Breve História da Flauta no Brasil

por André Medeiros

Os primórdios

Na segunda metade do século XVIII em diante, durante os anos coloniais na então província de Minas Gerais, aconteceram muitas apresentações de música sacra e profana, tanto orquestral como de câmara, devido à influência de alguns importantes e prolíficos compositores como o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) e Lobo de Mesquita (1746-1805). Obras como a Missa da Coroação e o Credo, de autoria de Garcia, enriqueceram as comemorações litúrgicas e populares e eram baseadas estritamente nos parâmetros de composição européia, seguindo as regras firmemente estabelecidas para os cânones e rituais barrocos e clássicos. Essas manifestações musicais misturaram-se às influências locais dos mestiços.

Com o passar do tempo, os instrumentos de sopro - tanto de madeira (flautas, fagotes e clarinetas) como de metal (trompetes, trombones e trompas) - foram aos poucos sendo introduzidos no nosso país, vindos da Europa. Esse tipo de música sacra passou a ser tocada nos espaços públicos e teatros, em companhia de polcas e ritmos típicos brasileiros (quadrilhas, modinhas, dobrados e polcas adaptadas). Novos ritmos e harmonias começaram a florescer.

É muito provável que o uso contínuo das flautas tenha realmente começado a acontecer nos anos de 1700. Flautas doces e transversas barrocas passaram a ser mais usadas.

Século XIX

Nosso próximo passo nos leva a 1808, com o estabelecimento da corte real portuguesa no Rio de Janeiro. O Rio, por motivos políticos, foi subitamente transformado na capital do reino de Portugal e, com isso, grandes mudanças aconteceram na vida da cidade. Junto com a corte, surgiram novas oportunidades de emprego nos órgãos do governo e emergiram os ricos e a classe média. Os portugueses também trouxeram com eles estilos musicais europeus como mazurcas, polcas, xotes e valsas, assim como instrumentos novos como o piano, a clarineta, o violão (guitarra espanhola), o bandolim e o cavaquinho (small guitar).

Em 1821, depois do retorno da corte portuguesa a Lisboa, a polca foi apresentada como uma dança, no Teatro São Pedro, no Rio de Janeiro, e tornou-se, imediatamente, uma nova moda musical. Todos passaram a andar e vestir-se “à moda da polca”. O mesmo aconteceu com outros gêneros musicais europeus. Clarinetas, violões, saxofones e bandolins começaram a ser tocados com um jeito e técnica brasileiros. Além das influências européias, a música brasileira foi influenciada pela cultura musical e rítmica africana (o Brasil vinha usando mão de obra escrava há muito tempo) que os escravos tocavam durante suas horas de lazer e cultos religiosos. Danças como o lundu eram dotadas de intenso ritmo e acompanhadas por percussão, em um estilo frenético de tocar e dançar.

D. Pedro I (1798-1834), que assumiu o trono do Império brasileiro em 1822, era um amante da música e tocava flauta, fagote e violino. Era também compositor e escreveu interessantes obras para câmara e orquestra. O apoio imperial às artes continuou durante o segundo império, com D.Pedro II (1825-1891). Lentamente, começava a nascer um gênero musical genuinamente brasileiro. Toda a música estrangeira foi praticamente substituída pela polca que, aos poucos, foi se mesclando às influências sociais e culturais brasileiras, dando lugar, paulatinamente, a uma expressão musical típica – o choro. O choro era o resultado da mistura de ritmos africanos (batuque e lundu) com a polca e com o jeito de falar, viver e fazer música do brasileiro. Desde o início, o choro era marcado pelo tom sentimental e emoções melodiosas. No século dezenove, os músicos brasileiros, de um modo geral, não sabiam ler música e, portanto, aprendiam e tocavam de ouvido o que escutavam. Desse modo, as polcas e valsas foram assumindo um sotaque brasileiro: um sotaque diferente para os ouvidos mais atentos.

Com o crescimento das classes média e alta, construíram-se muitos palacetes onde as famílias ricas organizavam grandes festas tendo a música como atração principal. Nessas ocasiões festivas, as danças européias ainda eram executadas. Entretanto, nos arredores do Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades importantes, vinha ocorrendo um fenômeno cultural: músicos do povo expressavam seus próprios sentimentos através da música e começavam a lançar as autênticas bases da música de nossa terra.

Instrumentos e características do choro

Um dos nossos mais importantes e influentes músicos foi Joaquim Antonio da Silva Callado Jr. (18481880). Os choros eram, então, geralmente tocados por dois violões, um cavaquinho e, às vezes, um bandolim. Muito raramente entrava a percussão. Callado, que era um flautista talentoso, inseriu a flauta no grupo. No começo, o choro era composto de três seções que, com o tempo, transformaram-se em duas. Essas seções eram moduladas e soavam como um rondó. O choro era uma forma de música basicamente instrumental. A improvisação fazia parte, sobretudo depois da introdução da flauta. No final do século dezenove, o choro veio a ser um modo de escrever e tocar muitos tipos de músicas diferentes, isto é, uma linguagem para executar quase qualquer tipo de melodia.

