Este é o terceiro boletim anual do sistema de monitoramento de qualidade de vida e conservação ambiental da Terra do Meio e o segundo com a série completa de um ano de dados coletados. O sistema visa a produção de indicadores que auxiliem na tomada de decisão para a melhoria das condições de vida das famílias beiradeiras e para a gestão das Reservas Extrativistas Riozinho do Anfrísio, Rio Iriri, Rio Xingu, do Parque Nacional da Serra do Pardo e da Estação Ecológica da Terra do Meio. O sistema de monitoramento parte da premissa de que o modo de vida beiradeiro e os ambientes da Terra do Meio são indissociáveis, e que a diversidade biológica presente no território só existe e é mantida pelo manejo e pela proteção fornecidos pelas comunidades.
As informações aqui apresentadas estão divididas em 4 eixos e trazem dados selecionados em monitoramentos mais amplos mantidos pela Rede Terra do Meio, o Instituto Socioambiental, as associações de moradores das Reservas Extrativistas, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, a Universidade Federal do Oeste do Pará, e a Universidade Federal do Pará, e o MapBiomas.
A origem e a diversidade de alimentos são importantes indicadores de segurança alimentar. Quanto mais alimentos provenientes das matas, rios e roças, melhor tende a ser a alimentação das famílias, bem como tendem a ser melhores as condições ambientais, capazes de fornecer às famílias os alimentos necessários. Em 2024, foram monitoradas 1798 refeições em 56 localidades nas Reservas Extrativistas Riozinho do Anfrísio, Rio Iriri e Rio Xingu. Os registros foram realizados por 25 monitores beiradeiros, que acompanharam algumas famílias por eles selecionadas. As famílias respondiam sobre os alimentos consumidos no dia anterior à entrevista, detalhando o que foi alimento no café, almoço e jantar. As entrevistas foram realizadas entre 01/01/2024 e 31/12/2024.
Esta terceira série de dados de 2024 aponta que as roças e os rios fornecem mais da metade dos alimentos consumidos pelos beiradeiros, tanto em termos de peso como de ocorrência nas refeições. A roça é a principal fonte de alimentos, de onde provém a farinha consumida cotidianamente. Mas as roças não se resumem apenas à mandioca e à farinha. É de lá que também vem a maior diversidade. Foram registrados 37 tipos de alimentos diferentes provenientes das roças beiradeiras.
As famílias beiradeiras desempenham dezenas de atividades em seu cotidiano, otimizando o uso dos diversos ambientes e relações disponíveis em busca de uma boa vida. São atividades produtivas de extrativismo (como a castanha, a seringa, a copaíba, o açaí e o babaçú), agricultura, caça e pesca, que alimentam e geram renda. Há ainda as atividades para o desenvolvimento pessoal e da comunidade, como estudar, participar de reuniões, construir casas, tratar da saúde, e viajar. A diversidade de atividades é um indicador importante sobre o estado do modo de vida, bem como a distribuição do tempo dedicado a essas atividades, que permite inferir que tipo de ambientes têm sido mais frequentados e utilizados.
Em 2024, foram feitos 1097 registros de atividades cotidianas em 39 localidades das três Reservas Extrativistas, por 21 monitores beiradeiros, entre 01/01/2024 e 31/12/2024, cujos dados estão apresentados no primeiro gráfico abaixo. O segundo e o terceiro gráfico trazem um olhar específico sobre o extrativismo, que agrupa as principais atividades relacionadas à floresta. O segundo divide a parcela referente ao tempo dedicado às atividades extrativistas por cada produto declarado. O terceiro reúne os dados provenientes do sistema de controle de entregas de produtos do extrativismo pelas cantinas ribeirinhas da Rede Terra do Meio, de acordo com seu faturamento. A diversidade de produtos para geração de renda também é bom indicador de qualidade de vida pois tem a ver com a possibilidade de escolha das famílias para gerar renda ao longo de todo o ano, de acordo com a sazonalidade de produção da floresta e com as preferências individuais.
Os dados sobre o tempo dedicado às atividades cotidianas indicam que quase metade do tempo das famílias é dedicado à roça, à pesca e aos cuidados da casa, refletindo os dados do monitoramento de alimentação, que trazem o peixe e os produtos da roça como a base do prato beiradeiro. Os dados sobre o tempo dedicado às atividades extrativistas indicam que o maior tempo é dedicado à quebra de castanha e extração de seringa, seguido por uma grande diversidade de produtos como o babaçu, as sementes, a copaíba, o açaí, o Cumaru e o Uxi.
