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Pensatas para o fim de semana

Escândalo da Americanas exibe o caráter fraudulento do capitalismo brasileiro

A vida como ela é: o código da fraude nas mensagens dos executivos da empresa. Allan Abreu, Piauí (expandir postagem)

Conversas obtidas pela Polícia Federal mostram o desespero durante uma auditoria em 2017 e confirmam que os diretores sabiam do esquema


Os primeiros dias de fevereiro de 2017 foram agitados na sede da Americanas S.A., na rua Sacadura Cabral, Centro do Rio de Janeiro. O balanço fechado pela empresa no ano anterior estava sendo esquadrinhado pela KPMG, uma das mais respeitadas firmas de auditoria do mundo. Preocupados, os diretores da gigante varejista criaram um grupo de WhatsApp chamado “auditoria 2016”. Ali, trocavam informações entre si e, principalmente, discutiam métodos para esconder dos auditores as inúmeras fraudes contábeis que a Americanas vinha cometendo havia pelo menos quinze anos e que, num efeito bola de neve, formaram um rombo de 48 bilhões de reais que quebrou a empresa. O escândalo, tornado público em janeiro de 2023, foi a maior fraude da história das corporações brasileiras.

“Pilotem aí a melhor forma de fazer”, escreveu Fábio Abrate, então diretor financeiro da Americanas, numa mensagem enviada no dia 1º. “Não pode dar ruído agora no final.”

O desafio era maquiar as fraudes do chamado “risco sacado”, um tipo de transação comum entre bancos e varejistas. Funciona da seguinte maneira: a empresa de varejo compra um produto do seu fornecedor, mas, para não se descapitalizar, transfere a dívida para um banco. O banco, então, paga o fornecedor à vista, mas com um pequeno desconto. A varejista passa a dever para o banco. A dívida vai acumulando juros, mas ainda assim a operação vale a pena para as empresas, já que os bancos permitem estender os prazos de pagamento – algo que não seria possível com o fornecedor. Feita essa transação, a varejista tem o dever de informar, em seu balanço financeiro, a dívida bancária. Era isso que os gestores da Americanas não faziam. Na prática, eles fingiam que não havia dívida.  

Esconder o esquema, contudo, não era fácil. Como a KPMG também recebia informações dos bancos, a Americanas precisava alinhar a fraude com cada um dos bancos com os quais tinha dívidas. “Será que Itaú* vem hoje? KPMG está levantando diversos pequenos pontos. E não param de alterar folha de ajustes, pedir explicações e documentos”, escreveu no grupo Rodrigo Martins, outro diretor. “Realmente tá desesperador. Precisamos encerrar”, respondeu Flávia Carneiro, então superintendente de controladoria da rede varejista.

“Estou aqui na blindada”, disse, a certa altura, Murilo Correa, executivo que ocupava o cargo de Chief Financial Officer (CFO) e que, portanto, era o principal responsável por supervisionar as finanças da Americanas. Ele se referia à “sala blindada”, como os diretores apelidaram um espaço reservado na sede da empresa onde eram discutidos “assuntos sensíveis”. Minutos depois, todos os diretores foram até a sala encontrá-lo. 

No dia seguinte, 2 de fevereiro, os diálogos no grupo de WhatsApp ficaram mais agitados. “Bom dia. Falei com Itaú agora novamente. Dois caras precisam aprovar. Um já aprovou e outro não. Nosso gerente vai colocar os dois agora para se falarem. O que aprovou vai precisar convencer o que não aprovou. Quando eu tiver novidades, sinalizo”, escreveu Abrate, o diretor financeiro, complementando em seguida: “Temos que estar muito bem preparados. [] Agora é a hora! Vamos com tudo. Itaú não é Santander. Assunto azedou muito. Podemos ter efeitos colaterais.” Ao ver essa mensagem, um dos diretores chamou Abrate para uma conversa na “sala blindada”. “Miguel está aqui”, afirmou, em uma possível referência a Miguel Sarmiento Gutierrez, presidente da Americanas na época. 

Passaram-se seis dias angustiantes. Em 8 de fevereiro, finalmente, Flávia Carneiro brindou o grupo com boas novas: “Parecer [da KPMG] aprovado!”, e enviou o PDF do documento. “Show! Ufa”, respondeu José Timotheo de Barros, então diretor operacional da empresa

As conversas de WhatsApp foram obtidas pela Polícia Federal, num inquérito que culminou, nesta quinta-feira (27), numa operação de busca e apreensão contra diretores e outras pessoas ligadas à Americanas. A investigação se baseia na quebra dos sigilos telemáticos dos ex-diretores da empresa e nos acordos de delação premiada assinados em agosto de 2023 com Flávia Carneiro e Marcelo da Silva Nunes, ex-diretor executivo financeiro da Americanas. Eles não só esmiuçaram as fraudes como entregaram à PF vasto material que as comprova e que aponta para o envolvimento dos bancos nessa operação criminosa.

A Justiça determinou a prisão de Miguel Gutierrez e da atual CEO da Americanas, Anna Christina Ramos Saicali, mas nenhum dos dois foi encontrado – Miguel se mudou para a Espanha no ano passado, e Saicali deixou o Brasil rumo a Lisboa no último dia 15 (o bilhete foi adquirido na véspera). Ambos estão na lista de foragidos da Interpol. Os três controladores da empresa, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, não foram alvos da operação.

A cúpula da Americanas recorria à fraude porque, ao esconder as enormes dívidas com os bancos, conseguiam ostentar um balanço com lucro, em vez de prejuízo. O relatório financeiro da empresa dava a entender que tudo ia bem: a Americanas era saudável e altamente rentável. A varejista, com isso, viu suas ações valorizarem de forma consistente – e, com isso, mais acionistas investiam na empresa, o que mantinha o caixa cheio. De quebra, pelo bom desempenho, os diretores embolsavam bônus milionários a cada ano.

Um dos e-mails obtidos pela PF é ilustrativo. Em 26 de maio de 2022, o diretor operacional da Americanas, Timotheo de Barros, escreveu para o colega – e mais tarde delator – Marcelo da Silva Nunes: “Segue a visão do resultado na visão ‘a vida como ela é’. Devo circular para todos?”, escreveu. “A vida como ela é”, nas palavras de Barros, era o balanço financeiro real da empresa – aquele que continha as fraudes e que, por isso, só circulava internamente. O documento, encaminhado por ele para Nunes, registrava um prejuízo de 209 milhões de reais no primeiro trimestre de 2021. Enquanto isso, os números divulgados para o mercado eram bem mais auspiciosos: apontavam lucro de 129,4 milhões de reais.

Para operacionalizar a fraude, segundo a investigação da Polícia Federal, os diretores criavam arquivos contábeis paralelos. Uns eram chamados de “verdes”; outros, de “vermelhos”. Os verdes continham os números fictícios, com lucros celebrados pelos acionistas; os vermelhos continham os números reais, quase sempre deficitários.

A diretora Flávia Carneiro resumiu, em seu acordo de delação premiada, como a fraude era operada. Aos investigadores da PF, ela afirmou: “O orçamento [da Americanas] era uma meta a ser atingida, e não refletia a realidade. Essa meta era sempre baseada no ano anterior, que também não era real, e isso passou a virar uma bola de neve. A colaboradora [Carneiro] passou se desesperar porque nitidamente não era possível chegar nesses orçamentos, mas eles queriam sempre garantir esse crescimento constante”.

Além da fraude nas operações de “risco sacado”, os diretores se valiam de outros métodos para enganar o mercado, como o registro fictício de cartas de verba de propaganda cooperada (VPC), em que a varejista promove ações de publicidade dos produtos de seus fornecedores e, em troca, ganha um desconto na compra desses produtos para posterior revenda. A diretoria da Americanas lançava registros de VPC de ações de marketing que nunca foram feitas, e assim reduzia substancialmente as despesas com fornecedores.

“Nas reuniões com a auditoria sempre se fez tudo para esconder essas fraudes dos auditores, e o processo de fechamento de resultado de final de ano era sempre muito traumático porque tinham que ser cometidas várias fraudes para esconder da auditoria”, confessou Marcelo Nunes à Polícia Federal. Segundo os investigadores, havia ainda outras estratégias para fraudar as contas da empresa, como a “manipulação entre linhas de despesas nas notas explicativas das demonstrações financeiras”, a “contabilização de despesas como investimentos” e a omissão do “registro de créditos tributários”.

 Quando, em agosto de 2022, Sergio Rial foi anunciado como o novo CEO da Americanas no lugar de Gutierrez, os diretores sabiam que era questão de tempo até que as fraudes fossem descobertas pelo mercado e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão de regulação do governo federal. Por isso, naquele momento, começaram a vender suas ações na empresa: Miguel Gutierrez se desfez de 158,5 milhões de reais em papéis; Anna Saicali, 59,6 milhões; Barros, o diretor da “vida como ela é”, 20,7 milhões; e Abrate, 6,4 milhões. 

“Justamente ao perceberem que a assunção de Sérgio Rial levaria ao desbaratamento da fraude bilionária nas finanças das companhias, os investigados iniciaram um forte processo de venda de ações, a fim de vendê-las por preço acima do que seria avaliado pelo mercado após a divulgação da fraude”, escreveu o delegado da PF André Gustavo Veras de Oliveira nos pedidos de busca feitos à Justiça e que embasaram a operação desta quinta-feira (27). 

No dia 11 de janeiro de 2023 a Americanas divulgou publicamente “inconsistências” contábeis no valor de 20 bilhões de reais. Oito dias mais tarde, a tradicional rede varejista, fundada em 1929, ingressou com um pedido de recuperação judicial devido a um rombo estimado em 48 bilhões de reais, cinco vezes o patrimônio líquido da empresa naquele momento.

Todos os catorze diretores que foram alvos da operação nesta quinta-feira (27) serão indiciados pela Polícia Federal por manipulação de mercado e uso de informação privilegiada, crimes previstos na lei 6.385, de 1976, e também por associação criminosa.

