estar preso na individualidade e passou a fazer parte de uma estrutura mais aberta. Diante disso, resta a dúvida: estaria a nova versão do personagem, completamente etérea e desencarnada, tentando implementar um projeto de poder absoluto em que as liberdades individuais desaparecem, ou enxergando para muito além do que as consciências corpóreas conseguem visualizar – e portanto sendo incompreendido?
Podemos acrescentar múltiplos outros exemplos do dilema, em filmes como Matrix (1999, Dir. Lily e Lana Wachowski), Ela (2013, Dir. Spike Jonze), Minority Report (2002, Dir. S. Spielberg) ou séries como Black Mirror (2011, Dir. Charlie Brooker) e The Feed (2019, Dir. Nick Windo). Todos parecem sempre avançar para a mesma questão: o avanço ilimitado da tecnologia, a ponto de despertar o que chamamos de "inteligência", é um perigo ou simplesmente a força do progresso?
Neste capítulo, veremos que o impacto das novas tecnologias é tão amplo que já se fala em "Quarta Revolução Industrial", e que os desdobramentos da chamada "inteligência artificial" podem redesenhar completamente o mundo, especialmente o mundo do trabalho.
A história dos diversos povos e civilizações do mundo passou por muitas transformações. A introdução da agricultura e da metalurgia, o sedentarismo, entre outras, foram mudanças que produziram sociedades muito distintas das suas versões anteriores. Transformações nas matrizes tecnológicas da sociedade tendem a produzir mudanças em alta escala, difundindo-se sobre as formas sociais aos poucos (HARARI, 2017). Para muitos filosóficos da tecnologia (SIMONDON, 2020), por exemplo, deveríamos considerar esses processos como sociotécnicos, uma vez que não seria mais adequado separar a infraestrutura tecnológica das normas culturais que costumam formar as sociedades.
Uma grande ruptura no Ocidente aconteceu com a automatização dos trabalhos manuais deflagrada pela Revolução Industrial, ocorrida entre 1760 e 1840, a partir da construção de ferrovias e da máquina a vapor. O romance de Mary Shelley, Frankenstein: ou o moderno Prometeu (1818), é um exemplo do tipo de angústia que as transformações tecnológicas produzem, criando um ambiente de horror diante do excesso (hybris) humana.
Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial de Davos, considera que a segunda Revolução Industrial ocorreu no início do século XX, com o advento da eletricidade e da linha de montagem, e a terceira na década de 60, com o avanço dos computadores. Agora, estaríamos diante de uma nova revolução industrial, "caracterizada por uma Internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina)" (SCHWABE, 2016, pp. 18–19).
Schwabe ainda elenca diversas tecnologias disruptivas que são consideradas prováveis nos próximos 50 anos, algumas inclusive em fase inicial, como tecnologias implantáveis, novas interfaces de visão, tecnologias vestíveis, casas e cidades inteligentes, carros autônomos, inteligência artificial, avanços na robótica, edição genética, blockchain e bitcoin, impressão em 3D e 4D, entre outras. Segundo ele, a velocidade, amplitude, profundidade e o impacto sistêmico dessas tecnologias tende a ser ainda mais acentuado que as revoluções industriais anteriores, em contraste com a indiferença do sistema político a produzir adaptações e mudanças capazes de arrefecer o efeito destrutivo que terão sobre certas atividades, e potencializando, ao contrário, seus efeitos positivos (SCHWABE, 2016).
Além disso, o principal risco é que, sem medidas de adaptação, prevalece o dito "o vencedor leva tudo" ("winner takes all"), gerando uma grande concentração de poder em poucas empresas e produzindo uma taxa muito elevada de desigualdade social (SCHWABE, 2016).
Peter Frase (2016), imaginando futuros impactados pelas duas grandes forças do século – a inteligência artificial e a crise ecológica – contrasta mundos em que a impressão 3D nos coloca em uma situação parecida com os personagens da série Jornada nas Estrelas (Star Trek, 1966) com uma distopia em que uma enorme massa de "descartáveis" é colocada em um campo isolado no qual produzem seus próprios meios de destruição, como no filme Elysium (2013, Dir. Neill Blomkamp).
