O pneu furado

A ambulância Elba que tínhamos para nos levar à zona rural, após o tragicômico episódio de São Gonçalo do Bação, foi entregue à oficina e passamos algumas semanas no paraíso, utilizando uma Chevrolet Ipanema nova, com ar condicionado, vidro elétrico e muitos cavalos de potência.

 

Não demorou, entretanto, para a antiga Elba estar de novo pronta para o combate. Apesar dos problemas – o pior deles era o banco do carona, onde devido à adaptação da maca, não havia cinto de segurança e o rosto ficava distante apenas alguns centímetros do parabrisa – rapidamente nos acostumamos à velha guerreira. Continuávamos sem motorista, mas isto já não nos incomodava mais.

 

A realidade é que acabava sendo divertida a viagem, pois éramos dois, e revezávamos na direção, com um fazendo rally na terra e o outro tentando recuperar o sono na maca. Invariavelmente chegávamos com nossas roupas brancas marcadas ora pelo cinto de segurança, ora pela braçadeira da maca.

 

Mas naquela tarde, indo para Acuruí e Bonsucesso, o desfecho tornou-se inesperado. Mal saímos da cidade, e de qualquer possibilidade de apoio de moradores, e o veículo começou a perder a estabilidade. Seguido daquele “tum-tum” típico de pneu em calibragem zero. Sim, um pneu furado.

 

Tudo bem, permaneci tranqüilo. Pedi a Mendes que parasse em uma reta e trocaríamos o pneu sem maiores problemas. Mal sabia eu que teríamos maiores problemas. Carro parado, procuramos o triângulo sinalizador, e a muito custo o achamos, colado na lateral interna do carro. O bendito triângulo não tinha base e, sendo assim, não ficava em pé. Acabamos por enterrá-lo na areia fina da estrada.

 

Próximo passo: chave de roda. Pega a chave aí, Mendes. Onde? Procura! Não tem! Sério? Sério. Colocamos a culpa nos mecânicos da oficina. E agora? Longe de tudo, no meio do nada. Nem um carro passando (nesta hora, é Lei de Murphy na certa). Bom, vamos procurar uma fazenda aqui perto.

 

Nos lembramos de uma casa três curvas antes, e descemos a pé. Chegando lá, foi impossível entrar, visto que os cães começaram a latir antes de nos aproximarmos. Com muito custo e algum medo, conseguimos chamar a atenção do dono. Rapidamente explicamos quem éramos, e conseguimos que o mesmo emprestasse sua chave de roda.

 

Retornamos à ambulância, e para nosso desespero, a chave não servia. Em meus breves anos de motorista, sempre achei que fosse algo padronizado para todos os veículos. A chave não encaixava. Voltamos ao dono, que não tinha outra (afinal, quem em sã consciência tem uma coleção de chaves de roda?).

 

Quando tudo parecia conspirar contra, veio a luz. Ou melhor, a sombra. Pois não é que Mendes, ao retornar e sentar-se no banco do carona, involuntariamente acha a bendita chave de roda da Elba em baixo do banco? Breves três minutos de xingamentos depois, colocamos o macaco em baixo do veículo e começamos a içá-lo. Para o nosso desespero, a areia fofa da estrada tira o atrito do macaco no exato momento em que retiramos a roda, e a Elba fica literalmente no chão.

 

Neste momento o atraso já superava uma hora e estávamos no marco zero. Pensamos em desistir, mas nada iria afetar a boa fé daqueles homens da saúde. Recolocamos o macaco, utilizamos algumas pedras para escorá-lo, levantamos o carro e trocamos o pneu na marra.

 

Nos preparávamos para sair quando neste exato momento passa um carro por nós sem sequer reduzir para ver o que acontecia com aquele veículo público municipal. Obviamente, a poeira levantada quanto estávamos no fim da troca, fora do carro, cansados e principalmente suados, foi o suficiente para transformar o nosso suor em lama.

 

Sujos, atrasados e suados, retomamos o destino de nossa tarde de quarta-feira. Alguns quilômetros depois, lembramos de voltar para pegar o triângulo. No meio da poeira acabamos esquecendo de guardá-lo. Chegamos a Acuruí onde milagrosamente os pacientes não haviam desistido de mim. Mendes ainda pegaria mais alguns quilômetros de terra até Bonsucesso.

 

No final daquele dia, esperando por Mendes na porta do Centro de Saúde de Acuruí, remoia o caso, procurando entender o que se deve fazer quando tudo conspira contra. A resposta não estava clara, mas me pareceu que ao menos uma coisa fazia sentido: realmente aquelas pessoas precisavam de mim, e os atendimentos daquela tarde foram os mais proveitosos do período em que estive em Itabirito. Aquela gente passava diariamente toda a dificuldade que experimentamos em uma tarde, e ainda assim minha chegada foi recebida com vários sorrisos.

 

A dificuldade enfrenta-se, e a oportunidade lamenta-se. Dificuldade vencida, não houve lamentos naquela tarde, somente a sensação do dever cumprido.