Sei de onde você vem


"Bonneuil começava a se apresentar como a casa de Buster Keaton (One Week – 1920) em que a personagem compra uma casa pré-fabricada e a monta assim: “a porta fica no terceiro andar e, quando ele sai do quarto, cai no vazio. A lareira joga água no térreo. A fumaça sai pelas janelas. E Buster anda pelo teto” (Polack, 2013, p. 34)."

Após circular pelo espaço da escola, naquele primeiro dia, e ser apresentada para os adultos, sentei com alguns educadores na mesa próxima à cozinha. Tomávamos um café que nos aquecia o corpo e iniciávamos uma conversa quando algo inusitado aconteceu. Valente, o guri de olhos azuis cor-de-céu-ensolarado, aproximou-se e atirou uma xícara de café em nós. Bolsas, casacos, cabelos lavados de café. Lembrei-me de Evgen Bavcar contando em Memória do Brasil, suas delicadas lembranças de infância. Dizia ele:

Lembro de ter ouvido pela primeira vez este nome mágico, Brasil, associado ao café que minha mãe esmagava num moedor ainda manual. Havia pouco café naquela época e seu cheiro pertencia às coisas de minha infância relacionadas a experiências únicas, cheias de riqueza e de atenção. Para nós, o café era quase uma espécie de néctar dos pobres, uma ambrosia destinada aos que de vez em quando queriam transformar o cotidiano num dia de festa, pondo à mesa uma mercadoria tão rara em minhas lembranças eslovenas (Bavcar, 2003, p. 77).

Recém-chegada e contente por realizar meu sonho de conhecer Bonneuil, deparei-me com essa recepção não muito hospitaleira, talvez até mesmo hostil, daquele adolescente francês. Um susto, um instante, uma quebra, uma queda. Algo ali caía para além do café sobre mim. Momento de suspensão. Um buraco se abria. Um vão, uma passagem?

Teria, em Bonneuil, para além da soleira da porta que atravessei, outras entradas possíveis?

Estaria Valente me convidando a cair pela porta-buraco, pela porta-vão, e conhecer seu mundo-casa? Esse jovem anfitrião de 15 anos, o porteiro dessa casa-outra, não falava. Rastejava, cheirando o mundo. Cumprimentava-nos cheirando nossos cachecóis enrolados nos pescoços.

Aceitei o banho de café como um boas-vindas, sei de onde você vem; como aceitamos a bebida que o anfitrião nos oferece quando chegamos a sua casa, como um convite a conhecer essa outra casa, cuja porta era um buraco através do qual muitas coisas seguiriam caindo: eu mesma, minhas certezas, meus saberes sobre psicose, meus sonhos de Bonneuil, mas também onde outras geografias, outras formas de contato iriam se delinear se eu aceitasse entrar.

Excertos da dissertação "Cartografias do contato: uma experiência em Bonneuil" (disponível aqui).