Em relação ao extrativismo, as cadeias relacionadas à castanha (in natura, desidratada, óleo de castanha, e farinha de castanha) foram as mais importantes para a geração de renda, respondendo por mais de 70% da renda gerada. Outras sete cadeias de produtos extrativistas trabalhadas pela Rede Terra do Meio complementaram a renda das famílias. Foram elas: borracha em bloco, sementes florestais, copaíba, babaçu (floco, farinha, óleo e mesocarpo) e cumaru. Ao todo, as cantinas das unidades de conservação entregaram mais de R$623.000,00 em produtos da floresta em 2024. As famílias ainda complementam sua renda com produtos que não necessariamente passam pela Rede, como a farinha de mandioca e outros produtos da roça, a pesca, dentre outros.
Para o monitoramento de biodiversidade foram escolhidas espécies chaves como indicadores da qualidade ambiental. Em particular, a onça pintada (Panthera onca, animal topo de cadeia e considerada quase ameaçada de extinção), a anta (Tapirus terrestris, considerada vulnerável e maior mamífero cinegético), o porcão (Tayassu pecari, vulnerável e importante fonte de proteínas das famílias), e a cutia (Dasyprocta leporina, importante para a dispersão de espécies úteis como a castanheira), e duas espécies da Ordem Galliformes, agrupadas sobre a categoria Mutum (Crax fasciolata e Pauxi tuberosa, com papel chave no processo de dispersão de sementes e manutenção das dinâmicas florestais).
O monitoramento da biodiversidade é realizado na Terra do Meio com dois métodos distintos. O primeiro registra vestígios e rastros em trilhas de uso, como estradas de seringa, piques de castanha, praias, dentre outros. A identificação dos rastros e vestígios é feita pelos próprios beiradeiros a partir de conhecimentos tradicionais que orientam a identificação de pegadas, frutos roídos, fezes, pelos, dentre outros indícios. O segundo método é o avistamento em estações de monitoramento oficiais do ICMBio. Neste método, trilhas abertas na mata para a finalidade específica de monitoramento são percorridas para registro das espécies diretamente observadas e escutadas pelas equipes de monitoramento, que também incluem beiradeiros.
O esforço amostral nas trilhas de moradores foi de 24 percursos, distribuídos entre piques de castanha, açaízais, trilhas de caçada, dentre outros nas RESEX Riozinho do Anfrísio e Rio Iriri. Foram 1240 registros de vestígios e avistamentos, de 30 animais diferentes, uma média de 10 registros por trilha. Nos 24 percursos realizados, foram registrados 6 vestígios e avistamentos de onças, 19 de porcões, 14 de antas, 4 de mutuns, e 25 de cutias.
O esforço amostral das estações de monitoramento foi de 76 percursos percorridos nas Resex Riozinho do Anfrísio, na Estação Ecológica da Terra do Meio e no Parque Nacional Serra do Pardo. Em média os percursos realizados tinham 4.782 metros (5.ooo metros os maiores e 1.150 os menores). Foram identificadas 42 espécies diferentes, com um avistamento de onça, nenhum de porcões, nenhum de antas, 39 de mutuns e 1 de cutias.
Os dados de cobertura florestal e uso do solo são provenientes do projeto MapBiomas e permitem visualizar a proporção de áreas de vegetação natural conservadas, áreas abertas, e áreas que foram desmatadas anteriormente e hoje são pastagem ou estão em processo de regeneração. A regeneração das roças em capoeiras e matas densas faz parte do ciclo agroflorestal do modo de vida beiradeiro e precisa ser considerada em qualquer análise de uso e cobertura do solo. Análises feitas somente a partir do desmatamento acumulado podem trazer distorções sobre o padrão de uso tradicional do território, por não considerarem as dinâmicas de regeneração.
Os dados do MapBiomas são referentes ao ano de 2023 e foram agrupados e revisados nas categorias "Florestas e outras formações naturais" (compreendendo as categorias "Formação Florestal", "Lago, Rio e Oceano", "Formação Campestre", "Campo Alagado e Área Pantanosa", e "Areia" do MapBiomas). A categoria "Roças e áreas em regeneração" (compreendendo as categorias "Vegetação em Regeneração" e "Outras Lavouras Temporárias"). E a categoria "Desmatamento" (compreendendo as categorias "Pastagem", "Mineração", e "Soja").
Os dados de cobertura florestal e uso do solo evidenciam a sustentabilidade do manejo territorial e de roças e florestas realizado pelos beiradeiros. Florestas e outras formações naturais representam mais de 99% da cobertura do solo. Importante destacar também que boa parte das áreas indicadas como "Desmatamento" resultam da ação de agentes externos aos territórios beiradeiros. Entre elas estão antigas fazendas abertas onde hoje estão as Resex Rio Iriri e Rio Xingu, e desmatamentos mais recentes ocorridos nos fundos da Resex Riozinho do Anfrísio, distantes das moradias da beira do rio.