CULTURA E ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO

Prof. Moyses da Fontoura Pinto Neto

Nesta unidade temática, você vai aprender

  • A analisar quais são os paradigmas envolvidos na circulação de informação na rede e o que eles pressupõem em termos conceituais;

  • A compreender quais são as disputas jurídicas e políticas em torno da propriedade intelectual na rede;

  • A verificar como se definem os projetos enquadrados na ideia de compartilhamento e contribuição, como o código aberto e o software livre.

Introdução

Em 2000, a famosa banda de heavy metal Metallica colocou em voga um imenso imbróglio que revelaria uma das principais questões que a cultura digital põe explicitamente.

O Napster, aplicativo que utilizava a tecnologia P2P (peer-to-peer) de compartilhamento de arquivos, havia explodido em usuários. Por meio do mecanismo, era possível que cada usuário deixasse aberto e público seu próprio repositório de arquivos para acesso aos demais, permitindo que a cada busca a pessoa se deparasse com milhares de outros usuários com o arquivo desejado e podendo com isso fazer o download. O Napster intermediava os compartilhamentos conectando os usuários entre si. Com a invenção do mp3, espécie de compressão que tornava as digitalizações das músicas menos pesadas que as outras modalidades anteriores, o aplicativo rapidamente alcançou sucesso mundial.

Mas havia uma pedra no caminho.

O Metallica percebeu que, com o compartilhamento livre de arquivos, a indústria da música iria enfraquecer e os pagamentos aos músicos tomariam o mesmo rumo. Sem a exclusividade da distribuição, os lucros com as vendas de CDs iriam diminuir drasticamente, pois as pessoas iriam em busca da versão digital gratuita, e os artistas acabariam dependentes apenas dos shows. Assim, a banda ingressou com uma ação judicial na Califórnia reivindicando a proteção dos seus direitos autorais (copyright) contra o Napster.

O Metallica, depois acompanhado pelo rapper Dr. Dre, terminou vencedor e obrigou o Napster a finalizar suas operações por violação de direitos autorais.

Mas a guerra estava longe de terminar.

Em 2009, por exemplo, a banda britânica Radiohead abriu seu novo álbum In Rainbows, produzido sem interferência de gravadora, diretamente para download na Internet. O usuário poderia "pagar quanto quiser" (pay as you want) e ter o álbum entre seus arquivos digitais.

Até hoje, a disputa em torno da propriedade intelectual das obras que circulam na rede continua. Enquanto a indústria, em geral apoiada pelos Estados, costuma caracterizar os fatos como pirataria e reivindicar sua criminalização, um grande número de usuários sustenta que a rede abriu a possibilidade de uma cultura do compartilhamento que extravazaria os parâmetros da proteção clássica dos direitos autorais e abriria novas formas de economia.

Com o surgimento de poderosas plataformas de streaming, como Spotify, Netflix, Prime, Disney, Apple Music, Deezer, entre muitas outras, o problema parece ter construído uma linha alternativa à antiga polarização entre compartilhamento e direitos autorais. A questão, no entanto, segue em aberto e por isso investigaremos neste capítulo um resumo da história e das polêmicas envolvendo o tema.

Cultura hacker

A filósofa Mckenzie Wark (2004) publicou um trabalho muito comentado na década passada chamado de Manifesto Hacker. Wark sustenta que a nova classe revolucionária não seria mais composta dos operários, como alguns intelectuais postulavam no século XIX, mas dos hackers. Eles oporiam o grande conflito do nosso tempo, que não seria mais entre operários e industriais, mas entre hackers e vetorialistas. Os últimos seriam os donos da propriedade intelectual em uma economia na qual o imaterial preponderaria, enquanto os primeiros seriam os que lutam para quebrar os respectivos códigos e os gatekeepers (porteiros), que barram o acesso geral à informação. Em termos concretos, o que isso significa?

Fique de olho!

