Travessias

"Escrevo ouvindo o som do mar produzido pelo vídeo art de Francis Alÿs: “Don’t Cross the Bridge Before You Get to the River”

Francis Alys é um artista Belga radicado no México. Sua produção artística é variada e explora o espaço urbano, tensionando a política e a poética. Em agosto de 2008, com o projeto Gibraltar, ele propõe uma fila de crianças, cada uma carregando um barquinho feito de chinelo, deixando a Europa em direção ao Marrocos, enquanto uma segunda fila sairia do Marrocos em direção à Espanha. As duas filas se encontrariam no horizonte. Construindo uma ponte de crianças entre a África e a Europa, o artista nos convida a pensar sobre o que faz contato entre mundos tão heterogêneos? Quais as condições de encontro e de contato entre esses mundos?

"Don’t Cross the Bridge Before You Get to the River" (2008), de Francis Alÿs

Tanto mar!

Atravessei um oceano para chegar à Bonneuil. Para o encontro com o estranhamente familiar, com o horror provocado pelo infantil que é, ao mesmo tempo, testemunha desse inumano em nós; das crianças estranhas e de nossa própria estranheza, mas também, de nossa alienação fundante no Outro e de seus efeitos, paradoxalmente, constitutivos e engolidores.

Rilke nos diz que “cada um de nós habita uma ilha diferente” e que “para passar de uma ilhota a outra há somente uma possibilidade: perigosos saltos, nos quais se arrisca mais do que os pés” (2011,p. 125) E Saramago, em O conto da ilha desconhecida, diz: “todo homem é uma ilha...Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não vemos se não nos saímos de nós”. (1998, p.41)

Orientada pela questão sobre como fazer laço com o outro, como criar pontes e pontos de contato entre ilhas, começo a tecer os contornos de uma geografia da proximidade.

Aportar em terras estrangeiras, escutar a melodia de outra língua, orientar-se num novo território, ler os mapas, pensar os trajetos nunca antes percorridos, trouxeram muitas questões: como se dá esse encontro com o estrangeiro? Como tornar o espaço estranho/estrangeiro um lugar familiar? Como se estabelece uma relação com o próximo, o exilado, o estrangeiro, o visitante? Como seremos recebidos pelo outro? Como o receberemos? Em que língua falaremos, na do hóspede ou do estrangeiro?

“A hospitalidade se apresenta como uma ponte entre dois mundos: o exterior e o interior, o fora e o dentro” o eu e o outro. Na mitologia grega, como nos lembra Jean-Pierre Vernant (apud Grassi, 2011, p.46), “Héstia é a deusa do lar, sendo o próprio lar o interior e a interioridade por excelência, enquanto Hermes é o arauto, o mensageiro, o embaixador, o movimento, o exterior. Héstia está no centro da casa, é sua guardiã. Hermes está na soleira da porta”. Como podemos adentrar, penetrar nesse espaço (urbano, doméstico e mesmo psíquico) o espaço do outro, da alteridade? De que modo Hermes guia o viajante, o estrangeiro até Héstia?"


Excertos da dissertação "Cartografias do contato: uma experiência em Bonneuil" (disponível aqui).