Em nota, a assessoria da Americanas disse apoiar as investigações da Polícia Federal. “A Americanas reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, que manipulou dolosamente os controles internos existentes. A Americanas acredita na Justiça e aguarda a conclusão das investigações para responsabilizar judicialmente todos os envolvidos.”

Também por meio de nota, o Itaú, citado nas mensagens obtidas pela PF, negou qualquer participação, direta ou indireta, nas fraudes contábeis da Americanas. “O banco sempre prestou às auditorias e aos reguladores informações corretas e completas sobre as operações contratadas pela empresa, conforme legislação vigente e melhores práticas de mercado. Conforme já esclarecido, os informes enviados às auditorias sempre alertavam para a existência das operações de risco sacado. Os diretores da Americanas envolvidos na operação interagiram com representantes do Itaú no sentido de retirar os alertas. O banco nunca concordou com esse pedido e inclusive interrompeu, por mais de 6 meses, as operações de risco sacado. O Itaú reforça que a elaboração das demonstrações financeiras é de responsabilidade única e exclusiva da administração da empresa e repudia qualquer tentativa de responsabilização de terceiros por falhas ou fraudes nessas demonstrações.”

A piaui enviou mensagens para Gutierrez e sua advogada, Ilcelene Bottari, e também para a defesa de Anna Saicali, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem. O Santander também foi procurado, mas não respondeu. Os advogados dos demais investigados não foram localizados. O espaço segue aberto para eventual manifestação.

* A família do fundador da piauí é acionista integrante do bloco de controle do Itaú.

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A herança colonial e escravocrata constitui o racismo no Brasil

Para a Berenice Bento, “a questão racial e negra é estrutural e estruturante do Brasil. O que somos passa por aí e não poderia ser diferente, pois não estamos falando de uma experiência histórica que durou 40 anos, mas de uma experiência que durou quase 400 anos”, IHU (leia aqui a entrevista com a professora da UnB)

Pensatas

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# Aposentadoria x salário mínimo # Banco Central # Bolsonaro tem direito à defesa # Milei # Faria Lima # Desoneração só beneficia empresas # Mercado quer o pior # Maconha e saúde pública

# Reinaldo Azevedo analisa a entrevista de Lula

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No linguajar chulo, em tentativa de mostrar alguma intimidade com os graves problemas de São Paulo, o atual prefeito exibe caráter truncado e perigoso. 

A cidade não merece passar outros 4 anos nas mãos de um cara desses (leia mais).

Um rato que ruge

Maconha: a complexa decisão do STF. Entenda nos links abaixo

# G1 - Uol - RBA

# Moraes dá 10 dias para Tarcísio explicar escolas militares

Ação do PT questiona constitucionalidade do projeto (RBA)

# Guarda de Nunes proibida em operações na Cracolândia 

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# Pablo Marçal: cavalo de Troia

 Bolsonarista entra na disputa para pressionar Nunes (Intercept)

Privatização da Sabesp vai atrapalhar universalização dos serviços à população

Estupidez privatista de Tarcísio - e dos que o apoiaram na pressa de vender a especuladores da bolsa a estatal da água - vai prejudicar o atendimento à população. O motivo é simples: o capital privado meia-boca não tem condições de fazer investimentos que qualifiquem o setor para cumprir as promessas mentirosas do governador (# leia mais)

Apesar de ter autonomia assegurada em lei desde 2021, a autoridade monetária não tem poder sobre o próprio orçamento

Conspiração a céu aberto: Agentes do mercado pressionam Senado para aprovação de PEC que transforma Banco Central em banco privado


Assessores e técnicos do Banco Central têm percorrido gabinetes no Senado para pedir apoio à PEC (proposta de emenda à Constituição) que amplia a autonomia da autoridade monetária. A medida é defendida pelo presidente da instituição, Roberto Campos Neto, cujo mandato termina em dezembro. A ofensiva pela aprovação da PEC ocorre em meio à mobilização de uma ala dos servidores contrária à mudança de autarquia para empresa pública e à resistência de senadores governistas. Thaísa Oliveira, Nathália Garcia, Folha (expandir)

A partir da PEC, o Banco Central passaria de autarquia especial para empresa pública de natureza especial, o que daria maior autonomia financeira, como ocorre no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Um assessor afirma, de forma reservada, que o BC deu início à agenda de visitas no início do mês, após a divulgação do relatório, para garantir que as sugestões feitas por membros da instituição haviam sido incorporadas pelo relator, senador Plínio Valério (PSDB-AM).

Um resumo de argumentos a favor da PEC tem sido levado aos parlamentares. Entre outros pontos, o documento afirma que a proposta vai trazer "economia de gastos fiscais" e liberar R$ 5 bilhões para "outras prioridades do governo, em especial, na área social".

O texto também diz que a medida vai beneficiar a sociedade, o BC, os servidores, o governo e o próprio Congresso, que cumpriria a "missão de consolidar a autonomia" da instituição e continuaria com o "papel fiscalizatório".

"Esta é uma proposta que apresenta ganhos em diferentes esferas: a sociedade brasileira, com novas e melhores entregas e inovações que o BC vai ter condições de fazer; o próprio BC, que vai ter as condições necessárias para fazer o seu trabalho de forma mais eficiente", diz trecho do resumo.

As conversas têm sido conduzidas no Senado pelo chefe do departamento de Estatísticas do BC, Fernando Rocha, o chefe de gabinete da diretora de Relacionamento, Arthur Campos, e o chefe da assessoria parlamentar, Bruno Peres.

Rocha participou da audiência pública na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado na terça-feira (18), entre os convidados favoráveis à PEC.

Por causa do compromisso no Congresso, ele não compareceu à sessão inicial do Copom (Comitê de Política Monetária), durante a qual funcionários do BC fornecem subsídio técnico ao colegiado para a calibragem da taxa básica de juros, a Selic.

Em sua argumentação na CCJ, Rocha disse que a ampliação da autonomia ocorreria "com a devida governança e os devidos controles" e que isso ajudaria a concluir "um longo processo de evolução institucional".

O técnico também mencionou alguns impactos sobre as estatísticas fiscais do país, uma vez que a autoridade monetária deixaria de compor a conta do governo central, que compreende hoje o Tesouro Nacional e a Previdência Social, além do BC.

Destacou a exclusão do resultado primário do BC, que em 2023 correspondeu a um déficit nominal de R$ 465 milhões, o que tornaria a conta do governo central mais superavitária.

Ressaltou ainda o alinhamento do cálculo da dívida bruta ao padrão internacional. O conceito do FMI (Fundo Monetário Internacional) engloba toda a carteira livre, não apenas as operações compromissadas (venda de um título com o compromisso de recompra em um prazo determinado).

Essas informações constam no material de apoio usado pelo chefe do departamento de Estatísticas –colocado à disposição dos parlamentares na contraofensiva do BC.

A audiência foi convocada depois que senadores governistas levaram ao presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), a informação de que o relatório de Plínio seria derrotado se fosse colocado em votação.

Após a sessão de debates, o relator disse que estava "preocupado" com a situação dos funcionários. "É o servidor que me preocupa. Embora eles estejam protestando por protestar, já ficou claro que o movimento ali é político e eu não quero me envolver nisso", afirmou o senador a jornalistas.

"Acho que o relatório não é ruim, mas ele está aberto, sim. Agora, eu acho que os senadores do governo devem apresentar emendas para tumultuar. Agora é um movimento político. O governo deixou claro que vai empurrar com a barriga. Vai depender do Davi [Alcolumbre]."

Como mostrou a Folha, um parecer feito pela liderança do governo no Senado afirma que a PEC é inconstitucional, cria insegurança jurídica para os servidores e coloca em xeque a fiscalização de instituições financeiras.

Entre outros pontos, a nota técnica afirma que a proposta é ambígua e gera "incerteza quanto ao regime jurídico" ao criar uma empresa pública com funções incompatíveis com a exploração de atividade econômica, como a emissão de moeda e a gestão de reservas internacionais.

Em nota, o Sinal (Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central) reagiu às declarações do relator, argumentando que os servidores estão "lutando de forma legítima" contra um projeto "mal escrito" e que "atenta contra a boa atuação do BC nos aspectos econômico, administrativo e jurídico."

O colapso do sionismo e de Israel


Por Ilan Pappé, em Sidecar da New Left Review | Tradução: Antonio Martins

O ataque do Hamas em 7 de outubro pode ser comparado a um terremoto que atinge um prédio antigo. As rachaduras já estavam começando a aparecer, mas agora são visíveis em suas fundações. Mais de 120 anos desde sua criação, será que o projeto sionista na Palestina – a ideia de impor um Estado judeu em um país árabe, muçulmano e do Oriente Médio – está enfrentando a perspectiva de colapso? (continue a leitura)

IA: muito aquém das promessas magníficas

Sequestrada pelo interesse egoísta do capital, nova tecnologia não impulsiona economias, nem eleva a produtividade. Apenas aliena o trabalho e concentra riquezas. Tudo pode mudar, numa ordem social voltada para o bem-estar comum. Michael Roberts, Outras Palavras (expandir)

Por Michael Roberts, em seu blog | Tradução: Antonio Martins

Acesso aos gráficos referidos no texto

Há cerca de um ano, abordei o tema da inteligência artificial (IA) e o impacto dos novos modelos de aprendizagem de linguage (LLMs) como o ChatGPT e outros. Tratei principalmente do impacto da nova tecnologia nos empregos dos trabalhadores substituídos por LLMs de IA e o efeito correspondente no aumento da produtividade do trabalho. A previsão-padrão sobre a IA vinha dos economistas do Goldman Sachs, o principal banco de investimentos do mundo. Eles calcularam que se a tecnologia cumprisse a sua promessa, traria “perturbações significativas” ao mercado de trabalho, expondo cerca 300 milhões de trabalhadores em tempo integral, nas principais economias, à automatização dos seus empregos. Os advogados, o pessoal administrativo (e provavelmente economistas!) correriam os maiores riscos de se tornarem redundantes. Calculou-se que cerca de dois terços dos empregos nos EUA e na Europa estão expostos a algum grau de automatização da IA, com base em dados sobre as tarefas normalmente executadas em milhares de profissões. 