Imagine o que mais vale na nossa sociedade. Ouro? Carros? Terrenos? Sim, tudo isso tem valor financeiro estimado e pode ser muito alto. Mas a principal fonte de valor que pode produzir um diferencial hoje em dia é a informação.

Com um diagnóstico correto da conjuntura baseado em boa informação, por exemplo, um investidor pode fazer a manobra correta na Bolsa de Valores e multiplicar exponencialmente sua riqueza. Ao mesmo tempo, a maioria das atividades decisivas na formação do valor são aquelas relacionadas ao trabalho cognitivo, isto é, que envolvem atividades de criação, design, entre outras. Ou seja, o que produz valor não é a quantidade bruta de materiais, mas as ideias que circulam no meio econômico e social. A riqueza, inclusive, está cada vez mais abstrata e especulativa e menos respaldada na produção real.

Quando Wark afirma que a classe revolucionária do século XIX são os hackers, está dizendo que em um ambiente no qual a circulação da informação é o que realmente faz valor, quem pode alterar as coisas nesse nível cognitivo – mudando a forma de acesso à informação – tem as ferramentas mais poderosas para enfrentar o status quo. A teorização de Wark é mais densa que isso, mas deixemos ela de lado, pois serviu apenas como exemplo aqui de um certo ambiente cultural que vamos explorar.

Há, portanto, um certo ambiente cultural em que a figura do hacker ocupa um espaço essencial. Muitas expressões – como "nova economia", "capitalismo cognitivo", "semiocapitalismo", "sociedade da informação", "economia do conhecimento" ou "economia criativa" – são usadas para caracterizar a virada da figura da indústria como carro-chefe das formas sociais (com suas formas correspondentes, como por exemplo o fordismo) para a informática em primeiro plano.

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Em boa parte, esse imaginário deriva do Vale do Silício e foi construído em revistas de cultura e tecnologia, com destaque para a revista Wired. Segundo Loveluck (2018), ela "foi um dos lugares mais emblemáticos da fusão do movimento contracultural hippie, preconizando a mudança social através da transformação das consciências individuais (...), com o espírito empreendedor, com uma posição antiestatal bastante marcada e com uma forma de neopositivismo baseado na informática e nas novas tecnologias", naquilo que chamamos no capítulo anterior de "ideologia californiana".

Figura 1: Capa da revista Wired.

Fonte: Wired.

Os líderes do Vale do Silício – chamados de "ciberlibertarianos" – imaginavam que a nova economia informacional proporcionaria uma nova forma de abundância, em contraponto à escassez da economia industrial, baseada na ampla acessibilidade da informação e na inovação permanente. A propriedade intelectual, com isso, torna-se um entrave ao processo de desenvolvimento da inovação, uma vez que limita o acesso, e herança da era industrial já superada. O custo da reprodução da informação, segundo ensinavam os hackers, é próximo ao zero. Por isso, a gratuidade seria a nova regra.

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Apesar do estereótipo hegemônico do hacker como autor de fraudes e violador de privacidade, há diversas obras da cultura pop – inspiradas na estética cyberpunk – que colocam o hacker na posição inversa. Uma delas é o próprio Neuromancer, de William Gibson, citado no capítulo anterior, assim como o personagem Neo e todos os demais rebeldes de Matrix (2000), também já citados. Um filme que foi bastante influente na época em que foi lançado, antes do explosão digital, é justamente denominado Hackers (1995), construindo a imagem que mais tarde irá abastecer também séries contemporâneas como Mr. Robot (2015).

Figura 2. Fonte: IMDb.

Compartilhamento versus copyright

Apesar das expectativas dos "ciberlibertarianos" de um direito ao acesso ilimitado que geraria uma nova economia baseada na inovação e abundância, o início da década de 2000 foi marcado por uma reação das demandas do copyright.

