Tudo o que você sempre quis saber sobre como se escreve um artigo de filosofia, mas nunca teve coragem de perguntar

A primeira coisa a considerar são estes versos cantados por Caetano Veloso: "Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção. Está provado, só é possível filosofar em alemão."

Se, mesmo sabendo disso e passadas algumas semanas de sofrimento incontornável, o comichão pela filosofia persistir, aperte o cinto e vamos lá. Este guia pode ser útil não apenas para a elaboração de artigos propriamente ditos, mas também TCCs, dissertações e teses, cujos capítulos costumam ter o tamanho aproximado de um artigo.

1. Escolha um tópico ou um problema sobre o que você gostaria de escrever. Em geral as pessoas só descobrem isso depois de já terem pesquisado um pouco. Comece pelo tópico ou problema que você acha que gostaria de pesquisar. Recomendo que escolha um tópico ou problema que seja pessoalmente interessante para você. O benefício do trabalho filosófico em geral só se faz sentir a longo prazo e se o trabalho for de boa qualidade. Mas se você não gosta do assunto, as chances de produzir algo bom são bem menores do que se estiver pesquisando algo que pessoalmente interessa e mobiliza a sua atenção.

2. Faça um levantamento bibliográfico. Pesquise na internet e em bibliotecas tudo que já foi publicado sobre o assunto da sua pesquisa. Monte um arquivo listando todos esses textos. Esse é um trabalho que poderá levar até um mês. Podes começar pela Stanford Encyclopedia, que tem verbetes atualizados com boas referências bibliográficas ou pelo Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica ou fazendo buscas no PhilBrasil e PhilPapers. O objetivo desse primeiro levantamento bibliográfico é coletar tudo o que há sobre o assunto. Não é importante ler todos esses textos nesse momento. Inicialmente o mais importante é saber o que já foi feito por outras pessoas, quem são os autores mais importantes e quais são os textos mais citados e que servem de referência nessa área. Em outras palavras, o mais importante é se ter uma espécie de mapa aproximado do terreno. É importante que esse trabalho seja exaustivo ou quase exaustivo. Se você deixar escapar nesse momento textos importantes, todo o trabalho posterior poderá se mostrar redundante ou irrelevante (pois você poderá acabar escrevendo algo que já foi escrito por outra pessoa) ou mesmo falso (pois poderá ser levado a escrever algo que já foi refutado por outras pessoas). Dedique duas a quatro semanas a esse trabalho de levantamento bibliográfico e tente encontrar tudo o que há sobre o tópico.

3. Ajuste o escopo da pesquisa. Agora que tem em mãos tudo ou quase tudo o que foi publicado sobre o assunto de sua pesquisa, escolha um tópico ou problema mais específico para o seu artigo. Dentro do tópico ou problema inicialmente escolhido, há quase sempre diversas linhas de discussão. Pode haver autores com posições diferentes, ou conceitos diferentes que são usados, ou pode haver lacunas na discussão ou desenvolvimentos históricos distintos. Delimite a sua pesquisa. Escolha um subtópico ou subproblema ao qual você poderá efetivamente contribuir. Essa delimitação pode ser histórica (por exemplo, início do século XX) ou por autores (apenas a posição de um autor) ou por problema (apenas um subproblema dentro do tópico). Delimite o tópico de tal modo que você possa contribuir com algo específico. Se o tópico for muito amplo, você provavelmente só conseguirá escrever generalidades. Se for restrito demais, o resultado de sua pesquisa provavelmente será trivial. Ajuste o escopo do trabalho de modo a que ele seja exequível e fecundo.

4. Refaça o levantamento bibliográfico. Do levantamento bibliográfico inicial, separe aqueles textos que tratam especificamente do seu subtema de pesquisa. Consulte novamente as bibliotecas e a internet, buscando outros trabalhos sobre esse subtema. Veja as referências bibliográficas dos artigos e livros que você já tem em mãos. Alguns desses trabalhos citados por outros autores serão também importantes para o seu trabalho. Identifique quais são os textos mais citados por outros autores. Esses provavelmente serão imporantes para o seu trabalho também. Dedique dois ou três dias a este novo levantamento.