A maioria das pessoas veria menos de metade da sua carga de trabalho automatizada e provavelmente continuaria nos seus empregos, com parte do seu tempo libertado para atividades mais produtivas. Nos EUA, isto se aplicaria a 63% da força de trabalho. Outros 30% que trabalham em empregos físicos ou ao ar livre não seriam afetados, embora o seu trabalho pudesse ser suscetível a outras formas de automatização.

Gráfico 4: dois terços das ocupações atuais poderiam ser parcialmente automatizadas pela IA

Mas os economistas do Goldman Sachs (GS) estavam muito otimistas e eufóricos com os ganhos de produtividade que a IA poderia alcançar, possivelmente tirando as economias capitalistas da relativa estagnação dos últimos 15 a 20 anos – a Longa Depressão. O GS afirmou que sistemas de IA “generativos”, como o ChatGPT, poderiam desencadear um boom de produtividade que acabaria por aumentar o PIB global anual em 7% ao longo de uma década. Se o investimento empresarial em IA continuasse a crescer a um ritmo semelhante ao investimento em software na década de 1990, ele poderia, por si só, aproximar-se de 1% do PIB dos EUA até 2030.

Gráfico 14: Como os ganhos com produtividade poderiam ser mensurados em outros países

Mas o economista de tecnologias norte-americano Daren Acemoglu jś estava cético desde então. Ele argumentou que nem todas as tecnologias de automação aumentam realmente a produtividade do trabalho. Isto porque as empresas introduzem a automação principalmente em áreas que podem aumentar a rentabilidade, como marketing, contabilidade ou tecnologia de combustíveis fósseis, mas não aumentam a produtividade da economia como um todo, nem satisfazem as necessidades sociais.

Agora, num novo artigo, Acemoglu derrama uma boa dose de água fria sobre o otimismo gerado por instituições como o Goldman Sachs. Em contraste com o GS, ele considera que os efeitos da produtividade decorrentes dos avanços da IA ​​nos próximos 10 anos “serão modestos”. O ganho mais elevado que ele prevê seria apenas um aumento total de 0,66% na produtividade total dos fatores (PTF), que é a medida principal para o impacto da inovação, ou cerca de um pequeno aumento de 0,064% no crescimento anual da PTF. Poderia até ser menor (apenas 0,53%), pois a IA não consegue lidar com algumas tarefas mais difíceis que os humanos realizam. Mesmo que a introdução da IA ​​aumentasse o investimento global, o aumento do PIB nos EUA seria de apenas 0,93 a 1,56% no total, dependendo da dimensão do boom do investimento.

Além disso, Acemoglu considera que a IA aumentará o fosso entre o capital e o rendimento do trabalho; como ele diz: “as mulheres com baixo nível de escolaridade podem sofrer pequenas quedas salariais, a desigualdade geral entre grupos pode aumentar ligeiramente e a disparidade entre o rendimento do capital e do trabalho deverá aumentar ainda mais ”. Na verdade, a IA pode prejudicar o bem-estar humano ao expandir as mídias sociais enganosas, os anúncios digitais e os gastos com contra-ataques de TI. Assim, o investimento em IA pode aumentar o PIB, mas diminuir o bem-estar humano em até 0,72% do PIB.

E há outros perigos para o trabalho. Owen David argumenta que a IA já está sendo usada para monitorar os assalariados no trabalho, recrutar e selecionar candidatos a empregos, definir níveis salariais, direcionar as tarefas que os trabalhadores realizam, avaliar seus resultados, programar turnos, etc. e o aumento das capacidades de gestão pode transferir o poder para os empregadores”. São sombras das observações de Harry Braverman, em seu famoso livro de 1974 sobre a degradação do trabalho e a destruição de competências pela automação.

Acemoglu reconhece que há ganhos com a IA generativa, “mas esses ganhos permanecerão ilusórios, a menos que haja uma reorientação fundamental da indústria, incluindo uma grande mudança na arquitetura dos modelos de IA generativa mais comuns”. Em particular, Acemoglu diz que “uma questão permanece em aberto: Precisamos de modelos que envolvam conversas não humanas e escrevam sonetos de Shakespeare, se o que realmente queremos é informação confiável e útil para educadores, profissionais de saúde, eletricistas, encanadores e outros artesãos”?

Na verdade, como são os gestores – e não os trabalhadores como um todo – que introduzem a IA para substituir o trabalho humano, eles já começaram a retirar trabalhadores qualificados de empregos que desempenham bem, sem necessariamente melhorar a eficiência e o bem-estar para todos. Nas palavras de um analista: “Quero que a IA lave minhas roupas e pratos para que eu possa fazer arte e escrever; não que a IA faça arte e escreva, para que eu possa lavar minhas roupas e pratos”. Os gerentes estão introduzindo a IA para “tornar os problemas de gerenciamento mais fáceis, afetando atividades para as quais muitos não acham que a IA deveria ser usada, como o trabalho criativo….. Se a IA quiser funcionar, ela precisa vir de baixo para cima”. Ou ela será inútil para a grande maioria das pessoas no local de trabalho ”.

Poderá a IA salvar as principais economias, ao proporcionar um grande salto de produtividade? Tudo depende de onde e como a IA é aplicada. Um estudo da consultoria internacional PwC concluiu que o crescimento da produtividade foi quase cinco vezes mais rápido em setores da economia onde a penetração da IA era mais elevada do que em setores menos expostos. Barret Kupelian, economista-chefe da empresa no Reino Unido, afirmou: “Nossas descobertas mostram que a IA tem o poder de criar novos setores, transformar o mercado de trabalho e potencialmente aumentar as taxas de crescimento da produtividade. Em termos de impacto econômico, vemos apenas a ponta do iceberg. As nossas conclusões sugerem que a adoção da IA ​​está concentrada em alguns setores da economia, mas assim que a tecnologia melhorar e se difundir, o potencial pode ser transformador.”

Os economistas da OCDE não têm tanta certeza. Um artigo expõe o problema: “Quanto tempo levará a aplicação da IA ​​em cada setor da economia? A adoção da IA ​​ainda é muito baixa, com menos de 5% das empresas relatando a utilização desta tecnologia nos EUA (Census Bureau 2024). Quando colocada em perspectiva com o caminho de adoção anterior de tecnologias de uso geral (por exemplo, computadores e eletricidade, que levaram até 20 anos a serem totalmente difundidas), a IA tem um longo caminho a percorrer antes de atingir as elevadas taxas de adoção necessárias para detectar ganhos macroeconômicos.”

As conclusões a nível micro ou industrial captam principalmente os impactos sobre os primeiros usuários em tarefas muito específicas, e provavelmente indicam efeitos a curto prazo. O impacto a longo prazo da IA ​no crescimento da produtividade a nível macro dependerá da extensão da sua utilização e da integração bem-sucedida nos processos de negócios .” Os economistas da OCDE salientam que foram necessários vinte anos para que tecnologias inovadoras anteriores, como a energia eléctrica ou os PCs, se “difundissem” o suficiente para fazerem a diferença. Isso representaria a década de 2040 para a IA.

Além disso, a IA, ao substituir a mão-de-obra em setores mais produtivos e intensivos em conhecimento, poderia causar “uma eventual queda na percentagem de emprego destes setores (que) funcionaria como um obstáculo ao crescimento da produtividade agregada”.

Ecoando alguns dos argumentos de Acemoglu, os economistas da OCDE sugerem que “a IA representa ameaças significativas à concorrência de mercado e à desigualdade. Elas podem pesar sobre os seus potenciais benefícios, quer direta ou indiretamente, ao levar a medidas políticas preventivas para limitar o seu desenvolvimento e adoção”.

E há o custo do investimento. Só o esforço para obter acesso à infraestrutura física necessária para a IA em grande escala já é um grande desafio. O sistema de computador necessário para uma IA executar pesquisa de medicamentos contra o câncer normalmente requer entre dois e três mil dos mais recentes chips. O custo desse hardware por si só poderia facilmente chegar a mais de US$ 60 milhões, mesmo sem contar outros itens essenciais, como armazenamento de dados e redes. Um grande banco, empresa farmacêutica ou fabricante pode ter os recursos para comprar a tecnologia necessária para tirar partido da mais recente IA. Mas e uma empresa menor?

Preço dos modelos de IA – Custo em dólares por 1 milhão de tokens (equivalentes a cerca de 1 milhão de palavras inseridas ou geradas)

Portanto, contrariamente à visão convencional e muito mais em linha com a teoria marxista, a introdução do investimento em IA não conduzirá a um barateamento dos ativos fixos (capital constante, em termos marxistas) e, portanto, a uma queda na relação entre os custos dos ativos fixos e o trabalho, mas o oposto (ou seja, uma composição orgânica crescente do capital). E isso significa mais pressão descendente sobre a rentabilidade média nas principais economias. 

E há o impacto no aquecimento global e no uso de energia. Grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, estão entre as tecnologias que mais consomem energia.   A pesquisa sugere, por exemplo, que cerca de  700 mil litros de água  poderiam ter sido usados ​​para resfriar as máquinas que treinaram o ChatGPT-3 nas instalações de dados da Microsoft. O treinamento de modelos de IA consome 6 mil vezes mais energia do que uma cidade média europeia. Além disso, embora minerais como o lítio e o cobalto sejam mais frequentemente associados às baterias no setor automobilístico, também são  cruciais para as baterias  utilizadas nos centros de dados. O processo de extração envolve frequentemente uso significativo de água e pode levar à poluição, comprometendo a segurança hídrica. 