Segundo Loveluck (2018), podemos elencar três fatos que influenciaram o cenário:

  • o estouro da bolha ponto.com no ano 2000, levando a um quebra-quebra de várias das start-ups das quais se esperava infinito crescimento;

  • uma série de processos de intervenções judiciais que deram proeminência aos direitos autorais locais sobre os ações desterritorializadas que costumavam circular na rede, tanto nos casos do peer-to-peer (Napster) quanto em crimes envolvendo pornografias ou roubo de dados;

  • a partir do 11 de setembro de 2001, com o atentado contra as Torres Gêmeas, o decreto chamado de Patriotic Act levou a um endurecimento da segurança, aumentando as possibilidades de intervenção policial e judicial sobre operadoras de telefonia, provedores de acesso à Internet ou serviços on-line.

A partir disso, o debate começa a ficar mais pragmático e menos utópico, passando-se a se discutir a governança da Internet. Uma das medidas reivindicadas pelos coletivos organizados em torno da cultura digital foi a neutralidade da rede, que consistia na defesa da livre-circulação da informação sem que certos conteúdos possam ser priorizados em detrimento de outros.

A neutralidade também foi adotada mais tarde pelo Brasil a partir do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014, Art. 3º. A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: (...) IV - preservação e garantia da neutralidade de rede).

Ademais, diante do avanço das demandas pela propriedade intelectual, inventaram-se na rede diversas formas de licenciamento distintas do regime de copyright. Uma delas é o creative commons, que permite ao seu usuário regular que tipo de atividades deseja permitir e que tipo deseja vetar (exemplos: reprodução, venda, compartilhamento) a quem está em posse da sua obra.

Figura 3: Exemplo de licença que permite remix e veta o uso comercial.

Fonte: Wikimedia.

Na década de 2000, durante as gestões Gilberto Gil / Juca Ferreira no Ministério da Cultura (MinC), houve alguma movimentação para uma nova regulamentação da propriedade intelectual a partir das novidades que impunha o meio digital, com a adesão emblemática do próprio site do Ministério para a forma de creative commons. O próprio Ministro Gil teria se declarado como um hacker (EVANGELISTA, 2014). No entanto, a partir da entrada da Ministra Ana Buarque de Holanda, em 2011, o MinC abandonou todas as políticas da área e voltou à defesa intransigente do copyright.

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Outra forma de liberação mais radical que os creative commons é o copyleft, que transfere a licença ilimitada para uso e compartilhamento. Um dos primeiros artistas brasileiros a experimentar essas novas formas de regime de direitos autorais foi BNegão. Seu álbum "Enxugando o Gelo" (2003), ainda hoje muito elogiado pela crítica musical, foi lançado em formato copyleft, radicalizando as possibilidades de distribuição, remix e todo uso possível.

A "febre" pela revisão do regime de propriedade intelectual na Internet foi tanta que foram criados diversos "Partidos Piratas" pelo mundo. Invertendo o postulado de criminalização que os Estados e a indústria costumam atribuir ao compartilhamento de arquivos, assumiram a pirataria como plataforma política, demandando, entre outras coisas, uma "democracia interativa" em que a cultura da participação pudesse ser mais efetiva. Os Partidos Piratas da Alemanha e Suíça chegaram a alcançar assentos em parlamentos, conquistando uma significativa adesão entre a população jovem dos países a ponto de serem considerados durante um período como terceira força política.

Ainda poderíamos citar como exemplo da cultura do compartilhamento diversos aplicativos criados para, por exemplo, viabilizar caronas de pessoas que se dirigem a lugares próximos, evitando o excesso de carros nas ruas, ou a possibilidade de ficar na casa de alguma pessoa que a oferece para seus hóspedes.

Software livre e código aberto

Outra forma de reagir à hegemonia do copyright na rede foi por meio da defesa dos softwares livres e do código aberto (open source). Um exemplo do software livre é o sistema operacional Linux, forjado a partir dos próprios usuários para competir com a Microsoft e a Apple de modo gratuito e aberto a aperfeiçoamentos que os próprios usuários podem realizar. Da mesma forma, os programas da Mozilla, como o navegador Firefox, são também exemplos de código aberto, deixando a fonte transparente para que a "inteligência coletiva" dos usuários possa aperfeiçoar a experiência.