5. Separe alguns textos para ler e resumir. Em geral, uns dez textos já são suficientes. Esse número, é claro, pode variar bastante dependendo do assunto. Mas digamos que no seu levantamento você identificou três textos que são referência para o seu subtema de pesquisa. Esses são textos que quase todos os demais autores citam. Digamos que você também identificou duas escolas de pensamento (duas interpretações, duas concepções ou algo assim) a respeito desses textos iniciais. Em geral há uma sequência de publicações interrelacionadas. Primeiro um autor formulou uma tese. Em seguida, alguém apresentou uma objeção. Depois, outra pessoa defendeu a primeira tese com novos argumentos, e assim por diante. Separe para a sua pesquisa os, digamos, cinco textos mais importantes dessa sequência. Separe também dois ou três textos que podem não ser muito citados ou conhecidos mas que interessam a você pessoalmente. São textos que para você pessoalmente foram esclarecedores ou instigantes. Pronto. Agora você tem aproximadamente dez textos que servirão de ponto de partida para o seu trabalho específico. Leia esses textos e resuma em uma página a tese principal e o argumento principal usado pelo autor para defender sua tese. Faça esse trabalho com o máximo de cuidado e atenção possível. Dedique alguns dias, talvez até uma semana, a cada um dos textos. Se for um livro, separe as partes mais importantes apenas (em geral, um livro contém um ou dois capítulos que são os mais importantes para a tese principal do autor -- são esses que você deverá resumir). Esse trabalho em geral leva uns dois meses. Ao final, você terá aproximadamente dez páginas escritas, resumindo aproximadamente dez textos. É possível que durante esse período, você tenha de fazer ajustes nas suas escolhas bibliográficas. Talvez você descubra que alguns textos que pareciam importantes inicialmente na verdade não são. É provável que isso aconteça. Do mesmo modo, talvez você encontre outros textos que são, agora você sabe, muito importantes para a sua pesquisa. Faça os ajustes necessários na sua bibliografia e resuma os textos mais importantes.

6. Elabore uma hipótese. Agora que você já leu os textos mais importantes do seu subtema de pesquisa e mais dois ou três que são pessoalmente interessantes para você, elabore uma hipótese, isto é, uma contribuição sua. Se você fez de maneira atenta e cuidadosa o levantamento bibliográfico e os resumos, essa hipótese já apareceu em sua mente. Ao longo das leituras, você foi se inclinando mais para um lado ou outro. Alguns textos pareceram melhores, mais fortes ou cogentes. Algumas objeções a esses textos feitas por outros autores pareceram irrelevantes ou fracas. Em outras palavras, você foi se posicionando sobre eles à medida que os lia. A sequência de textos que você leu ou resumiu terá agora um próximo texto, que será o seu. O que você tem a dizer sobre a discussão até agora? Qual colocação é mais adequada neste momento? Essa será a sua hipótese. Sua hipótese pode ser apenas um balanço reflexivo do estado atual da discussão. Isso é o que se chama às vezes de "artigo de revisão da literatura". São artigos que mapeiam o terreno e dizem que questões ficaram para trás e quais estão abertas neste momento. Esse é um tipo de contribuição muito valiosa que se pode fazer. Não é uma tarefa fácil, pois exige compreensão global da discussão e poder de síntese. A maioria dos TCCs e Dissertações de Mestrado são desse tipo. Mas talvez alguma ideia diferente tenha aparecido para você. Talvez você tenha descoberto que há uma lacuna importante na discussão, isto é, que niguém até agora falou sobre um aspecto do problema que você considera relevante. O seu trabalho então consistirá em suprir essa lacuna. Talvez você tenha descoberto uma confusão: alguns autores estão usando de modo ambíguo algum conceito, ou interpretado mal uma tese. Nesse caso, seu trabalho consistirá em desfazer essa confusão. Talvez você tenha descoberto uma resposta a uma questão que está aberta na literatura. Nesse caso, seu trabalho consistirá em apresentar essa resposta. Mas seja qual for o caminho adotado por você, não tente ser original. Deixe que a originalidade surja espontaneamente. Não finja ser o que você não é. Se o seu trabalho não é original, não faz mal. Escreva um artigo de revisão da literatura. Essa será a sua contribuição. Deixe que a originalidade apareça, se aparecer, no momento adequado. Não temos como controlar esse tipo de coisa. Reconheça o seu momento e abra-se para o futuro sem ficar se julgando.