A Grid Strategies, uma consultora, prevê um crescimento da procura de eletricidade nos EUA de 4,7% durante os próximos cinco anos, quase duplicando a sua projeção do ano anterior. Um estudo realizado pelo Electric Power Research Institute concluiu que os data centers representarão 9% da procura de energia dos EUA até 2030, mais do dobro dos níveis atuais.

Demanda de eletricidade dos data centers nos EUA pode crescer

Essa perspetiva já está levando a um abrandamento nos planos de desativação das usinas elétricas a carvão, à medida que a procura da IA por energia aumenta.

Talvez estes custos de investimento e energia possam ser reduzidos com novos desenvolvimentos de IA. A empresa suíça de tecnologia Final Spark lançou a Neuroplatform, a primeira plataforma de bioprocessamento do mundo onde organoides do cérebro humano (versões miniaturizadas de órgãos cultivadas em laboratório) realizam tarefas computacionais, substituindo os chips de silício. A primeira instalação hospeda a capacidade de processamento de 16 organoides cerebrais, que a empresa afirma consumir um milhão de vezes menos energia do que seus equivalentes de silício. Este é um desenvolvimento assustador em certo sentido: cérebros humanos! Mas, felizmente, ainda está muito longe da implementação. Ao contrário dos chips de silício , que podem durar anos, senão décadas, os ‘organóides’ duram apenas 100 dias antes de ‘morrer’.

Ao contrário dos economistas do Goldman Sachs, aqueles que estão na fronteira do desenvolvimento da IA ​​estão muito menos otimistas quanto a seu impacto. Demis Hassabis, chefe da divisão de pesquisa de IA do Google, afirma: “A maior promessa da IA ​​é apenas isso – uma promessa. Dois problemas fundamentais permanecem sem solução. Um envolve fazer modelos de IA treinados com base em dados históricos, compreender qualquer nova situação em que sejam colocados e responder adequadamente”. A IA precisa ser capaz de “entender e responder ao nosso mundo complexo e dinâmico, assim como nós”.

Mas a IA pode fazer isso? Na minha postagem anterior sobre o tema, argumentei que ela não pode realmente substituir a inteligência humana. Yann LeCun, cientista-chefe de IA da Meta, gigante da mídia social proprietária do Facebook e do Instagram, concorda. Ele disse que os LLMs têm “uma compreensão muito limitada da lógica. . . não entendem o mundo físico, não têm memória persistente, não conseguem raciocinar em qualquer definição razoável do termo e não conseguem planejar. . . hierarquicamente “. Os LLMs são modelos de aprendizagem apenas quando engenheiros humanos intervêm para treiná-los com base nessas informações. A IA não chega a uma conclusão organicamente, como as pessoas. “Decerto parece para a maioria das pessoas um raciocínio – mas é principalmente a exploração do conhecimento acumulado de muitos dados de treinamento.”  Aron Culotta, professor associado de ciência da computação na Universidade de Tulane, colocou a questão de outra forma. “O bom senso sempre foi uma pedra no sapato da IA”. Era um desafio ensinar causalidade aos modelos, deixando-os “suscetíveis a falhas inesperadas ”.

Noam Chomsky sintttizou as limitações da IA em relação à inteligência humana.“A mente humana não é como o ChatGPT e seus semelhantes, um mecanismo de estatística pesado para correspondência de padrões, devorando centenas de terabytes de dados e extrapolando a resposta conversacional mais provável da resposta mais provável a uma questão científica. Pelo contrário, a mente humana é um sistema surpreendentemente eficiente e até elegante que opera com pequenas quantidades de informação; procura não inferir correlações brutas entre dados, mas criar explicações. Vamos parar de chamá-la de inteligência artificial e chamá-la pelo que é: “software de plágio”. Porque ela não cria nada além de copiar obras existentes, modificando-as o suficiente para escapar das leis de direitos autorais.”

Isso leva ao que se poderia chamar de síndrome de Altman. A IA sob o capitalismo não é uma inovação que visa ampliar o conhecimento humano e aliviar a humanidade do trabalho árduo. Para inovadores capitalistas como Sam Altman, é inovação para obter lucros. Sam Altman, o fundador da OpenAI, foi afastado do controle de sua empresa no ano passado, porque outros membros do conselho consideraram que ele queria transformar a corporação em uma enorme operação lucrativa apoiada por grandes empresas (a Microsoft é o atual financiador). O resto da o conselho continuou a ver a OpenAI como uma operação sem fins lucrativos, com objetivo de espalhar os benefícios da IA ​​a todos, com salvaguardas adequadas em matéria de privacidade, supervisão e controle. Altman desenvolveu um braço empresarial “com fins lucrativos”, permitindo à empresa atrair investimento externo e comercializar os seus serviços. Altman logo voltou a assumir o controle, quando a Microsoft e outros investidores decidiram. A OpenAI não está mais aberta…

As máquinas não conseguem pensar em mudanças potenciais e qualitativas. O conhecimento novo vem de tais transformações (humanas), não da extensão do conhecimento existente (máquinas). Só a inteligência humana é social e pode perceber o potencial de mudança, em particular a mudança social, que conduz a uma vida melhor para a humanidade e a natureza.

Em vez de desenvolver a IA para obter lucros, reduzir os empregos e os meios de subsistência dos seres humanos, a IA sob propriedade e planejamento comuns poderia reduzir as horas de trabalho humano para todos e libertar os seres humanos do trabalho árduo, para se concentrarem no trabalho criativo que só a inteligência humana pode realizar.

Michael Roberts

Economista. Co-editor, entre outros livros, de "The Great Recession: a Marxist View", "The Long Depression" e "Marx 200: a Review of Marx's Economics 200 years after his Birth". Autor do blog "The Next Recession" (https://thenextrecession.wordpress.com)


Intermitências

Escolas militares: um crime que atinge o coração do futuro. Nunca a sociedade brasileira foi alvo de tamanha monstruosidade ideológica

Policiais militares da reserva vão dar aulas sobre política e ética nas escolas cívico-militares em São Paulo

"Projeto Valores" terá aulas de ética e "valores cidadãos". A resolução cita civismo, dedicação, excelência, honestidade e respeito, e conteúdos que envolvem temas de direitos e deveres do cidadão e habilidades para o exercício da cidadania (leia mais no UOL)

PM exalta crimes nas redes e debocha até de punição

"Você sabe qual é a função da PM?", pergunta o subtenente reformado da Polícia Militar de São Paulo Nilson Castro da Silva. "Não é policiamento preventivo, ostensivo, fardado, porra nenhuma. Isso aí é o que tá no papel. A função da PM é atrasar o lado de vagabundo. (...) Ele reagiu? Saco. Manda para o inferno." (leia mais no UOL)

Festa macabra

Policia militar de São Paulo deixa youtuber americano participar de perseguição dentro de viatura: "mortes são comemoradas com charutos e cerveja" (leia aqui)

# O ethos neoliberal e o bacilo do fascismo

"Na cultura neoliberal do trabalho desenvolve-se toda uma apologia da necessidade de ser impiedoso, pois é o que a competitividade constante exige – e se a natureza humana é individualista e agressiva, se você não for impiedoso, outro será e tomará, assim, seu lugar", escreve Renake David, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, em artigo publicado em A Terra é redonda (expandir) 

A Peste, romance de Albert Camus que narra as transformações na vida dos habitantes de uma cidade sob o domínio da peste bubônica – e faz uma alegoria de todas as formas de opressão humanas, notadamente o nazifascismo –, termina com um alerta após o relato do efusivo júbilo que tomava conta dos cidadãos de Orã com o fim da epidemia: “Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada.

Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.[i]

Parece que, cerca de um século depois, em vários cantos do mundo, nos tocou viver em um ambiente muito propício para que o bacilo do fascismo saia de seu estado de latência e acorde seus ratos para morrer em países infelizes. Este texto pretende expor como algumas características essenciais do éthos neoliberal podem estar relacionadas ao crescimento da adesão ao discurso da extrema direita hoje.

Neoliberalismo é aqui entendido não como um mero conjunto de regras econômicas, mas como a mais recente fase histórica do capitalismo, que abarca uma unidade entre modelo de acumulação e formas políticas, sociais e culturais. Um conjunto de discursos, práticas e instituições que impõe, pela coerção e, sobretudo, pelo consenso, uma lógica normativa às condutas dos indivíduos, sejam eles pertencentes às classes dominantes ou às subalternas. Todas as épocas produzem as personalidades de que necessitam socialmente, isto é, adequam “a ‘civilização’ e a moralidade das mais amplas massas (…) às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de produção”[ii], nas palavras de Antonio Gramsci.

Theodor W. Adorno, que dedicou boa parte de sua obra ao objetivo de evitar que Auschwitz se repetisse, tentou nos conscientizar sobre como a atmosfera cultural geral da dinâmica social capitalista no século XX tendia a gerar personalidades com inclinações antidemocráticas. Os estudos de The Authoritarian Personality, realizados em conjunto com Levinson, Sanford e Frenkel-Brunswik, tinham o intuito de identificar o fascismo latente em parcelas da população estadunidense da época e analisar seus determinantes. A pesquisa não encontrou tantos casos de pessoas abertamente antidemocráticas, mas identificou tipos de personalidades que indicavam uma grande suscetibilidade à propaganda fascista, cuja conformidade a ideologias autoritárias, em dados momentos de crise social, poderia passar de um estado latente – e muitas vezes não consciente – para sua defesa aberta e ações violentas contra minorias tomadas como bodes expiatórios em uma sociedade onde a dominação social é cada vez mais abstrata e impessoal[iii].

