História de Bonneuil

Gaston Bachelard, nos diz que há um sentido para tomar a casa como um instrumento de análise da alma humana. “Nossa alma é morada. E quando nos lembramos das casas, dos aposentos, aprendemos a morar em nós mesmos”. (1974, p. 355)

Um grande jardim com duas casas abriga a Escola Experimental de Bonneuil. A escola que foi criada no rastro dos acontecimentos de maio de 68 e que veio, como uma brisa utópica, romper com as formas de autoritarismo e aprisionamento da vida, com o cenário asilar que imperava na época, com os saberes psiquiátricos instituídos, trazendo toda sua força de transgressão. A escola que experimentou novas formas de convívio com aqueles que foram excluídos dos circuitos pedagógicos ou familiares, propondo outras maneiras de se conviver com a diferença. A escola que, criando brechas, espaços vazios, tira partido de tudo que de insólito possa surgir (Mannoni, 1988, p. 79), apostando na vida enquanto possibilidade de invenção, improviso, imprevisto e encontros. Uma casa aparentemente comum, como tantas outras daquele pequeno subúrbio de Paris, chamado Bonneuil-sur-marne.

Bonneuil foi criada tendo como pano de fundo e influências acontecimentos potentes no campo da saúde mental nos anos 60/70. Mannoni, bebendo de muitas fontes (a antipsiquiatria inglesa e italiana dos anos 60, a psicoterapia institucional decorrente da reforma psiquiátrica francesa, as análises de Erving Goffman sobre instituições totais, os trabalhos de Michel Foucault e Winnicott e, fundamentalmente, a psicanálise lacaniana com seu retorno à Freud), entendia a importância da existência de um lugar que pudesse acolher a angústia de sujeitos fragilizados psiquicamente sem, no entanto, ter como única possibilidade a oferta de uma instituição asilar total.*

Ao trabalhar e conhecer instituições asilares em Paris, Mannoni dirá que só há uma saída para os psicóticos: “a reavaliação radical da instituição” (1990, p.42). Nesses serviços hospitalares públicos, não se ajuda os jovens a viver, criar e trabalhar. Eles “são ocultados aos olhos do mundo, fazendo-se deles doentes por toda a vida” (1990, p. 42). Além disso, com a antipsiquiatria vem a “descoberta de que a instituição psiquiátrica contribui para criar o estatuto do doente mental” (1990, p. 78).

Diante da situação asilar existente na França e dos movimentos de recusa da instituição como ocorreram na Itália (iniciado por Basaglia) e na Inglaterra (movimento visando a supressão dos hospitais psiquiátricos nos anos 60/70), Mannoni vai percebendo as dificuldades colocadas para os sujeitos tanto em relação à instituição total (onde se é abolida a esperança de retornar à vida normal, pois os sujeitos são institucionalizados por toda a vida) quanto em relação à ausência de uma instituição que possa acolhê-los e tratá-los em momentos de grande dificuldade. Existe situações em que um sujeito se sente em perigo a ponto de procurar uma segurança na prisão ou no asilo psiquiátrico. Nessas situações, é preciso um lugar de acolhida, é necessário inventar esse lugar para ajudar e acompanhar o paciente a se arriscar a viver (Mannoni, 1990, p.79).

O ‘risco de viver’ necessita de um acompanhamento que se prolonga por vezes por longos anos. Na falta dele, o jovem está como que trancado numa sala em que todas as saídas estão bloqueadas. Dizem a ele: ‘Você está livre’. Mas ao mesmo tempo, dão-lhe a entender que está completamente indefeso e que o mundo exterior é composto apenas de lobos perigosos e famintos (Mannoni, 1990, p. 42).

Ao criar Bonneuil, Mannoni buscou romper com as estruturas institucionais asilares e totais existentes dando lugar à experimentação sem, contudo, cair num espontaneísmo. Com a instituição estilhaçada, fundada em conceitos psicanalíticos, ela buscou escapar dos males e abusos de toda instituição fossilizada, protegendo-se dos perigos de um laxismo (Mannoni, 1990, p. 74).

Neste sentido, Bonneuil foi criado para ser um lugar de passagem, lugar em que as crianças e adolescentes possam desenvolver, ambicionar e construir, com a ajuda dos adultos, um projeto de futuro próprio fora da escola e, de preferência, na cidade, inseridos no laço social e não em outra instituição. Portanto, eles permanecem em Bonneuil até a idade de 20 -25 anos no máximo. É importante que haja esse limite, pois ele faz função para construção da saída dos jovens e para o posicionamento dos adultos frente a essa saída.

*Segundo E. Goffman, um dos aspectos centrais da instituição total consiste em realizar as três esferas da vida: dormir, brincar e trabalhar no mesmo local, sob uma única autoridade, na companhia de um grupo, seguindo horários determinados e fixados por um sistema de regras. Caracterizam-se ainda por serem estabelecimentos fechados em regime de internação, como forma de disciplinar os indivíduos “não socializáveis” ou excluídos da sociedade, como os loucos, os órfãos, os leprosos. Considera-se instituições totais os leprosários, presídios, sanatórios, manicômios.https://analiseinstitucional.wordpress.com/2008/12/12/sobre-as-instituicoes-totais/
Excertos da dissertação "Cartografias do contato: uma experiência em Bonneuil" (disponível aqui).