7. Redija um esquema do seu artigo. Agora que já tens o levantamento bibliográfico, o resumo dos textos mais importantes e uma hipótese de trabalho, elabore um esquema do que você gostaria de dizer no seu artigo. Em geral, um artigo tem introdução (1-2 páginas), três seções intermediárias (4-5 páginas cada) e uma concluão (1-2 páginas). Claro, isso varia muito. Mas se não sabe como começar, podes usar esses números como guia, ao menos por enquanto. Antes de redigir o artigo, você precisa saber dizer em uma ou duas frases o que você quer mostrar com o seu trabalho. Que contribuição você quer dar? Essa é a sua tese, derivada da sua hipótese de trabalho. Se é um artigo de revisão da literatura, você terá como objetivo mostrar qual é o estado da arte sobre um tema ou questão. Se você quer desfazer uma confusão cometida por outros autores, então esse é o seu objetivo. Se você quer responder uma questão que está aberta, então esse é objetivo. E assim por diante. Antes de começar a redação, é imprescindível que você saiba onde quer chegar. Toda a redação depende disso. Depois de identificada a sua tese, pense sobre como você vai argumentar em favor dela. Como você vai mostrar aos seus leitores que sua tese é verdadeira. Que argumentos você tem. Se é um artigo de revisão da literatura, você deverá primeira apresentar os textos clássicos (que servem de referência para toda a discussão), depois os desenvolvimentos mais recentes e por fim que questões estão abertas. Temos aí as três seções de um artigo, por exemplo. Se queres desfazer uma confusão cometida por outros autores, você pode começar apresentando os autores que cometem essa confusão, depois explicar as tentativas de desfazer essa confusão feitas por outros autores e por fim apresentar a sua própria solução. Novamente, temos aí as três seções de um possível artigo. Se você quer apresentar uma resposta nova a uma questão que está aberta na literatura, você pode começar apresentando a questão, em seguida apresentar as soluções (equivocadas ou insuficientes) de outros autores e por fim apresentar a sua solução. Novamente, três seções. Claro, um artigo pode ter mais ou menos seções, ou mesmo nenhuma seção. O mais importante é que ele tenha uma estrutura adequada ao que você quer mostrar. A introdução do artigo deve antecipar ao leitor a sua tese (conclusão) e o caminho que você seguirá para chegar até ela. A conclusão deve apresentar novamente a sua tese, agora como uma consequência do caminho percorrido. A introdução antecipa, a conclusão relembra. Antes de redigir o artigo, redija um esquema, do seguinte tipo:

Título: ...

Introdução: ....

Seção 1: ...

Seção 2: ...

Seção 3:...

Coclusão: ...

Escreva uma frase ou duas resumindo o que você pretende fazer em cada segmento. O ideal é apresentar oralmente esse trabalho (talvez com auxílio de um handout ou powerpoint) a seus colegas antes de redigir o artigo. Durante a apresentação oral ficarão evidentes para você e para os escutam quais são os pontos fracos do trabalho e que precisam ser melhorados antes da redação. Acrescente novas frases ao seu esquema, tornando mais completo ou explícito o seu argumento. Ajuste e refine a formulação de sua tese. Refaça a apresentação oral tantas vezes quanto possível. Se você já sabe o que precisa dizer, a escrita depois fluirá naturalmente.