À época em que foi publicado o resultado dessa pesquisa, 1950, Adorno avaliava que a personalidade manipuladora era a mais perigosa na tipologia elaborada a partir das características dos altos pontuadores na “escala F” (“F” de fascismo). Marcado pela estereotipia[iv] extrema – noções rigidamente dicotômicas (bom vs. mau, nós vs. os outros, eu vs. o mundo) tornam-se fins e não meios, e o mundo é dividido em campos administrativos, vazios e esquemáticos –, o tipo manipulador tem obsessão por “fazer coisas”, não se importando minimamente com o conteúdo de tais ações, e faz da atividade, da eficiência enquanto tal, um culto. Seu amor não consegue ser dirigido a outras pessoas, sendo absorvido por coisas, máquinas, equipamentos, enquanto as pessoas são tratadas como uma massa amorfa. Possui um tipo de consciência coisificada – “No começo, as pessoas desse tipo se tornam, por assim dizer, iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas”[v]. Adorno notava que este era um padrão encontrado “em numerosos homens de negócio e também, em número cada vez maior, entre membros da ascendente classe gerencial e tecnológica que mantêm, no processo de produção, uma função entre o antigo tipo de proprietário e a aristocracia dos trabalhadores”[vi].

Quinze anos após a publicação dos estudos de The Authoritarian Personality, Adorno alertava para o clima cultural que alimentava a preocupante tendência do desenvolvimento de números cada vez maiores de sujeitos inclinados à fetichização da técnica, i.e., que consideram a técnica como sendo algo em si mesma, com uma força própria, esquecendo que ela é um produto do trabalho humano. “Os meios – e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são fetichizados, porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas”[vii]. A supervalorização da técnica é algo muito característico da consciência coisificada do tipo manipulador e é o que leva, “em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com maior rapidez e fluência a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz”[viii].

E não é que essas características da obsessão com a eficiência e a atividade incessante, da consciência reificada, da supervalorização da técnica, estão muito presentes nas subjetividades constituídas pelo neoliberalismo, tão bem sintetizadas por Pierre Dardot e Christian Laval no que designaram como “sujeito empresarial”? Este deve conduzir sua vida de forma a render um desempenho sempre mais produtivo, de modo a expandir seu “capital humano” indefinidamente e, assim, garantir sua empregabilidade[ix]. As lógicas da concorrência e da eficiência e o modelo de empresa passam a reger todas as esferas da vida.

A ideia de fazer de si mesmo uma empresa sugere que cada indivíduo pode conduzir, controlar, gerir sua vida elaborando “estratégias” adequadas e racionalizando seus desejos. Na administração de si mesmo, o indivíduo deve empreender um autoaprimoramento constante, tornando-se cada vez mais eficaz, pronto para vencer cada competição e garantir sua permanência no jogo da “empregabilidade” - Renake David

A ideia de fazer de si mesmo uma empresa sugere que cada indivíduo pode conduzir, controlar, gerir sua vida elaborando “estratégias” adequadas e racionalizando seus desejos. Na administração de si mesmo, o indivíduo deve empreender um autoaprimoramento[x] constante, tornando-se cada vez mais eficaz, pronto para vencer cada competição e garantir sua permanência no jogo da “empregabilidade”. Todas as atividades do indivíduo devem ser concebidas como um processo de valorização do eu, assemelhando-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos[xi]. Estas técnicas de administração de “capital humano” são pragmáticas, “orientadas para a solução”. Dardot e Laval notam que “Não visam tanto ao porquê, mas ao ‘como isso funciona’. Para seguirmos o estilo das fórmulas encontradas nesse tipo de discurso, ‘o fato de encontrar o prego responsável pelo furo não diz nada sobre a maneira como se deve trocar o pneu’”[xii].

Na esfera profissional, as relações sociais tornaram-se transações comerciais pontuais, sem qualquer expectativa de confiança, compromisso ou solidariedade. Dardot e Laval mostram como as relações com o outro são vistas como uma forma de venda a mais e, da mesma maneira que são desenvolvidas técnicas de persuasão para vender um sapato ou um apartamento, também foram criadas técnicas para aumentar a eficácia dessas relações. O ser humano é uma empresa individual e toda empresa precisa de publicidade. E, como na publicidade, “Não se trata de dizer o que é verdadeiro e o que não é. Trata-se de perguntar qual é a forma mais eficaz e mais construtiva de se comunicar com alguém”, adverte uma apresentação pedagógica de programação neurolinguística[xiii]. O que importa é convencer o outro para obter resultados eficientes. O outro é um mero instrumento.

E como a ética da empresa aplicada à condução da subjetividade tornou a atividade laboral o veículo essencial da realização pessoal, os imperativos da eficiência e da concorrência como norma de conduta se alastram por todas as relações sociais humanas, assim como incide também sobre a relação do indivíduo consigo mesmo – que deve sempre buscar a melhor versão de si, ultrapassando seus feitos incessantemente – desde a mais tenra idade, pois é de criança que se começa e encher o porquinho de “capital humano”. Anne Helen Petersen mostra como, a partir da década de 1980, nos lares de classe média, os pais começaram a adotar o “cultivo combinado” na educação de seus filhos, i. e., preencher o tempo de suas crianças com atividades que as preparassem para o mercado de trabalho no futuro – desde aulas de balé, piano, línguas estrangeiras, esgrima, participação em diversas competições, até o estímulo à formação de uma rede de contatos influentes. “(…) para ser ‘bem-sucedida’, uma criança Millennial, pelo menos de acordo com os padrões da classe média, tinha que se preparar para o burnout”[xiv].

Na era neoliberal, os trabalhadores são estimulados a se “libertarem do estatuto passivo do assalariado” – leia-se, basicamente, direitos sociais e trabalhistas garantidos em conjunto pelo Estado e pela empresa – da Era de Ouro e se tornarem empresas de si mesmos a fim de serem bem-sucedidos - Renake David

O fato de o trabalho ser considerado a esfera primordial da realização pessoal não quer dizer, entretanto, que a identidade de classe do trabalhador é incentivada, muito pelo contrário. Na era neoliberal, os trabalhadores são estimulados a se “libertarem do estatuto passivo do assalariado” – leia-se, basicamente, direitos sociais e trabalhistas garantidos em conjunto pelo Estado e pela empresa – da Era de Ouro e se tornarem empresas de si mesmos a fim de serem bem-sucedidos. Eufemismos como “colaborador” passam a substituir “trabalhador” ou “funcionário”, termos que viraram quase tabu no mundo corporativo. Nessa ultra-robinsonada, não há espaços para redes de suporte coletivo, como os sindicatos, considerados não apenas inúteis, mas inimigos do sucesso individual. A atomização social preconizada pela ordem neoliberal é um adubo imprescindível para que floresça o ambiente de competição generalizada. Todos e cada um estão submetidos ao imperativo da competitividade, que nunca cessa.

Portanto, para “vencer na vida”, é necessário ter dentro de si a tal obsessão por fazer coisas que Adorno identificava na personalidade manipuladora. Um depoimento de um associado da Goldman Sachs nos anos 2000 ilustra com precisão essa característica e como ela virou conduta normativa entre homens de negócios e gerentes:

A autoestima tem a ver com isso – completar e fazer coisas. Em uma grande empresa ou no mundo acadêmico, é difícil fazer as coisas. [Em Wall Street,] você trabalha com muitas pessoas e todas são superdedicadas, muito inteligentes e motivadas de verdade, e isso cria um ambiente muito bom. Acho que nos velhos tempos, nos anos 1950 ou 1960, as pessoas meio que tinham um padrão definido para suas vidas. Elas iam trabalhar, subiam na hierarquia devagar e faziam qualquer coisa que lhes fosse ordenada. Acho que agora as pessoas foram seduzidas pela possibilidade de dar saltos na carreira e pela grande diferença que podem fazer, quão importante você pode se sentir ou qualquer outra coisa que seja atraente para elas… Acho que nos dias de hoje, você pode fazer muita coisa, e isso é sedutor. É por isso que pessoas que já têm dinheiro mais do que suficiente, respeito mais do que suficiente, continuam envolvidas nisso, sacrificando seu tempo com a família, porque precisam se sentir necessárias. E não há nada melhor do que estar sempre entregando e concluindo coisas” [xv].

Por “coisas” o sujeito neoliberal quer dizer “trabalho”, i. e., fazer seu “capital humano” gerar valor, mais valor, incessantemente. Se você se concede um descanso… um descanso não, uma pausa, uma pausa que não é estratégica o suficiente para lhe permitir trabalhar 130 horas semanais[xvi], você pode perder sua empregabilidade. E não importa que uma enorme quantidade de pesquisas[xvii] demonstre que excesso de trabalho, uma hora ou outra, resulta em queda de desempenho – porque o capataz que se instaurou dentro de cada consciência lhe diz que “cada momento que se passa sem trabalhar significa que outra pessoa está saindo à sua frente”[xviii]. Petersen sublinha que, conforme os sindicatos e a legislação que os protegia se tornaram impopulares durante a era neoliberal, o mesmo sucedeu à solidariedade entre trabalhadores. Como cada indivíduo se enxerga como um trabalhador independente em constante competição, como uma empresa, a solidariedade torna-se um empecilho[xix]. À medida que crescem os níveis de precariedade das condições de trabalho, aumentam a propaganda e o sentimento de que é necessário, para permanecer um bom competidor no mercado de trabalho, estar disposto a ultrapassar, constantemente, todos os limites físicos e emocionais. “Sair da sua zona de conforto” tornou-se um dos maiores clichês no receituário para o sucesso do homem-empresa.

Assistimos à ascensão e propagação da “hustle culture” –“cultura da labuta”. “Hustle” compreende o sentido de pressa, assim como os de atividade, movimento, aperto e luta competitiva. O indivíduo capturado por esse modo de ser não é só obcecado por fazer coisas, mas também em ostentar que é obcecado por fazer coisas, acelerada e incansavelmente - Renake David

Nos últimos anos, assistimos à ascensão e propagação da “hustle culture” –“cultura da labuta” ou “cultura da ralação”. “Hustle” compreende o sentido de pressa, assim como os de atividade, movimento, aperto e luta competitiva. O indivíduo capturado por esse modo de ser não é só obcecado por fazer coisas, mas também em ostentar que é obcecado por fazer coisas, acelerada e incansavelmente. É o pessoal ávido por exclamar “Segundou!” no lugar de “Sextou!” nas redes sociais[xx].

