Dia 5 - Realidade/AM~Estação Embratel (BR-319)

Data de postagem: Sep 04, 2011 10:57:11 PM

Acordamos cedo. Não eram nem cindo da manhã ainda. Já estava um calor de matar. Não adiantou madrugar, no final. As motos estavam guardadas dentro do armazém do dono da pensão. Segurança, ele disse. Vai que um gaiato mexe nas motos à noite. O dono do armazém ainda estava dormindo e tivemos que esperar até quase seis horas para retirar as motos.

Pegamos a estrada. Horrível. Irregular. Buracos. Valetas. Baques secos de terra/asfalto. Muito ruim. Só dava para ir de 1a ou 2a marcha. Mais que isso era arriscado cair... ainda mais depois do tombo que levei ontem. Cair era a menor de minhas vontades no momento.

E por falar em tombo, foi difícil dormir. O peito doía. Doía para mudar de posição na cama. A cama era um caso à parte, uma cama faltando algumas ripas, uns pernilongos que ficaram meus amigos e o barulho dos sapos e pererecas na festa do brejo ao lado. Pode-se se dizer que foi uma noite longa.

Aos trancos e barrancos fomos seguindo em frente. O baixo-astral do dia anterior foi ficando para trás. Estava me sentindo bem rodando nessa estrada. Sentindo o vento no rosto, tomando a água quente do cantil na mochila. Era uma situação de pura aventura, completamente diferente do que já tinha experimentado até então. A cabeça era um fluxo preocupante e focado no agora: "Olha o buraco! Opa, opa, opa! Que baque doído essa quina do asfalto! Olha só essa paisagem, que linda! Olha o buraco! Sai desse trieiro! Aqui, vai por aqui..."

Isso na parte da manhã. O sol foi esquentando. O calor foi junto. Por volta da hora do almoço tudo isso que já era uma situação difícil de tensão ao máximo conseguiu ficar ainda pior. Começou a chover.

Primeiro foram algumas nuvens carregadas. Parecia chuva se formando na frente. Dissemos a nós mesmos: "Aqui não é assim. Nessa época não chove. Foi por isso que escolhemos esse período para vir."

Choveu. Se fosse em um pasto, o fazendeiro iria suspirar de contentamento. Ali, naquela situação, era um suspiro de desespero. A estrada é feita desse solo-cimento, liso. Com a água que caiu, ficou um quiabo. O medo de ontem voltou com força total. A adrenalina, mil. Paramos na chuva para analisar a situação que estávamos. Seguimos em frente ou damos um tempo?

Resolvemos seguir, bem de-va-gar. Em 1a marcha, controlando na embreagem a tração que o motor manda para a roda traseira. Íamos tão devagarinho que um sujeito à pé teria nos passado. Olhe um trecho típico nessa situação.

Para complicar a coisa ainda mais, tinham as pontes. Meu Deus, as pontes. Era o que faltava. Todas de madeira. Se estivesse seco todas exigiam o máximo de atenção. Na chuva, exigiam respeito e estratégia. A madeira na chuva fica lisa que nem sabão em azuleijo. Como estávamos de pneus sujos de barro, isso trazia uma dose ainda maior de perigo real em cada travessia de ponte. Perigo de escorregar e a moto pender para o lado e aí não dá para segurar. É perigoso você cair no vão --- e a moto cair em cima de você.

Fomos metro a metro, aos poucos. Depois de um tempo parou de chover e, pelo calor, a estrada enxugou depressa. Passamos pelo famoso posto abandonado no meio da estrada. Na época que ainda se usava a 319 tinha um posto de combustível mais ou menos no meio dela. Paramos, tiramos algumas fotos, e seguimos.

Demorei a pegar no sono. Estava me sentindo muito cansado e fraco. Um cansaço profundo. Iria pagar caro por ele no dia seguinte.

E deu para secar as roupas? Não. Para o nosso desalento, choveu a noite inteira! Desesperados, pois a BR-319 já é difícil seca, imagina agora realmente encharcada? De qualquer forma, esse era um pesadelo que teríamos que enfrentar no dia seguinte.

Os pernilongos pegaram para valer o Jardim de noite. O repelente que ele usou perdeu o efeito. De noite, foi a festa da pernilongada. Na barraca, hoje, não tive problema com eles.

Detalhe. De madrugada acordei assustado. Um barulho estranho. Porco do mato? Pensei. Estava tão perto. Parecia que estavam fuçando ali no mato na frente. Meio bêbado de sono, apurei os sentidos, me sentei dentro da barraca para escutar melhor. Era o ronco do Jardim!

Chegamos na Estação Brasil, da Embratel, uma das torres a cada 50/50 km, aproximadamente, e suas equipes de manutenção da limpeza dos cabos. Não sabíamos, todo o cabeamento de fibra óptica que vai para Manaus passa por ali, suspenso em postes podres de madeira no meio dessa estrada esquecida. Incrível.

Chegando na Estação Brasil, uma surpresa. Estava cheio de gente! Tinham umas três camionetes. Pensei. Será que era o pessoal das equipes que dão assistência na rede?

O pessoal da Toyota Bandeirantes era. Vieram comprimentando a gente, perguntando de onde a gente vinha. Ficamos no papo ali um pouco. Estávamos muito cansados naquele momento. Tiramos os capacetes para, enfim, almoçar (paçoca), refrescar um pouco e recuperar as energias.