Alguns estudiosos afirmam que a expressão choro teve origem no termo chorus do Latim. Para outros, ela veio do verbo chorar. De qualquer modo, apesar de alegre e vivaz, o choro também é melancolia, particularmente quando uma flauta sola improvisando sobre a base harmônica. É importante assinalar que, naquele século, o termo choros era empregado para se referir aos grupos musicais que tocavam esse tipo de música e os músicos eram chamados chorões. O batismo definitivo do estilo choro aconteceu na primeira década do século vinte.

Atualmente muitos comparam o choro ao jazz e o chamam de “jazz brasileiro”. Existe, efetivamente, um paralelismo e pontos de semelhança entre essas duas formas de expressão musical: a influência da cultura africana, no que diz respeito ao ritmo; as novas harmonias presentes nos dois e, principalmente, o improviso. Além disso, choro e jazz exigem dos artistas um domínio completo do instrumento. Assim, os músicos dispunham de uma forma bastante livre de expressão dos sentimentos, de um modo só permitido pela música.

Um acontecimento muito importante na época foi a vinda para o Brasil do célebre flautista belga Mathieu-André Reichert (1830-1880), que se estabeleceu no Rio em 1859, gostando tanto da cidade que aí permaneceu até sua morte. Com técnica brilhante e facilidade para assimilar nossos ritmos, ele veio a ser o pai artístico de muitos flautistas brasileiros. Reichert formou, com Joaquim Callado, uma parceria artística inacreditável.

A Flauta Boehm no Brasil

Os registros sobre a história da flauta no Brasil são escassos. No século dezenove, as flautas transversas no Brasil eram feitas de madeira, geralmente de ébano que, na época, era muito abundante. Tinham cinco ou, às vezes, sete chaves. A primeira flauta de prata Boehm foi introduzida no Rio de Janeiro por Reichert. Provavelmente tinha sido feita pelo fabricante belga Eugène Albert. Antes da chegada de Reichert ao Brasil, havia muito poucas ou talvez nenhuma flauta Boehm de madeira (para não falar de prata). A flauta de prata não foi de início bem aceita pelos músicos brasileiros. Seu som foi considerado muito brilhante e pouco melodioso. Muitos compositores importantes manifestaram-se contra, criticando e desaprovando a invenção. O grande flautista Joaquim Callado, por exemplo, usava uma flauta de ébano de cinco chaves e nunca interessou-se em trocá-la por uma Boehm de prata. A segunda flauta de prata que se sabe ter chegado ao Brasil foi uma Louis Lot toda de prata, em 1903. Esta flauta foi gentilmente doada por Mme. Samico, uma rica incentivadora das artes, ao vencedor de um concurso de flauta no Rio. Este instrumento altamente cobiçado foi ganho por Pattapio Silva, um flautista muito jovem e brilhante.

Atualmente podem-se encontrar muitas flautas vintages francesas no Brasil. É comum aparecerem instrumentos Louis Lot, Bonneville, Claude Rive, Godfroy e outros, de um modo geral muito bem conservados. A maior parte deles veio para o Brasil nos primeiros anos do século vinte, trazidos,por mercadores ou firmas brasileiras de trading. Como se pode ler nos livros-caixa de Lot, muitas dessas flautas foram importadas por comerciantes brasileiros. Hoje em dia, flautas Louis Lot de prata e Boehm de madeira não são raras no país. Podem ser encontradas em antiquários e de famílias que as conservaram como objetos de colecionador.

Mathieu-André Reichert (1830-1880)

Reichert era um virtuosos fantástico, conhecido em toda a Europa. Estudou com Jules Demeur e François-Joseph Fétis, no conservatório de Bruxelas. Aos dezessete anos recebeu o primeiro prêmio do conservatório e iniciou carreira internacional na Europa e Estados Unidos. Em 1859, o imperador D.Pedro II contratou alguns virtuosi para tocarem no palácio imperial no Rio de Janeiro. Entre eles encontravamse, além de Reichert, os violinistas holandeses André e Ludwig Gravestein, o trompista Giuseppe Cavalli e o clarinetista Ernesto Cavallini.

A primeira apresentação pública de Reichert no Brasil foi no Teatro Lírico Fluminense onde se tornou o solista de flauta na orquestra da casa. Viajou para muitos estados brasileiros onde demonstrou seu talento e teve um grande número de discípulos. Reichert encantou-se e assimilou perfeitamente a música dos chorões. Suas composições demonstram a magnífica absorção dos ritmos brasileiros: La Sensitive (polca de salão), Souvenir de Pará e Souvenir de Bahia (andante elegíaco) La Coquette (A Faceira, polca de salão) e muitas outras.

Os últimos anos de Reichert no Brasil foram passados em condições de extrema pobreza. Morreu de convulsões cerebrais causadas por meningo-encefalite.