As empresas da economia dos bicos (Gig Economy) elaboram campanhas agressivas louvando esse tipo de “dedicação”. Uma delas achou por bem publicar em seu blog a história de uma de suas motoristas, que, a uma semana de dar à luz, sentiu fortes contrações, mas continuou levando passageiros de um lado para o outro, pois pensava que era só um desconforto qualquer, e quando ela finalmente se deu conta de que era mesmo o bebê querendo sair do útero uma semana mais cedo, dirigiu-se ao hospital, não sem, no meio do caminho, fazer outra corrida[xxi].

No Brasil, a iFood se notabilizou por uma ação de marketing 4.0 contra as greves dos entregadores, e vários de seus conteúdos eram típicos da cultura da labuta – “Correria hoje pra construir o amanhã”, “Não pare quando estiver cansado. Pare quando estiver tudo feito”[xxii]. Outra campanha emblemática do tipo manipulador, “possesso pela vontade de doing things”[xxiii] é esta: “Você almoça um café. Você persiste na sua persistência. Privação do sono é sua droga favorita. Você pode ser uma pessoa de ação. Fiverr – Nós acreditamos em pessoas de ação (doers)”[xxiv].

O bilionário mais autocongratulatório dos nossos tempos, o novo dono do ex-Twitter, é um grande entusiasta da cultura da labuta. Em novembro de 2016 ele postou que havia lugares mais tranquilos do que a Tesla para trabalhar, “mas ninguém nunca mudou o mundo trabalhando 40 horas semanais”. E completou com outro dos maiores contos do vigário da razão neoliberal: se você ama o que faz, “(quase) não sente que está trabalhando”[xxv].

Fica evidente que o sujeito ideal do neoliberalismo deve estar disposto a nunca parar de trabalhar. Na tão disseminada fórmula “Não pare quando você estiver cansado. Pare quando tiver finalizado a tarefa”, à primeira vista, parece que o descanso virá após o serviço terminado, mas, como observam Dardot e Laval, a subjetividade empresarial desta fase do capitalismo define uma “subjetivação pelo excesso de si em si ou, ainda, pela superação indefinida de si”. A satisfação nunca chega, porque o gozo está num “além de si sempre repelido”[xxvi]. É a lógica da sobrevivência de uma empresa – se não há crescimento econômico, se seu capital não é continuamente expandido, ela perece diante das concorrentes.

Durante os primeiros impactantes meses da pandemia da Covid-19, a Secretaria de Comunicação do governo Bolsonaro formulou uma peça publicitária cujo lema era “O Brasil não pode parar”[xxvii], na qual o locutor citava diversas profissões, repetindo “o Brasil não pode parar”. Cerca de dois meses depois, na cruzada bolsoguedista antilockdown, a Secom lançou outra campanha, desta feita aludindo a um dos mais famosos lemas nazistas, “O trabalho liberta”: “Parte da imprensa insiste em virar as costas aos fatos, ao Brasil e aos brasileiros. Mas o governo, por determinação de seu chefe, seguirá trabalhando para salvar vidas e preservar o emprego e a dignidade dos brasileiros. O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil…”[xxviii].

Deve ter escorrido uma furtiva lágrima entre alguns membros do governo Bolsonaro quando souberam da dedicação da rede de supermercados Carrefour em não fechar nem em caso de um trabalhador morrer em pleno expediente – foi só cobrir o corpo do recente defunto com alguns guarda-sóis e cercá-lo com uns tapumes improvisados para nenhum funcionário ou cliente se distrair com impulsos de comiseração, um sentimento claramente improdutivo para os padrões neoliberais[xxix]. Afinal, chega de frescura, de mimimi. Vamos ficar chorando até quando?[xxx]

O realismo exagerado é outro traço que o sujeito neoliberal compartilha com a personalidade manipuladora. Possesso pela vontade de “fazer coisas”, o tipo manipulador não pode imaginar, nem por um segundo, o mundo diferente do que ele é. “A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik”[xxxi]. “É preciso ser realista”, dizem. Não deve haver utopia. Por realismo esse sujeito entende o reconhecimento da “esmagadora superioridade do existente em relação ao indivíduo e suas intenções, de que se advoga um ajuste que implica a resignação em relação a qualquer tipo de melhoria básica, de que se desiste de qualquer coisa que possa ser chamada de devaneio e de que se remodela a si mesmo como se fosse um apêndice do maquinário social”[xxxii].

Uma das marcas indeléveis do clima cultural nos anos neoliberais é a desqualificação das utopias – seja como tolice, infantilidade ou caminho pavimentado para o totalitarismo - Renake David

Ora, uma das marcas indeléveis do clima cultural nos anos neoliberais é a desqualificação das utopias – seja como tolice, infantilidade ou caminho pavimentado para o totalitarismo. No plano coletivo, há todo um trabalho de criação de consenso em torno dessa ideia, difundida em diversas plataformas. No plano individual, as diversas técnicas neoliberais para a autoadministração da nossa “empresa interna” individual – coaching, programação neurolinguística, análise transacional – vendem ferramentas para que tenhamos mais chances de nos adaptarmos melhor à realidade, tornando-nos mais operacionais mesmo diante das situações mais estressantes ou deprimentes[xxxiii].

As pesquisas de The Authoritarian Personality mostraram que, entre os altos pontuadores da “escala F”, a negação da utopia encontra-se bastante vinculada a ideias como “a maldade eterna e intrínseca da natureza humana” e o “instinto humano de luta”. Adorno alertava que “uma pessoa pode expressar agressividade mais livremente quando crê que todos estão fazendo o mesmo”[xxxiv]. A difamação da natureza humana como egoísta e belicosa também é bastante compartilhada pelo ideário neoliberal. Essa crença cultural foi até fantasiada com trajes de ciência, como denuncia Susan McKinnon, comumente apresentada sob a rubrica de “psicologia evolucionista”, que adultera a teoria da evolução e da seleção natural numa “genética neoliberal”, naturalizando os “valores econômicos neoliberais do interesse individual, da competição, da escolha racional e do poder do mercado para criar relações sociais” [xxxv].

O mundo da civilização capitalista é pintado como um estado de natureza, mas os bem-sucedidos nesse vale-tudo podem furar os olhos dos competidores com uma faca Christofle, trajando um terno Armani, após terem chegado de helicóptero à arena. Mas que eles não se acostumem a esses mimos, pois “nada é garantido” e, na próxima batalha, tudo lhes pode ser retirado- Renake David

Na cultura neoliberal do trabalho desenvolve-se toda uma apologia da necessidade de ser impiedoso, pois é o que a competitividade constante exige – e se a natureza humana é individualista e agressiva, se você não for impiedoso, outro será e tomará, assim, seu lugar. O mundo da civilização capitalista é pintado como um estado de natureza, mas os bem-sucedidos nesse vale-tudo podem furar os olhos dos competidores com uma faca Christofle, trajando um terno Armani, após terem chegado de helicóptero à arena. Mas que eles não se acostumem a esses mimos, pois “nada é garantido” e, na próxima batalha, tudo lhes pode ser retirado.

Para mostrar seu valor pessoal na sociedade neoliberal, é imperativo superar seus limites, sejam físicos, psicológicos ou morais. Nos reality shows de competição, que exprimem tão bem a ética do sujeito-empresa neoliberal, a impiedade, a sabotagem e o egoísmo são vistos como mais uma “habilidade” qualquer na competição. Segundo um participante desses programas de naturalização do sofrimento (tanto do sofrimento autoimposto quanto o do imposto ao concorrente), “Em situações de sobrevivência, há muitas coisas das quais você tem que se livrar. No que concerne aos objetivos morais, às vezes é cada um por si. A parte da compaixão, você tem que matar”[xxxvi].

Silvia Viana mostra como esses programas estão cheios de exemplos como este, que reproduzem a ética da hegemonia neoliberal que deve conformar o sujeito-empresa. O trabalho sujo passa a ser valorizado como coragem – “É necessário esforço para ser mau, ir contra a própria consciência”[xxxvii]. Christophe Dejours assinala: “A violência, a injustiça, o sofrimento infligido a outrem só podem se colocar ao lado do bem se forem infligidos no contexto de uma imposição de trabalho ou de uma ‘missão’ que lhes sublime a significação”[xxxviii].

Em uma entrevista ao jornal português Público, Dejours relata o caso de um estágio de formação na França em que, no início, cada um dos 15 participantes – todos quadros superiores – recebeu um gatinho. Ao fim do estágio, que durou uma semana, o diretor ordenou que todos matassem esses gatos. Era uma formação para ser impiedoso. 14 pessoas obedeceram. A única que não acatou a ordem adoeceu e teve que se consultar com Dejours. O entrevistador comenta: “Está a descrever um cenário totalmente nazi…”[xxxix].

Na perpetração dos horrores nazistas, reinou a mesma lógica da valorização do trabalho sujo como heroísmo - Renake David

Pois é… Em Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt discorre sobre o papel de Heinrich Himmler em “resolver problemas de consciência”, apontando que ele quase nunca tentava justificar as atrocidades nazistas em termos ideológicos, mas sim buscava inverter a direção dos instintos que afetam todo homem normal diante do sofrimento físico alheio, fazendo que se voltassem para o próprio indivíduo perpetrador da violência: “Assim, em vez de dizer ‘Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas!’, os assassinos poderiam dizer ‘Que coisas horríveis eu tive de fazer na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre os meus ombros!’”[xl]. Na perpetração dos horrores nazistas, reinou a mesma lógica da valorização do trabalho sujo como heroísmo.

