Outras publicações - Antologia XI

Outras publicações - Antologia XI (2007)

A Associação dos Escritores, Pintores, Poetas e Trovadores de Itatiba - AEPTI, publica, anualmente, uma Antologia reunindo dezenas de obras.

Sebastião Mantovani foi convidado a participar da décima primeira edição da obra, lançada em 2007. Muito honrado com o convite, enviou mais um texto de memórias, publicado abaixo.

O animal que não queria morrer

Sebastião Mantovani

Matadouro é um nome que, se por um lado expressa abate de vidas, por outro lembra homens corajosos e destemidos que fazem um trabalho de grande valia, lidando com animais e ferramentas cortantes, com alguma técnica e muita coragem. Assim se apresentava a casa de abate de Itatiba. Sem nenhum aspecto de galhardia, apenas mostrando publicamente local de santa tragédia, ponto de fornecimento de alimento à população.

O matadouro de Itatiba que conheci, e acredito poder dizer que freqüentei, funcionava na década de 50 no final da Avenida Independência, local onde hoje se encontra a Praça Expedicionário Benedito Tinello. O nome da praça é uma homenagem ao itatibense que lutou e se tornou herói na 2a. Guerra, com a Força Expedicionária Brasileira. Próximo dali, a Companhia Brasileira de Fósforos tinha sua produção de palitos, resultante do movimento das máquinas conduzidas pela mão do trabalhador. Parte importante da economia do município, os palitos eram distribuídos pelo Brasil todo. A fábrica ficava nas margens do Ribeirão Jacaré, assim como a CTB (Companhia Têxtil Brasileira, também conhecida como “Tecidos”), um pouco à frente. As indústrias têxteis Pabreu e Scavone, que ficavam uma em frente à outra ocupando quarteirões da mesma avenida, também tinham sua produção conduzida por milhares de trabalhadores. Para chegar ao matadouro, os cavaleiros conduziam os bois, na maioria das vezes, passando pela avenida entre as duas fábricas.

Naquele tempo os poucos bois que vinham para o abate, quando mansos, caminhavam tranqüilos sem estarem presos aos condutores e, quando selvagens, enlaçados aos cavalos dos guias. Como disse, as indústrias têxteis da cidade já davam na época emprego para muita gente. Nas trocas de turno as ruas nas proximidades fervilhavam de trabalhadores. Geralmente no horário da tarde os boiadeiros vinham com animais bravos. Muitas vezes os trabalhadores precisavam esperar a tropa passar para entrar na fábrica e alguns chegavam atrasados no serviço. Os prédios das fábricas eram extensos e não tinham nenhuma porta ou local que permitisse que os empregados que estavam na rua se protegessem quando a tropa passava. Alguns, assustados, às vezes tropeçavam e caíam na busca de um lugar seguro.

Nessa praça funcionava o nosso matadouro, no qual trabalhavam dois profissionais que derrubavam os animais para servir aos poucos açougues existentes na cidade. Meus olhos de jovem os viam como heróis e cruéis ao mesmo tempo. Seu Avelino e Seu Meneguim faziam seu trabalho muito tranqüilamente, mas sem piedade. Empunhavam a faca e passavam com energia a lâmina no amolador afiando bem a ferramenta cortante. Eles possuíam também uma faca de lâmina curta e larga sem ponta conhecida por chopa. Era uma ferramenta especial, cortava nas três laterais e na ponta redonda.

Na época eu trabalhava na fábrica de fósforos e, ao me encaminhar para lá nos dias de abate, apesar de ter dó do animal, eu ia ver o ritual. Ficava do lado de fora da sala onde estavam os abatedores e o animal, numa espécie de dança macabra, preparando-se para desfechar o ato mortal.

O encarregado de derrubar a rês se aproximava com cautela do animal que, nervoso e percebendo seu fim, tentava mostrar resistência e deixava cair de suas narinas fios de babas. O ajudante, também preocupado, pedia ao companheiro: “Cuidado! Muito cuidado!” e o encarregado, num gesto rápido e com muito vigor, introduzia a chopa bem perto do chifre do animal que caía de joelhos e, por fim, tombava o corpo já sem sentidos... O homem que estava em serviço rapidamente passava várias vezes uma lâmina no ferro de afiar e falava para os companheiros: “Solta o laço e joga bastante água no chão para o sangue escorrer”. Para concluir o trabalho, ele introduzia a lâmina de uns trinta centímetros no peito em direção ao coração do animal que, com as patas em movimentos rápidos, demonstrava dor. O sangrador da fera ainda com a faca cravada no peito fazia movimento enérgico para retalhar o coração e apressar a morte.