Desde a Primeira Revolução Industrial, com a substituição do trabalho manual dos artesãos pelas máquinas de costura, já se colocava a questão: e agora, será que o trabalho humano será ainda necessário ou seremos totalmente substituídos pelas máquinas?
Um dos mais conhecidos movimentos de resistência à automação foi o Ludismo, quase sempre estigmatizado como uma revolta primitiva e irracional diante do avanço do progresso, mas hoje repensado por alguns à luz dos problemas ecológicos que se colocam no século XXI, quando o progressismo automático passa a ser colocado em questão diante dos novos riscos e do rastro de destruição que cria (por exemplo, BONNEUIL e FRESSOZ, 2016).
O economista John Maynard Keynes, um dos mais importantes do século XX cujas bases teóricas alimentaram a gestão das economias do Hemisfério Norte até o final dos anos 70 do século passado, já cogitava a hipótese. Segundo ele, o avanço da automação – isto é, a substituição de humanos por máquinas em atividades mecânicas – iria produzir uma drástica redução da jornada de trabalho, deixando-a com o patamar máximo de 15 horas semanais, e abrir um enorme espaço para que os seres humanos pudessem dispor de lazer e desenvolver suas capacidades criativas.
É o que encontramos também suposto em famosas teses como a do ócio criativo, de Domenico de Masi (2000), que teve muita repercussão no Brasil e fez muitos CEOs passarem a apresentar suas empresas como exemplos de rotina flexível, mesclando atividades lúdicas com uma produtividade maior e mais criatividade. É também sem dúvida esse o discurso que costuma ser colocado pelo exemplo da Google, em que seu "parque" é apresentado como espécie de espaço mesclado entre recreação e trabalho de um modo descontraído e informal.
Apesar disso, a representação parece estar bem distante da realidade. Seja nos típicos trabalhos de plataforma – como entregadores de app ou mesmo influencers do Instagram – a rotina parece ser mais intensa que os antigos empregos.
O que se pergunta é: o progressivo avanço tecnológico vem nos trazendo cada vez menos trabalho? A hipótese parece bem improvável de ser confirmada. Poderíamos pensar, em primeiro lugar, na intrusividade das tecnologias digitais nas nossas vidas fora do ambiente de trabalho, como por exemplo aquela mensagem no WhatsApp deixada no domingo à tarde pelo chefe que – apesar de estarmos em um dia de folga – sabemos que devemos responder, cortando a interrupção do trabalho. Mas o problema é ainda mais profundo.
Na verdade, o antigo tempo livre, em que se podia inclusive sentir tédio diante da ausência de tarefas imediatas a cumprir, parece cada vez mais sugado pelas dinâmicas contínuas e ininterruptas das plataformas (HAN, 2010). Em outros termos, na medida em que o tempo livre passou a se confundir com conectividade, e a fronteira entre pessoal e profissional se apagou, parece que estamos trabalhando simplesmente o tempo todo.
Pense comigo: seu perfil no Instagram ou no Facebook é para fins pessoais ou profissionais, ou a distinção já se apagou de vez? Muitas pessoas ainda mantêm uma separação, mas para outras muitas – sobretudo as gerações mais jovens – a "monetização" do próprio perfil já se impôs há bastante tempo. Séries como Black Mirror e The Feed mostram muito bem como a busca por "engajamento" envolve uma experiência totalizante que não deixa espaços para praticamente mais nada na vida dos personagens.
Nick Srnicek e Alex Williams (2013) consideram que ainda existe uma excessiva vinculação entre o modo de funcionamento das novas tecnologias – que é automatizado e permite um avanço imenso do ponto de vista do tempo livre – e o nosso sistema social, ainda baseado na venda, no lucro e na propriedade intelectual.
Eles propuseram no Manifesto Aceleracionista que o avanço técnico irrestrito iria gradualmente dar lugar a novas formas sociais nas quais a assimetria entre uma rotina de trabalho cada vez mais exaustiva e permanente, de um lado, e a profusão de melhorias na programação, de outro, seria gradualmente corrigida. Isso significa que estaríamos às vésperas de um salto em que certos obstáculos ao progresso técnico – como a propriedade intelectual – seriam derrubados pela aceleração.