Adorno constatou que muitos antissemitas politicamente fascistas no Terceiro Reich eram do tipo manipulador, como Himmler, Höss e Eichmann. “Sua inteligência sóbria, junto com a ausência quase completa de quaisquer afetos, torna-os talvez os mais impiedosos de todos. Seu modo organizacional de olhar para as coisas os predispõe a soluções totalitárias. Seu objetivo é a construção de câmaras de gás // em vez do pogrom.” Não é nem mesmo preciso odiar os bodes-expiatórios escolhidos – lidam com eles por medidas administrativas, sem qualquer contato pessoal com as vítimas. “Seu cinismo é quase completo: ‘A questão judaica será resolvida de maneira estritamente legal’ é a maneira como falam sobre o frio pogrom”[xli].

Algumas considerações de Arendt sobre a subjetividade de uma parcela dos nazistas também se assemelham à descrição da personalidade manipuladora feita por Adorno. Segundo Arendt, o nazismo percebeu que, para sua máquina do domínio e do extermínio, “as massas coordenadas da burguesia constituíam material capaz de crimes ainda piores que os cometidos pelos chamados criminosos profissionais [oriundos da ralé], contanto que esses crimes fossem bem organizados e assumissem a aparência de tarefas rotineiras”[xlii]. Ela assinalava que Himmler não era “boêmio como Goebbels, nem criminoso sexual como Streicher, nem louco como Rosenberg, nem fanático como Hitler, nem aventureiro como Göring”, mas um homem “mais normal”.

A grande capacidade de Himmler para organizar as massas sob o domínio nazista partia do pressuposto de que os homens, em sua maioria, não eram boêmios, fanáticos, aventureiros, maníacos sexuais, loucos nem fracassados, “mas, acima e antes de tudo, empregados eficazes e bons chefes de família”.

Arendt julgava que a atomização do indivíduo burguês, expressa em sua grande devoção a questões de família e de carreira pessoal, era o produto da crença burguesa na suma importância do interesse privado. O típico homem que Himmler organizou para a tortura e assassinato em massa, de forma industrial, “era o burguês que, em meio às ruínas do seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento – crença, honra, dignidade”[xliii].

No início da década de 1940, Herbert Marcuse, ao analisar a nova mentalidade construída sob o regime nazista, apontava como, após a I Guerra Mundial, o ritmo da reconstrução e da modernização do aparato industrial alemão foi admirável, mas os lucros obtidos desse aparato não foram os esperados pelos capitalistas alemães, devido ao encolhimento do mercado interno, à perda do mercado externo, e à legislação social da República de Weimar[xliv].

O nazismo lhes ofereceu a volta de uma política imperialista direta, a expansão do mercado interno e a passagem de um rolo compressor sobre a legislação social (e dos partidos e movimentos sociais de esquerda, que a apoiavam)[xlv]. “O mesmo princípio de eficiência que, na organização dos negócios, levou à arregimentação da indústria, beneficiando os mais poderosos conglomerados, leva, na organização do trabalho, à total mobilização da força de trabalho”[xlvi].

Entre as principais características da subjetividade na Alemanha nazista, Marcuse destaca justamente as ideias de competitividade implacável, eficiência, pragmatismo, glorificação do indivíduo e do risco, tão caras ao neoliberalismo - Renake David

E entre as principais características da subjetividade na Alemanha nazista, Marcuse destaca justamente as ideias de competitividade implacável, eficiência, pragmatismo, glorificação do indivíduo e do risco, tão caras ao neoliberalismo. A população alemã, sob o nazismo, havia sido impregnada com “uma racionalidade que mede todos os assuntos em termos de eficiência, sucesso e eficácia. O ‘sonhador’ e ‘idealista’ alemão tornou-se o ‘pragmático’ mais brutal do mundo. Ajustou seus pensamentos, sentimentos e comportamento à racionalização tecnológica que o nacional-socialismo transformou na mais formidável arma de conquista. Pensa em quantidades: em termos de velocidade, habilidade, energia, organização, massa”[xlvii].

Marcuse ponderava que o terror que ameaçava o indivíduo alemão a qualquer momento provocava nele essa mentalidade: “aprendeu a ser desconfiado e astuto (…), mecanizar suas ações e reações e adaptá-las ao ritmo da arregimentação universal. Esta factualidade é o próprio cerne da mentalidade nacional-socialista e o fermento psicológico do sistema nacional-socialista”[xlviii]. Marcuse ressalta que o discurso de Adolf Hitler no Clube da Indústria em janeiro de 1932 enfatizava que, no mundo moderno, fosse no âmbito privado, social ou político, a vida se baseava no princípio da eficiência.

De acordo com este princípio, os indivíduos, assim como os grupos sociais e as nações recebem uma participação no produto social medido pelo seu desempenho na luta competitiva – independentemente dos meios pelos quais este desempenho foi atingido e independentemente de seus fins, desde que se mantenham dentro do padrão social estabelecido. Para Hitler, a sociedade moderna se perpetua pela competição implacável entre grupos e indivíduos desiguais: somente o concorrente mais implacável e mais eficiente consegue se manter neste mundo”[xlix].

Segundo Marcuse, o Estado nazista foi a consumação do individualismo competitivo, e não seu reverso, como tantas vezes foi e é interpretado. “O regime libera todas as forças do autointeresse brutal que os países democráticos haviam tentado dominar e as combina com o interesse da liberdade”[l]. A ênfase no indivíduo presente nas proclamações ideológicas nazistas tinha sua contrapartida na organização das massas, que é guiada pelo princípio da atomização e do isolamento. Ao contrário da organização de classe, a organização de massas não se dá pela consciência de um interesse comum, mas é apenas uma coordenação de indivíduos, “cada um seguindo seu interesse próprio mais primitivo e a unificação destes se efetua pelo fato de este autointeresse próprio se reduzir ao simples instinto de autopreservação, que é idêntico em todos eles”[li].

Não quero argumentar que neoliberalismo e fascismo são a mesma coisa. Assim como Amós Oz, considero que distinguir entre as gradações do mal é uma parte difícil e absolutamente necessária do exercício moral. É preciso “prestar atenção às diferenças entre o que é ruim, pior e o pior de tudo”[lii]. Logicamente, o fascismo é o que está no balaio com a etiqueta “pior de tudo”. O que tento fazer aqui é chamar atenção para certas afinidades inquietantes entre a subjetividade-modelo produzida pelo neoliberalismo e 1) os tipos de personalidade que os estudos de Adorno detectaram, nos anos 40 do século passado, como as mais propensas a serem seduzidas pela propaganda fascista, e 2) algumas características que o fascismo histórico considerava ideais como norma de conduta para sua subjetividade-modelo.

O Zeitgeist do neoliberalismo torna mais fácil a tarefa da propaganda fascista, ao mesmo tempo que cria as condições objetivas para que a adesão popular – seja por entusiasmo ou identificação total (ou quase), seja por indiferença aos horrores que vêm anexados ao ticket fascista – se dissemine como rastilho de pólvora - Renake David

Portanto, parece-me que o Zeitgeist do neoliberalismo torna mais fácil a tarefa da propaganda fascista, ao mesmo tempo que cria as condições objetivas para que a adesão popular – seja por entusiasmo ou identificação total (ou quase), seja por indiferença aos horrores que vêm anexados ao ticket fascista – se dissemine como rastilho de pólvora.

As semelhanças entre o contexto histórico de surgimento do fascismo clássico e o que estamos vivendo hoje em dia são suficientemente alarmantes. Refiro-me, sobretudo, à imensa concentração de capital e, consequentemente, ao crescimento da desigualdade social e da instabilidade econômica, com milhões de indivíduos buscando novas formas de sobrevivência para evitar o descenso social – ou ficando frustrados com a quebra de expectativas de ascensão social. Às brutais pressões econômicas, soma-se a corrosão da legitimidade das principais instituições da democracia burguesa, consideradas corruptas e ineficientes para proteger os que se sentiram logrados, injustiçados ou deixados para trás.

As semelhanças entre o contexto histórico de surgimento do fascismo clássico e o que estamos vivendo hoje em dia são suficientemente alarmantes. Refiro-me, sobretudo, à imensa concentração de capital e, consequentemente, ao crescimento da desigualdade social e da instabilidade econômica, com milhões de indivíduos buscando novas formas de sobrevivência - Renake David

Grandes ondas de ressentimento vão se formando e elas alcançam níveis maiores onde a atomização social se dissemina com mais profundidade. Hoje temos como agravante a crise climática, que expõe claramente a obsolescência do modo de produção capitalista, guiado pela compulsão do crescimento incessante em um planeta cujos recursos são finitos e cujo equilíbrio ecológico do qual a vida humana depende é extremante complexo e delicado.

Ainda que, contra todas as condições catalisadoras dos tempos neoliberais, uma nebulosa fascista não se precipite, é demasiado preocupante que tanto da mentalidade fascista sobreviva tão difusa entre nós. E isso não deveria nos surpreender porque o fascismo surgiu como uma forma de administração capitalista para tentar solucionar uma crise de lucratividade combinada a uma crise de legitimidade.

O fascismo surgiu como uma forma de administração capitalista para tentar solucionar uma crise de lucratividade combinada a uma crise de legitimidade - Renake David

Tenho a impressão de que o significante “nazismo” (e seus derivados) ainda provoca muita rejeição, mas muito do conteúdo que o seu significado expressa é aceito ou naturalizado, num surreal divórcio entre significante e significado. Alguns intelectuais contemporâneos europeus lamentam uma amnésia dos fatos de horror que ocorreram sob o regime nazista e clamam por uma batalha pela memória. Esta é, de fato, crucial para barrar o fascismo, mas não é suficiente, especialmente se ignorarmos quais as condições sociais que geram os amnésicos. E, ainda assim, sabendo os fatos, será possível que o pensamento possa trabalhá-los de forma categorial? Porque não adianta termos o conhecimento de todos os fatos se formos como “Irineu Funes, o memorioso”, isto é, incapazes de estabelecer relações conceituais, mesmo possuindo uma memória infalível.