Acostumado a lidar com os animais mansos que meu pai possuía quando eu era criança, agora eu via e fotograva tudo com os olhos de jovem. Chegava a ficar com os pensamentos fervilhando e a rezar pelo bicho. Depois de morto, os companheiros se cumprimentavam pelo trabalho. Quem gostava mesmo destes abates eram os açougueiros da cidade, que teriam então carne fresca.

Certo dia, fui ver o abate... vi toda a preparação e olhei bem para o boi, que me parecia um “garotão”. Os animais têm um instinto muito forte, eles sentem os bons e os maus tratos e também quando vão morrer. E eu estava lá, no lugar de sempre, para acompanhar tudo aquilo. Olhando por de trás da tábua através de um buraco, vi o boi ser golpeado com a chopa... Como sempre, o bicho ajoelhou... Aí eu fiquei olhando os funcionários afiando as facas e conversando, aguardando a hora de esfaquear o coração do animal. Foi nesse momento que, ainda olhando pelo buraco, ouvi um barulho atrás de mim. Virei-me para ver o que era e, espantado, vi que era o boi que fugira pela porta dos fundos e vinha em minha direção. Ai meu Deus! Que medo! Pedi proteção a Nossa Senhora de Aparecida. Foi quando Seu Avelino e Seu Meneguim surgiram gritando com o boi. Tive muita sorte. Foi só susto.

Muitas vezes, para enfraquecer os animais, eles ficavam presos no curral sem água e sem comida. Via-se a cena triste e silenciosa: os animais de cabeça baixa esperavam a hora de serem conduzidos por um corredor onde só passava um de cada vez. Chegavam em um ponto de parada bem em frente a um tapume onde nada viam à sua frente. Acima de sua cabeça havia uma plataforma onde outro funcionário aguardava que o animal se aquietasse. Quando tudo parecia calmo, o marreteiro desfechava uma potente marretada na testa do animal que bruscamente tombava entre as tábuas juntas sem espaço para que o corpo se mexesse. O tapume se abria e o corpo, já meio morto, escorregava para o salão para receber a última sangria.

Certa vez, trouxeram uma novilha garotona esperta, ligeira. Seus olhos e suas orelhas não paravam. Ela estava pressentindo sua morte e também foi colocada na frente do fatídico tapume. Como os outros animais, recebeu também uma marretada, mas não caiu. Recebeu outra marretada acompanhada de palavrões do marreteiro que dizia: “Eta bicho duro!”. Aí estava o começo da luta pela vida. A novilha, ferida de morte, rodou de lado mostrando que ainda tinha forças para lutar, mas vieram os homens afiando suas ferramentas e rapidamente cortaram uma grande veia do animal. O sangue vermelho encheu o ralo e a novilha, mesmo com o coração picado, continuava viva. Foi um alarme para os homens que nunca tinham presenciado tamanha luta pela sobrevivência. Quando o animal finalmente silenciou, foi pendurado na corrente e sua barriga foi aberta... e então, eis a surpresa! Apareceu um bezerrinho! E respirando! Assustados, os abatedores o colocaram no chão, enquanto ainda saia uma espécie de fumaça de seu corpo - calor da mãe - e comentaram o fato entre si. A cria ficou estendida no chão frio até que a morte também a silenciou.

Eu penso nestes acontecimentos e acredito que a administração da cidade nesta época, vendo os perigos aos quais os trabalhadores das indústrias próximas ao matadouro eram expostos, começou então a planejar a construção de um novo matadouro, o que acabou realmente acontecendo anos mais tarde, no bairro da Ponte, liberando o pátio para novos empreendimentos.

O tempo passou... ruas asfaltadas e pontes surgiram na região onde ficava o antigo matadouro. Junto com ele, desapareceram da região empresas antigas, levando consigo um pouco da memória do local. Outras tantas casas residenciais, comerciais e industriais ali floresceram ajudando a escrever novos capítulos da história da cidade.