Outra resposta que costuma aparecer diante do dilema é a defesa da renda mínima ou renda básica universal. Segundo essa leitura, a gradual substituição da mão de obra humana por uma mão de obra maquínica, inclusive nas tarefas intelectuais, irá produzir desemprego em massa, gerando uma espécie de população excedente que ficará permanentemente sem acesso ao trabalho (HARARI, 2016). A única solução para conseguir manter a economia em funcionamento sem o jogo da excessiva concentração em poucas mãos (das Big Techs, por exemplo) e o total desamparo de amplos setores sociais é o estabelecimento de um pagamento público de uma renda básica universal, a fim de que todos possam sobreviver com dignidade e desenvolver suas capacidades. Recentemente, até mesmo CEOs das Big Techs, como Mark Zuckerberg, vêm defendendo a medida.
Se durante muito tempo agricultores, artesãos e outros trabalhadores que desempenham funções predominantemente manuais se viram ameaçados pela introdução do maquinário como substituição de trabalho, a "indústria 4.0" propõe uma angústia similar também para aqueles que desempenham funções predominantemente cognitivas. De fato, atividades como medicina, advocacia, publicidade e escrita, tradicionalmente vinculadas à ideia de que são exclusivamente humanas, poderão passar a ser exercidas por algoritmos que funcionam com aprendizado de máquinas (machine learning).
Uma pesquisa desenvolvida na Oxford Martin School chega à conclusão, mediante uma análise em escala entre risco 0 a 10 em torno à automatização, indica que 47% dos empregos totais nos Estados Unidos estão sob risco de automatização. Atividades hoje estratégicas para uma parte significativa da população – como telemarketing, contadoria, avaliação securitária, arbitragem esportiva, assessoria jurídica, recepção em hotéis, corretagem de imóveis, mão de obra agrícola e entregas – têm entre 97 e 99% de chance de se tornarem exercidas por máquinas (SCHWABE, 2017, p. 49).
Tudo isso terá um significativo impacto sobre as competências no mercado de trabalho. Outro estudo do Fórum Econômico Mundial chamado "Futuro do Trabalho" indica que, além de uma tendência ao aumento da distância salarial entre segmentos de alta e baixa competência, a abordagem técnica especializada fará menos sentido que uma alta capacidade de adaptação, aprendizagem de novas habilidades em novos contextos e resoluções de problemas complexos (SCHWABE, 2017). O Presidente do Fórum Econômico Mundial revela sua preocupação com as empresas e sua falta de atitude diante da grande disrupção por vir, e deveríamos sem dúvida pensar isso também em termos de educação: em geral, as disciplinas genéricas, que buscam enfrentar grande complexidade e propiciar pensamento sistêmico, tendem a ser consideradas "menos importantes" que as disciplinas técnicas específicas. No entanto, a indústria 4.0 aponta muito mais para a valorização de profissionais versáteis, adaptáveis e com capacidade de leitura e antecipação de contextos que superespecialistas que podem vir a ser substituídos por algoritmos competentes.
Desde Frankenstein e Pinóquio, há pelo menos duas grandes tradições na ficção científica especulando sobre a nossa relação com possíveis seres inteligentes maquínicos. De um lado, obras distópicas como Matrix (1999, Dir. L. e L. Wachowski) e Exterminador do Futuro (1984, Dir. James Cameron) tendem a associar o surgimento da inteligência artificial ao apocalipse que deflagra uma guerra entre humanos e máquinas e coloca a espécie humana em desvantagem. De outro, obras que questionam a exclusividade humana e propõem um olhar aberto para as máquinas: Inteligência Artificial (2001, Dir. S. Spielberg), Animatrix (2003) – que complexifica o primeiro filme – e o fantástico conto de Isaac Asimov chamado de "O Homem Bicentenário" são exemplos. Estas representam uma perspectiva da máquina, na qual a exclusão figura como um tipo de marginalização arbitrária similar à que ocorre pelo racismo ou pela xenofobia.