Joaquim Antonio da Silva Callado Jr. (1848-1880)

Joaquim Callado foi um outro prodigiosos flautista e o músico mais popular da sua época. Mestiço que era, iniciou seus estudos com o pai e tornou-se músico profissional bastante cedo. Ganhava a vida tocando em festas familiares e em music halls. Ensinou no Conservatório Imperial e recebeu a mais alta condecoração do Império: a Ordem da Rosa. Callado é considerado um dos mais importantes criadores do choro. Foi o primeiro a introduzir a flauta na formação básica do choro (dois violões e um cavaquinho). Imprimiu uma transformação às polcas e aos lundus para que pudessem ser apresentados como peças de concerto. Callado valorizava a arte do improviso seguindo as difíceis modulações e harmonias da sua música que visavam derrubar e atrapalhar o improvisador. Este era o espírito brincalhão que permeava seu grupo de choro. Sua colaboração com Reichert foi proveitosa para ambos.

Algumas de suas composições mais importantes são: Lundu Característico, Querosene, Adelaide, Conceição (polca); As flores do Coração (quadrilha), A Dengosa (polca), Família Meyer (quadrilha), Improviso (polca); Lembrança do Cais da Glória (polca), Hermenêutica (valsa) e Flor Amorosa (polca).

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Callado & Reichert

Em um concerto no Rio, por volta de 1862, muitos grandes músicos brasileiros reuniram-se para mais uma noite musical. Callado, que voltava de uma de suas aulas de flauta, entrou na sala com a flauta de madeira debaixo do braço no momento em que Reichert estava sendo convidado a se apresentar. Reichert levava um manuscrito de uma das difíceis composições de sua autoria e começou a tocar. Em seguida, ao ser apresentado a Callado, o mestre belga demonstrou curiosidade em ouví-lo tocar. Ainda não se conheciam. Callado aceitou e pediu para dar uma olhada no manuscrito de Reichert. Imediatamente em seguida, tocou a peça surpreendentemente bem e deslumbrou a platéia com sua incrível habilidade para leitura à primeira vista. Talvez isso não passe de uma lenda já que Callado era muito jovem na época. Mesmo assim, exprime a habilidade do flautista brasileiro, mesmo quando comparado a Reichert.

Uma história mais plausível apareceu nos jornais de 1873. Um concerto filantrópico foi organizado para ajudar Reichert que estava completamente sem dinheiro. Reichert tocou uma Fantasia para Flauta Solo e um Rondó Capriccioso de sua autoria. A peça seguinte era um duo do Carnaval em Veneza transcrito para flauta. Callado apresentou-se com muito sucesso nesse encontro, assim como em muitas outras ocasiões.

Talvez as habilidades e a arte de Callado tivessem a ver com suas características raciais híbridas, que possibilitaram uma nova forma de expressividade musical. Entretanto, Reichert, apesar de sua formação européia, conseguiu adaptar-se e assimilar muito bem a música tocada pelos músicos locais. Ambos são atualmente conhecidos como os pais da escola brasileira de flauta.

Viriato Figueira da Silva (1851-1883)

Viriato foi um dos fundadores da “escola do choro”. Também gostava muito de polcas. Como solista de saxofone foi um dos nossos primeiros doublers. Quando Joaquim Callado morreu, em 1880, Viriato o substituiu em seu grupo de choro. Viriato desenvolveu um papel crucial na música brasileira do século vinte. Adaptou muitos ritmos europeus a um jeito brasileiro de tocar, introduzindo-os na Corte, teatros, salões e palacetes. Entre suas composições, mencionamos Só para Moer, Caiu, não disse?, Macia, Lucinda e Carolina. Viriato estudou no Conservatório Imperial com Joaquim Callado. Morreu de tuberculose, em 1883, aos trinta e dois anos.

Pattapio Silva (1881-1907)

Pattapio foi outro flautista fantástico. Pode ser comparado a Reichert e Callado tanto como compositor como virtuoso. Começou a tocar em conjuntos de pequenas cidades. Foi admitido no Instituto Nacional de Música na turma do professor Duque Estrada Meyer. Completou os seis anos em dois, estudando dez horas por dia e recebeu a medalha de ouro. Pattapio foi o melhor flautista clássico e popular na virada do século, conservando e dando continuidade ao legado que recebera de Reichert e Callado. Foi o primeiro flautista brasileiro a ter sua obra gravada (de 1901 a 1906), tocando os Noturnos de Chopin, Serenata de Schubert, Allegro de Terschak, e muitas de suas composições tais como: Primeiro Amor, Margarida, Zinha e Amor Perdido. Apresentou-se pelo país mostrando seu surpreendente virtuosismo. Morreu de difteria, aos vinte e seis anos. Todos os seus pertences, dentre os quais sua famosa Louis Lot de prata, foram confiscados para pagar as despesas médicas e com hotel. As composições de Pattapio eram muito traiçoeiras e exigiam muito do flautista. Por exemplo, na sua polca O Sabão, a linha melódica desenvolve-se rapidamente ede forma cromática, algo ainda muito novo para a época.

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Ainda podemos mencionar outros flautistas importantes do século 19, tais como Juca Kalut, Duque Estrada Meyer, Pedro de Assis e outros, além de Reichert, Callado, Viriato e Pattapio.

Autoria: André Medeiros

Fonte: Revista Pattapio, Ed. 29. Agosto de 2007

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