As outras duas camionetes eram dos tais alemães que tínhamos ouvido falar uns dias antes. Nos tinham dito que tinham uns alemães fazendo o mesmo percurso que estávamos fazendo. Acabamos por nos encontrar na Estação Brasil.

Eles ficaram meio ressabiados conosco quando chegamos com as motos. Depois foram se aproximando. Um deles falava inglês, então deu para trocar umas palavrinhas. Eles nos disseram que tinham parado ali para almoçar. Tinham um cozinheiro. Faziam a comida do jeito deles. Muita verdura, batata, pelo que vi. Tinham um tradutor, um sujeito magro com cara de fuínha que era espanhol e fazia esse tipo de tour. Eram sete, no total. Seis alemães e o guia. Além dos dois motoristas das camionetes, que eram dali mesmo. Dos alemães, quatro eram jovens e dois mais velhos. Por sinal, um deles já era bem idoso. Vieram especialmente para percorrer a Amazônia, em em especial a 319. Para ver como são as coisas. A maioria dos brasileiros nunca ouviu falar da BR-319, porém lá fora ela é famosa pela aventura que proporciona e o contato virgem e brutal com a mata.

O pessoal da manutenção da torre nos convidou para pernoitar com eles na próxima torre, uns 40 km para frente. Dissemos que sim e, um pouco mais descansados, nos despedimos e saímos.

Não passou nem 1o minutos e voltou a chover! Agora ela veio torrencial. Pareciam que estavam derramando baldes de água na nossa cabeça. A água corria como um riacho sobre a estrada. Novamente a tensão e o medo dominavam a cabeça.

Daí, uns 3 km para frente não tínhamos como passar. O vento derrubou uma árvore no meio da estrada. Estávamos bloqueados.

A chuva caía forte. Completamente encharcados, paramos as motos e descemos. Fomos para perto da árvore e ver o que dava para fazer em uma situação dessas. Tentamos primeiro empurrar ela para fora da estrada. Sem chance. Pesada demais, galhos demais. A gente tinha outra opção. Tínhamos facões. Quando o Jardim foi na moto pegar o dele, o pessoal dos alemães chegaram nas camionetes. Como as motos bloqueavam a estrada e não tinha como eles passarem, pararam para ajudar.

Os guias são acostumados, eles também tem facões. Foram cortando a árvore, um processo lento, debaixo da chuva. A gente ia ajudando como podia removendo os galhos menores. Eles cortaram a árvore até o ponto em que se vergássemos o tronco com força o suficiente, ele se partiria. Foi isso o que ocorreu. Beleza! Retiramos o tronco da estrada. Podíamos ir embora. Demos passagem para os carros, pois sabíamos que estávamos muito mais lento que eles.

Fomos indo e a chuva deu uma trégua. Senti o meu corpo. Estava muito calor, mesmo sob a chuva. A evaporação do rosto embaçava a viseira do capacete, então era necessário ir com ela aberta. O problema mais sério eram as botas. Estavam completamente encharcadas. Vixe. Como irão secar? Bota encharcada é um problema sério. Bom, de noite, nesse calor, com certeza elas irão secar.

Seguimos devagar em 1a. marcha, nessa toada lenta por causa da lama, dos atoleiros escorregadios e das pontes traiçoeiras. Tenho que dizer. Foi uma pilotagem estressante, técnica demais, focada demais. O risco de cair e se machucar era alto demais. Foi ótimo.

Conseguimos chegar na próxima torre, onde iríamos dormir. Víamos ela se formando ao longe do lado esquerdo da mata. A gente via as antenas penduradas lá em cima de longe. O difícil era chegar. Mas não chegava. Na nossa velocidade, demoramo horas para vencer esses 40 km entre a estação Brasil e essa torre. No total, no dia inteiro, rodando desde às 6 da manhã até a hora que paramos, umas 5 da tarde, rodamos apenas 100 km.

O pessoal da manutenção já estava lá. Tinha outra equipe de manutenção também, Duas equipes. A casa estava cheia.

Paramos para descarregar as motos. Íamos dormir ali. Foi nessa hora que pudemos olhar para nós mesmos e ver o quanto estávamos encharcados! As roupas, imundas e molhadas. As botas deviam ter 1 litro de água cada. Não é só isso: luvas, capacete, meias, mochila --- tudo estava encharcado.

É engraçado. A essência desse tipo de viagem é o que ela faz com você. Quando você reduz seu pensamento para a sobrevivência, a mente trabalha com idéias simples. Ficar seco. Comida. Segurança. Nada de mercado, de sutilezas da oferta e demanda, das questões do dia-a-dia dos negócios. O seu problema é o aqui-e-agora. A resolução obrigatoriamente para por suas mãos, literalmente falando. Você tem que fazer, tem que agir, tem que se posicionar para continuar vivo.

Não tínhamos tempo. Fomos colocando do jeito que dava essas coisas para secar. Que varal chique usamos! Era um cabo de fibra optica estendido como varal improvisado. Acho que é o cabo de varal mais caro do mundo!

O pessoal foi muito atencioso. Nos convidaram para jantar a comida deles, arroz, linguiça calabresa e charque. Disseram que a gente podia pernoitar com eles. Até liberaram o espaço da garagem das Toyotas Bandeirantes para a gente estender nossas redes e barracas. O Jardim dormiu na rede. Eu na barraca.