O Beijo no Asfalto, Nelson Rodrigues
María Camila Gómez Vanegas
Qual seria o seu último desejo antes de morrer? Um abraço? Chamar um familiar? Falar uma última vez com o amor da sua vida?
Arandir, um homem casado, beija a boca de outro homem, que acaba de ser atropelado, realizando assim seu último desejo antes de morrer. Da cena é presenciada por Amado Ribeiro, um jornalista que resolve tirar proveito do episódio. Com o destaque do caso, Arandir se isola, sofrendo com a descrença de todos à sua volta, e se vê compelido a um destino que não consegue modificar. Sexualidade, intrigas, falta de ética da imprensa e da polícia e crise familiar são os ingredientes desta peça de Nelson Rodrigues, escrita em 1960.
Uma história comovente e bastante complicada, como a vida de um homem é transformada para a mais extrema turbulência social por um simples beijo onde um humano decidiu sentir a empatia mais forte que pode ser sentida por outro ser humano. Arandir levava uma vida normal, com uma família normal, quando um dia de repente vê como um carro atropela e deixa morrendo outro homem no meio da rua, o homem murmura algo várias vezes, mas as outras pessoas eram apenas espectadores do caos, Arandir é o único que se aproxima, o único que mostra empatia quando do nada e muito para sua surpresa ouve o último desejo do homem, um beijo nos lábios, nada mais. Se fosse minha situação provavelmente teria fugido, eu me sentiria muito desconfortável ou talvez lhe teria dito que só posso oferecer um abraço de empatia; mas não é o caso do protagonista desta história, Arandir se inclina e cumpre o desejo daquele homem estranho, o que eu não sabia é que esse simples ato iria arruinar sua vida.
É a época de 1961, muitas problemáticas sociais eram parte do dia-a-dia e coisas como a homossexualidade ou o estrato social e econômico de uma família eram um tabu diário, o jornal era o único meio de comunicação com a árdua tarefa de desinformar ou tirar da ignorância os habitantes de qualquer lugar, se algo saísse impresso em alguma dessas páginas automaticamente era a verdade absoluta e não teria lugar para esclarecimentos ou posições contra. Arandir é a vítima e o protagonista da publicação do dia seguinte onde se mostra uma foto dele beijando um homem que não conhece na metade da rua, se conheciam antes? Eram amantes?
Essas são as perguntas que começam a fazer todas as pessoas dentro e fora de seu círculo social mais próximo, o pobre homem dá sua versão muitas vezes, diz que não o conhecia, que ele nunca tinha visto antes e que simplesmente queria cumprir seu último desejo como um ato de empatia final por um ser que estava prestes a acabar com seus dias na face da terra. O problema é que saiu no jornal, havia sua foto e havia muitas pessoas observando a cena naquele dia.
O autor nos mostra uma situação extrema, em uma época extrema onde os únicos meios possíveis de contato e informação eram a rádio e o jornal, somado a isso se soma o forte tabu da homossexualidade onde era uma posição sexual e pessoal duramente julgada na sociedade, Arandir lamentavelmente era um homem com uma posição social forte em seu lugar de habitação, após este evento, Arandir é um personagem que sofre uma intensa transformação. Não por sua culpa ou vontade, mas por maldade e preconceito alheios. Ao beijar a boca do morto, Arandir deixa de ser visto como na realidade é – um homem honesto, trabalhador, bom marido – e passa a ser engessado como homossexual e criminoso, e fica a se esconder, solitário. Apesar de mencionar o evento como ele passou sem mentiras incluídas na frente de sua família e até mesmo da própria polícia ninguém acredita nele, acreditam mais no simples contexto de sua imagem beijando esse homem do o que aconteceu naquele dia em profundidade, o problema com isso é que tanto é julgado o pobre homem, tanto é desmentido que começa a se questionar se ele realmente é o homem que a sociedade e o jornal ultimamente tem descrito como sua versão, que a versão que seus anos vivos tinha sido até agora, começa a duvidar de si mesmo e de sua própria personalidade.
Para a sociedade corrupta e preconceituosa, não há lugar para bons sem sentimentos sem haver nada em troca. Esta problemática não só aconteceu na época já descrita, atualmente, é uma realidade que continua acontecendo, em um mundo onde as boas ações não são boas aos olhos de todos e onde não há lugar para os bons sentimentos, a tomada de decisões e os atos de muitas pessoas são julgados sem conhecer em profundidade o contexto principal de certa situação, tudo o que parece moralmente bom para uns é moralmente ruim para os outros, é assim que a balança do bem e do mal está sempre equilibrada, é por isso que eu posso dizer que há um monte de Arandirs no mundo.
Há outro tabu para mencionar que acontece no final desta história, Arandir perde a credibilidade de sua família para ele e cansado de toda a situação termina fugindo da polícia, ele fica em um hotel e pede a sua esposa para visitá-lo, mas ela não quer saber dele e envia sua irmã Dália em seu lugar, dando origem ao tabu que mencionei e que lamentavelmente não tem uma solução explícita no final do livro, Dália sempre esteve apaixonada por seu cunhado e por isso atualmente e no final do livro é a única que acreditou no até o fim, o problema com isso é que Arandir não sente o mesmo, então, o pai de Dália aparece na cena e ao vê-los participa de uma conversa íntima (ignorante aos verdadeiros sentimentos de Arandir por sua filha) saca uma arma mata-lo e já moribundo confessa que ele também estava apaixonado pelo protagonista desta obra, revelando o verdadeiro personagem homossexual da mesma.
Todo o tempo a sociedade, família e polícia estava perseguindo e julgando o "homossexual" errado.
Cómo citar (Chicago):
Gómez Vanegas, María Camila. 2025. “O Beijo no Asfalto, Nelson Rodrigues.” Revista Traditori 2025 (1): 19–22. ISSN 3100-9433