Instituição estilhaçada




"Para constituir o espaço de uma casa habitável e um lar, é preciso também uma abertura, uma porta e janelas, é preciso dar passagem ao estrangeiro. Não existe casa ou interioridade sem porta e janelas" (Derrida, 2003, p. 55).

As crianças que são recebidas em Bonneuil trazem graves entraves no desenvolvimento psíquico, como a dificuldade em simbolizar as experiências de ausência-presença, de separação e perda. Em função disso, a escola busca oferecer a possibilidade de vivenciar ou recuperar processos de simbolização. Estruturada com pilares e vigas que garantem a permanência, a escola oferece diversas aberturas: portas, janelas, espaços vazios para o ir e vir, para a criação, para encontros e desencontros, para novas construções e experiências. Desde seu início, Mannoni propunha que Bonneuil fosse uma instituição aberta para o mundo (1990, p. 73) e um lugar de passagem. Lugar onde as crianças e adolescentes ficariam o tempo necessário para se sentirem prontos a seguir um projeto de vida fora de Bonneuil e fora de outras instituições, projeto este, construído durante sua passagem por Bonneuil.

Colocando-se contra as instituições totais sem, contudo, recusar a instituição, Mannoni propõe a instituição eclatée. Este conceito apareceu por escrito, pela primeira vez, no livro de Mannoni, Educação Impossível (1988, p. 75). Ele não é fruto de um modelo teórico aplicado à prática, mas surge das experiências e tentativas de encontrar respostas para o funcionamento dessa instituição que, desde seu início, se caracterizava como aberta e experimental. E nesse sentido, experimental aponta, justamente, para uma instituição em que há espaços vazios para acolher a vida no que ela traz de imprevisto; em que há a possibilidades de se criar brechas, fissuras para propor e experimentar o novo, para escutar e acompanhar o que pode surgir de diferente.



Aberturas, brechas, fissuras, intervalos, cortes instauram a falta abrindo espaço para o surgimento do sujeito. A instituição estilhaçada, com suas fissuras e brechas me remete a obra Building Cuts do artista Gordon Matta Clark.


Um dos seus trabalhos de maior destaque é denominado “Building Cuts”. Verdadeiros cortes em edifícios ou construções abandonadas dando a ver a estrutura, a ordem e a vida a que essas construções foram capazes de dar suporte.

A escola fundada por Mannoni, por sua vez, proporciona cortes, espaços vazios e brechas para dar suporte ao surgimento do sujeito. Bonneuil é uma casa-escola onde se iniciou uma aventura clínica à margem* do já estabelecido e onde foi preciso inventar tudo (Mannoni, 1995, p.76). O constante questionamento que se faziam em relação ao funcionamento da instituição, tinha e segue tendo a função de não deixar a rotina se instalar. Porém, era preciso estabelecer um referencial mínimo de funcionamento. Era preciso instituir a noção de permanência, pois Mannoni percebia a angústia e afetação das crianças em relação às mudanças, por exemplo, na deserção dos adultos em algumas oficinas. “Quiséssemos ou não, era preciso assegurar a existência de um enquadre, de uma permanência, na qual a expressão livre pudesse ter lugar” (Mannoni, 1995 [1923], p.76).

Segundo Geoffroy (2004, p.29) o conceito de instituição estourada surge, entre outros motivos, em resposta à declaração de uma criança que queria deixar aquela escola de loucos para confrontar-se com o mundo normal. Mannoni, levando a sério o desejo da criança, resolve acompanhá-la no risco de deixar a proteção de Bonneuil e experimentar a vida.

Compondo as ideias de instituição aberta e de passagem com a necessidade de permanência e considerando a constituição psíquica do sujeito fundada na psicanálise, Mannoni, a partir da experiência em processo, que acontecia em Bonneuil, vai fundamentando o funcionamento da escola nos conceitos freudiano do “Fort Da” e lacaniano de “Simbólico”. Estes conceitos psicanalíticos não são somente utilizados para a compreensão da constituição subjetiva do sujeito e das relações interpessoais, mas também para estruturar o funcionamento da instituição (Geoffroy, 2004, p.27).

Portanto, em vez de oferecer permanência, a estrutura da instituição oferece, sobre uma base de permanência, aberturas para o exterior, brechas de todos os gêneros (por exemplo, estadas fora da instituição). O que sobra: um lugar de recolhimento, um retiro; mas o essencial da vida desenrola-se em outra parte – num trabalho ou num projeto no exterior. Mediante essa oscilação de um lugar ao outro, poderá emergir um sujeito que se interrogue sobre o que quer (Mannoni, 1988, p.79-80).

* Como diz Mannoni em entrevista à Lajonquière e Scagliola (1998, p. 20) à margem se situa na contramão da medicalização própria das instituições hospitalares e do enquadramento de crianças débeis, psicóticas, etc. próprias do sistema especial de educação com o objetivo de lhes ensinar os conteúdos curriculares.
Excertos da dissertação "Cartografias do contato: uma experiência em Bonneuil" (disponível aqui).