A respeito de como fazer uma apresentação oral, este vídeo contém dicas muito valiosas: https://www.youtube.com/watch?v=Unzc731iCUY

8. Redija o artigo. Agora você pode começar a redação do artigo. Isso pode ser agora feito rapidamente. Trata-se apenas de colocar no papel o que você já apresentou oralmente. Na redação, o mais importante é a revisão. As primeiras versões do seu trabalho não ficarão boas. É assim com todo mundo. Apenas muito raramente alguém acerta a mão logo de primeira. Em geral, são necessárias umas dez revisões (talvez mais) até que o texto fique pronto. As partes têm de se ajustar umas às outras, a linguagem tem de ser precisa, mas não pode ser pesada demais. A redação tem de fornecer ao leitor uma ideia intuitiva do que está sendo dito, além apresentar explicitamente a tese e os argumentos. Frases longas devem ser evitadas. Rodeios e floreios podem ser bonitos, mas podem também atrapalhar. Enfim, não é fácil! Escreva, brinque com as palavras, deixe elas se acomodarem umas às outras, veja o que soa melhor. Depois peça para alguém ler o seu texto e escute o que elas tem a dizer. Deixe passar alguns dias, releia você mesmo o seu texto e faça os ajustes necessários. Depois de repetir esse processo algumas vezes, você notará que o texto não está ficando melhor. Você está trocando seis por meia dúzia. Isso indica que o texto está pronto.

Sobre o estilo da redação, as dicas deste texto de Vinícius de Moraes são bem proveitosas: Os elementos do estilo.

9. Onde publicar? Se o artigo ficou bom, talvez você queria publicá-lo. Há um grande número de revistas de filosofia no Brasil e no exterior. Algumas são melhores que outras. Pode-se consultar algumas classificações para se ter uma ideia geral, mas é bom ter em mente que não há nenhuma classificação geral confiável. Todas têm distorções. Alguḿas revistas são especializadas em uma área da filosofia (por exemplo, epistemologia, ética, Kant, filosofia da ciência etc.) outras são gerais e publicam material de todas as áreas. Algumas só publicam artigos em inglês, outras aceitam artigos em português. Algumas aceitam artigos de estudantes de graduação, outras não. Encontre uma revista adequada ao seu artigo. Uma boa ideia é submeter o seu artigo a uma revista que tenha publicado um ou mais dos artigos que você cita. Consulte a página da revista na internet e veja como é o processo de submissão. Caso o artigo seja rejeitado (isso pode levar até seis meses), leia atentamente os pareceres e tente ajustar a tese e os argumentos do seu artigo de tal modo a torná-lo imune às objeções feitas pelo parecerista. Em geral esse processo é muito útil. A maioria dos artigos que eu tenho publicado foi rejeitado pelo menos uma vez antes de ser aceito por alguma outra revista. Um de meus artigos foi rejeitado dez vezes antes de ser aceito. A versão que acabou sendo aceita é de fato bem melhor que as versões que foram rejeitadas, graças ao trabalho dos pareceristas. Quando recebemos uma crítica, podemos aprender alguma coisa. Quando recebemos um elogio, não aprendemos nada e corremos o risco de inflar o ego. Mas, claro, há também as críticas que nada ensinam e os elogios que estimulam.

O ranking de periódicos da Capes, pode ser consultado no item "Qualis" da plataforma Sucupira. Um ranking informal de revistas de língua inglêsa pode ser consultado no site Philosophical Gourmet.

Algumas revistas brasileiras: Manuscrito, Kriterion, Principia, O que nos faz pensar, Discurso, Analytica, Conjectura, Philósophos, Veritas, Filosofia Unisinos, Ethic@, Dois Pontos, Principios, Dissertatio, Cognitio, Cadernos de Filosofia Alemã, Cadernos Nietzsche, Sképsis

Algumas revistas brasileiras que aceitam trabalhos de estudantes (algumas delas editadas por estudantes): Cognitio-Estudos (PUC-SP), Investigação Filosófica (UNIFAP), Controvérsia (UNISINOS), Thaumazein (UFN), Intuitio (PUC-RS), Ítaca (UFRJ), Primeiros Escritos (USP), Pólemos (UnB), Inquietude (UFG), Refilo (UFSM)


Vídeo desta seção

How to speak, by Patrick Winston (MIT)