Faça seu lugar

“Il faut faire ta place”: esse é o convite ao trabalho para quem chega à Bonneuil. Em Bonneuil não nos é dado um lugar de técnico, de psicólogo ou de estagiário. É preciso fazer o seu lugar! Quase sem bússolas e um tanto à deriva, sem poder funcionar com meu corpo acadêmico ou mesmo clínico, precisava estar aberta para o encontro apostando na capacidade dos corpos de afetarem e serem afetados, como nos diria Spinoza em sua “Ética”.

Bonneuil fez seu lugar no mundo ocupando seu espaço na arquitetura de uma casa. Uma casa que se desdobra em tantas outras.

Bachelard, com seu texto A poética do espaço, foi quem me ajudou a pensar Bonneuil como um espaço-casa. Casa que abriga e protege, que dá contorno e lugar, ritmo e atividade, possibilidades de criação e de contatos diversos, que possibilita sonhar!

Mas foram as crianças que me apresentaram uma casa-outra. Uma estranha casa estilhaçada, estourada por toda parte, que brinca de esconde-esconde com suas janelas e portas secretamente localizadas e que mudam de lugar: tornam-se altas ou baixas demais, aparecem e desaparecem, surpreendem quando contrariam e enganam o passante, alegre por pensar ter achado uma saída ou uma entrada.

Bonneuil é também a casa regida pelos jogos do Fort-da, do vaivém incessante das aparições e desaparições, da perda e da recuperação, dos movimentos do fundo para superfície, do corpo puro para o corpo simbólico, daquele pedacinho de carne a ser contornado pela linguagem para aceder a uma certa humanidade.

É ainda a casa eclatée, com seus inúmeros corpos-cacos, em busca de um novo desenho, uma nova colagem que lhes possibilite um contorno, mesmo que fissurado, esboçado, mas que poderá servir para as travessias entre um interior e um exterior, entre sujeito e mundo, que poderá servir para garantir a busca de conexão e contato.

Essa estranha casa-escola-hospital não se situa nem em uma margem (educação) nem na outra (saúde), não é nem escola e nem hospital em seus termos tradicionais, apesar de ser nomeada como escola e registrada como hospital-dia. Tem sua origem fincada na esteira dos acontecimentos de maio de 68 e da reforma psiquiátrica, fazendo frente às burocracias e formas de controle da vida.

Bonneuil, essa casa onde se iniciou uma aventura clínica à margem* do já estabelecido e onde foi preciso inventar tudo (Mannoni, 1995, p.76), traz os ares de uma utopia que já teve lugar e avança em direção e rumos pautados por experimentações. E nesse sentido, experimentar aponta, justamente, para uma instituição em que há espaços vazios para acolher a vida no que ela traz de imprevisto; em que há a possibilidade de se criar brechas, fissuras para propor e experimentar o novo, para escutar e acompanhar o que pode surgir de diferente e onde os regulamentos tradicionais ou os protocolos de funcionamento e aprisionamento da vida não se aplicam. É assim que a vida acontece na Escola Experimental de Bonneuil-sur-marne.

*Como diz Mannoni em entrevista à Lajonquière e Scagliola (1998, p. 20) à margem se situa na contramão da medicalização própria das instituições hospitalares e do enquadramento de crianças débeis, psicóticas, etc. próprias do sistema especial de educação com o objetivo de lhes ensinar os conteúdos curriculares.
Excertos da dissertação "Cartografias do contato: uma experiência em Bonneuil" (disponível aqui).