Levando em conta as experiências, podemos pensá-las como exemplos das duas estratégias do movimento do software livre:

Free

  • Envolve a defesa da adoção de softwares gratuitos pelos usuários

Open

  • Permite a adoção paralela de versões gratuitas e pagas dos programas, mas considera como ponto mais fundamental a abertura do código-fonte como meio para aperfeiçoamento coletivo (EVANGELISTA, 2014).

Abaixo, vemos a declaração de princípios da Mozilla:

Fonte: Mozilla.

Como se pode perceber, os princípios são todos inspirados nas ideias do movimentos do software livre, defendendo a descentralização, proteção individual dos dados, acessibilidade universal e colaboração. O filósofo Bernard Stiegler (2017), por exemplo, imaginava que a produção open source seria capaz de gestar um novo modelo econômico contraposto ao consumismo e baseado na contribuição dos usuários. O Brasil realiza anualmente o Fórum Internacional do Software Livre, em Porto Alegre, e o evento é considerado o segundo maior do mundo na temática.

Síntese do streaming?

Seriam as plataformas digitais de streaming uma espécie de síntese entre as demandas pelos commons da cultura do compartilhamento e o resguardo da propriedade intelectual? De fato, após o lançamento bem sucedido de plataformas de música como Spotify, Deezer, Apple Music ou Tidal, e de vídeos como Netflix, Amazon Prime, HBO ou Disney, ainda haveria espaço para as redes P2P ou o problema do acesso difícil teria sido solucionado com a transformação do produto (CD, DVD etc.) em serviço (assinatura da plataforma)? Aparentemente, o interesse pelo download baixou muito e hoje praticamente nem é mais debatido.

Reflita

Deixamos a pergunta em aberto.

O fato é que, embora tenha se rendido ao formato digital, o Metallica – segundo entrevista recente do seu guitarrista Kirk Hammett – continua insatisfeito.

Referências

BARBROOK, R. & CAMERON, A. The Californian Ideology. Science as culture, january 1996.

BERARDI, Franco "Bifo". A fábrica da infelicidade: Trabalho cognitivo e crise da new economy. Rio de Janeiro: DPA, 2005.

"Conversation avec Bernard Stiegler: «Faire de Plaine Commune en Seine-Saint-Denis le premier territoire contributif de France». The Conversation, 2017. Disponível em: https://theconversation.com/conversation-avec-bernard-stiegler-faire-de-plaine-commune-en-seine-saint-denis-le-premier-territoire-contributif-de-france-65931. Acesso em 15 dez. 2020.

EVANGELISTA, Rafael. O movimento software livre do Brasil. Horizontes Antropológicos [Online], 41 | 2014. Disponível em: http://journals.openedition.org/horizontes/578. Acesso em 15 dez. 2020.

LOVELUCK, Benjamin. Redes, Liberdades e Controle: uma genealogia política da Internet. Trad. Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2018.

"Sensação da política alemã, Partido Pirata mira agora o Bundestag". DW, 27/03/2012. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/sensa%C3%A7%C3%A3o-da-pol%C3%ADtica-alem%C3%A3-partido-pirata-mira-agora-o-bundestag/a-15840464 Acesso em 14 dez. 2020.

WARK, McKenzie. A Hacker Manifesto. Cambridge: Harvard University Press, 2004.

Créditos

Coordenação e Revisão Pedagógica: Claudiane Ramos Furtado

Design Instrucional: Marina Gabriela Leite Dreher e Luiz Specht

Diagramação: Marcelo Ferreira

Ilustrações: Marcelo Germano e Rogério Lopes

Revisão ortográfica: Ane Arduim e Igor Campos Dutra