Uma atualização do imaginário entusiasmado pela tecnologia na sua versão mais radical é chamada de transhumanismo. Seus defensores, como Ray Kurzweil, costumam afirmar que a combinação entre diferentes inovações de nanotecnologia, programação genética e neurociências poderá nos encaminhar para uma conquista dos atributos como a imortalidade para a espécie humana, uma vez que todo tipo de degeneração poderá ser evitada mediante edição genética ou correção por nanorobôs e a própria mente poderá ser exteriorizada em novos suportes de matéria mais resistente que a biológica. Kurzweil chega a nomear essa espécie de singularitanos, referindo a "singularidade" (um ponto de viragem radical) tecnológica como ponto de passagem. Certa vez, perguntado sobre a existência de Deus, Kurzweil respondeu: "Se Deus existe? Eu diria: ainda não" (RENNIE, 2011).
Para quem viu a série ou leu o livro Altered Carbon (2018, Dir. Laeta Kalogridis; 2002, Richard K. Morgan), por exemplo, não é algo inédito. O que surpreende não é a ideia em si, mas o fato de que realmente há projetos em andamento que a levam a sério e colocam alguns milhões em pesquisa a respeito.
Por outro lado, Yuval Noah Harari (2016), por exemplo, figura como um crítico severo dessas perspectivas. Em seu longo trabalho Homo Deus: uma breve história do amanhã, critica justamente o excesso de prometeísmo que estaria nos conduzindo a inovações tecnológicas sem responsabilidade, conduzindo-nos a um mundo em que a espécie poderá ser dividida mediante aprimoramento biológico daqueles que ocupam os patamares mais altos da pirâmide econômica.
Ou seja, a possibilidade de máquinas pensantes – inicialmente uma ideia meramente especulativa que envolvia um toque de mágica (como a fada que dá vida a Pinóquio), passada ao sério com a "máquina de Turing", até chegar ao nosso momento em que Big Techs como Google, Microsoft e Amazon despejam alguns milhões de dólares em pesquisa para desenvolvê-la – sempre gerou angústia e temor na espécie humana.
Ultimamente, no entanto, parece surgir uma espécie de terceira via, que consiste em ver as máquinas como dispositivos de aumento de inteligência. Segundo essa perspectiva, não se trata mais de opor humanos às máquinas – o que as duas tradições faziam – mas pensá-las enquanto composições, isto é, sistemas acoplados um ao outro que não se excluem, ao contrário, se reforçam mutuamente. Ideias como a da realidade aumentada, utilizada por exemplo no bem-sucedido jogo Pokemon Go, refletem o que é ali defendido.
Segundo a nova perspectiva, exposta por exemplo pela filósofa Katherine Hayles e investigadores da ciências cognitivas como Andy Clarke, trata-se de pensar em termos de cognição distribuída, na qual não existe apenas um ponto central no qual todas as informações estão concentradas, mas sistemas que se acoplam uns aos outros e podem aumentar a inteligência do coletivo. Como se percebe, as ideias vão e voltam: a noção de rede distribuída está na origem da Internet.
"Bilionários do setor de tecnologia embarcam no movimento da renda básica universal". Época Negócios. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Revista/noticia/2017/07/bilionarios-do-setor-de-tecnologia-embarcam-no-movimento-da-renda-basica-universal.html>. Acesso em: 7 fev. 2021.
BONNEUIL & FRESSOZ. The Shock of the Anthropocene: The Earth, History and Us. London: Verso, 2016.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HARARI, Noah Yuval. Sapiens: uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. 25. ed. Porto Alegre: L&PM, 2017.
HARARI, Noah Yuval. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
DE MASI, Domenico. O Ócio Criativo. Trad. Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
FRASE, Peter. Four Futures: life after capitalism. London/New York: Verso, 2016.
RENNIE, John. The Immortal Ambitions of Ray Kurzweil: A Review of Transcendent Man. Scientific American. Disponível em: <https://www.scientificamerican.com/article/the-immortal-ambitions-of-ray-kurzweil/>. Acesso em: 7 fev. 2021.
SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. Trad. Daniel Miranda. São Paulo: EDIPRO, 2016.
SIMONDON, Gilbert. Do modo de existência dos objetos técnicos. Trad. Vera Ribeiro: Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.
SRNICEK, Nick; WILLIAMS, Alex. Manifesto Aceleracionista. Revista Lugar Comum. Disponível em: <https://uninomade.net/tenda/manifesto-aceleracionista/>. Acesso em: 7 fev. 2020.
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