E essa é uma das grandes tragédias do desenvolvimento capitalista: limitar o pensamento humano à apreensão do factual isolado, reduzi-lo a um simples atributo para a qualificação no mercado de trabalho. O alinhamento das temporalidades vividas pelo indivíduo com as necessidades da rotação do capital desestimula a reflexão intelectual e a espiritual porque o tempo que se dispende com elas é considerado improdutivo, visto que o pensamento é nivelado ao imediatamente presente. Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, advertiram para a regressão que a sociedade industrial avançada produzia sobre a efetuação do juízo, subtraindo-lhe a capacidade de julgar, de distinguir o verdadeiro e o falso.

O pensamento estava se convertendo em um “objeto de luxo fora de moda”. Essa expressão me remete a uma fala de Arthur Weintraub, entrevistado por Eduardo Bolsonaro em uma live, quando revela ser um dos gurus da cloroquina do Ministério da Saúde paralelo montado por Jair Bolsonaro. Segundo Arthur, o então presidente o conclamou: “Ô, magrelo, você que é porra-louca, vai lá e estuda isso daí, cara”. E então ele começou a ler artigos na internet. Sobre o método científico, Arthur se expressou assim: “O modelo acadêmico, que segue o método científico, é um modelo arcaico, cara, é uma coisa que vem de quando não tinha internet, era tudo no papel, as pessoas tinham tempo…”[liii].

O “naufrágio da reflexão” pavimenta o caminho para as arbitrariedades e o embrutecimento da administração fascista - Renake David

Esse “naufrágio da reflexão” pavimenta o caminho para as arbitrariedades e o embrutecimento da administração fascista: “Quando o fascismo substituiu no processo penal os procedimentos legais complicados por um procedimento mais rápido, os contemporâneos estavam economicamente preparados para isso; eles haviam aprendido a ver as coisas, sem maior reflexão, através dos modelos conceituais e termos técnicos que constituem a estrita ração imposta pela desintegração da linguagem”[liv].

Mark Fisher, cerca de sete décadas depois, relatava como o trabalho dos professores encontrava-se sob uma intolerável pressão para mediar “a subjetividade pós-letrada do consumidor no capitalismo tardio e as demandas do regime disciplinar (passar nos exames e coisas do tipo)”[lv], analisando os impactos de uma “cultura pontilhada, a-histórica e antimnemônica” sobre a geração Z e uma parte da geração Y, para as quais “o tempo, desde sempre, veio cortado e embalado em micro fatias digitais”[lvi] e o reconhecimento de slogans é o suficiente para orientar-se no plano informacional dos tempos da internet.

A união entre o celular e a internet constitui uma ferramenta poderosa na produção do pensamento estereotipado, tão marcante no tipo manipulador e fundamental para as necessidades do aparelho econômico de produção do capitalismo moderno. A vivência virtual pelo smartphone predispõe nossa consciência a ser cativa da proliferação de imagens, da celebração do efêmero, das robinsonadas, da pressa, do ruído e da luz incessantes, da vigília constante, e avessa ao silêncio, ao sono, à solitude, à ponderação, à introspecção, à hesitação – porque estes últimos significam um aumento no tempo de rotação capital, cada vez mais intolerável na sociedade do desempenho, amparada na compulsão capitalista pela expansão.

Adorno e Horkheimer observaram que, na sociedade capitalista, a partir do século XX, “quem hesita se vê proscrito como um desertor. Desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um sinal do pensamento e da humanidade. O tempo perdido representava e mediatizava ao mesmo tempo a distância entre o individual e o universal”[lvii].

E uma observação de Victor Klemperer é bastante ilustrativa de como a postura anti-hesitação também era valorizada pelo nazismo: “ponto de vista de Montaigne: Que sais-je, o que sei? Ponto de vista de Renan: o ponto de interrogação é o mais importante de todos os sinais de pontuação. É a posição de extremos antagonismo à teimosia e à autoconfiança nazistas. O pêndulo da humanidade oscila entre ambos os extremos, procurando o ponto de equilíbrio. Antes de Hitler e durante o período de Hitler afirmou-se inúmeras vezes que todo progresso se deve aos obstinados e todos os empecilhos se devem aos simpatizantes do ponto de interrogação. Não se pode afirmar isso com certeza, mas se pode afirmar, com certeza, que mãos sujas de sangue são sempre de obstinados”[lviii].

O capitalismo vem se tornando, assim, cada vez mais, o reinado dos “doers”, dos homens de ação, do tipo manipulador. Se, na aurora do capitalismo, tornar-se um apêndice da máquina era a figura que marcava a alienação humana, se a desantropomorfização imposta pelo capitalismo era representada pela animalização, por tornar-se um “gorila amestrado”, hoje nossa alienação é marcada pela tentativa da imitação mais próxima possível da máquina, nossa desantropomorfização é representada pela digitalização da nossa subjetividade – a máquina opera pela estereotipia.

Por isso é necessário, como advertiu Brecht, que não se qualifique o fascismo simplesmente como uma “onda de barbárie que desabou como uma catástrofe da natureza sobre alguns países”. Tomar uma posição contra o fascismo sem criticar o capitalismo, que o engendra, seria como querer “comer sua porção de vitela sem abatê-la. Querem comer a vitela, mas não querem ver o sangue. Contentam-se em saber que o açougueiro lava as mãos antes de trazer a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie. São apenas contra a barbárie”[lix].

A ameaça do bacilo do fascismo é eterna… enquanto dure o capitalismo.


Referências

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Notas:

[i] Albert Camus, A Peste, Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 269. O romance foi escrito durante os anos que Camus integrou o movimento da resistência francesa ao nazismo e publicado pela primeira vez em 1947.

[ii] Antonio Gramsci, “Caderno 13 (1932-1934) – Breves notas sobre a política de Maquiavel” in: Cadernos do Cárcere, vol. 3, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 23.

[iii] Cf. Theodor W. Adorno, Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, São Paulo: Editora Unesp, 2019. 

[iv] A estereotipia nos estudos frankfurtianos nada tem a ver, portanto, com o conceito de estereotipia associado ao Transtorno do Espectro Autista, que compreende comportamentos motores e verbais repetitivos, restritos e sem finalidade aparente.

[v] Theodor W. Adorno, “Educação após Auschwitz” in: Educação e Emancipação, São Paulo: Paz e Terra, 2021, p. 141. Palestra na Rádio de Hessen, transmitida em 18 de abril de 1965, publicada pela primeira vez em 1967.

[vi] Theodor W. Adorno, Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, São Paulo: Editora Unesp, 2019, pp. 561-562, grifos adicionados.

[vii] Theodor W. Adorno, “Educação após Auschwitz” in: Educação e Emancipação, São Paulo: Paz e Terra, 2021, pp. 143-144.

[viii] Theodor W. Adorno, “Educação após Auschwitz” in: Educação e Emancipação, São Paulo: Paz e Terra, 2021, p. 144.

[ix] Cf. Pierre Dardot & Christian Laval, A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal, São Paulo: Boitempo, 2016.

[x] Em inglês, self-improvement, termo bastante usado no corporativês. Ellen Wood, ao defender a tese de que o capitalismo nasce no campo, chama atenção para como “improve” (melhorar/aprimorar/aperfeiçoar), em sua acepção original, significava, literalmente, fazer alguma coisa visando ao lucro monetário, especialmente por meio do cultivo de terras. No século XVII, “improver” (melhorador) referia-se àquele que tornava a terra produtiva e lucrativa. Com o tempo, “improve” e seus derivados foram adquirindo o significado mais geral que conhecemos hoje – “e seria interessante pensar nas implicações de uma cultura em que a palavra correspondente a ‘tornar melhor’ enraíza-se no termo que corresponde a lucro monetário”. Ellen Wood, A Origem do Capitalismo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 89.

[xi] A “atividade do indivíduo, sob suas diferentes facetas (trabalho remunerado, trabalho beneficente para uma associação, gestão do lar familiar, aquisição de competências, desenvolvimento de uma rede de contatos, preparação para uma mudança de atividade etc.), é pensada em sua essência como empresarial.”, diz um dos gurus do “desenvolvimento pessoal”. Bob Aubrey, L’entreprise de soi, Paris: Flammarion, 2000, p. 15 apud: Pierre Dardot e Christian Laval, A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal, São Paulo: Boitempo, 2016, p. 335.

[xii] Pierre Dardot e Christian Laval, A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal, São Paulo: Boitempo, 2016, p. 340.

[xiii] Antoni Girod, La PNL, Paris: Interéditions, 2008, p. 37 apud: Pierre Dardot e Christian Laval, A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal, São Paulo: Boitempo, 2016, p. 340.

[xiv] Anne Helen Petersen, Não Aguento Mais Não Aguentar Mais: Como os Millennials Se Tornaram a Geração do Burnout, Rio de Janeiro: HarperCollins, 2021 [2020], pp. 64-65, capítulo 2 (Miniadultos em crescimento).

[xv] Karen Zouwen Ho, Liquidated: An Ethnography of Wall Street, Durham: Duke University Press, 2009 apud: Anne Helen Petersen, Não Aguento Mais Não Aguentar Mais: Como os Millennials se Tornaram a Geração do Burnout, Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2021, p. 180.

[xvi] Marissa Mayer, ex-CEO do Yahoo, disse em entrevista ao Bloomberg Businessweek, em 2016, que trabalhar 130 horas semanais é possível “se você é estratégico sobre quando você dorme, quando você toma banho e quão frequentemente você vai ao banheiro”. Max Chafkin, “Yahoo’s Marissa Mayer on Selling a Company While Trying to Turn It Aroundin: Bloomberg, 4 ago. 2016. Último acesso: 25 ago. 2023.

[xvii] Camilo Rocha, “Quais as críticas a quem glorifica a ‘ralação’ no trabalho?in: Nexo via Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, 18 fev. 2019. Último acesso: 25 ago. 2023.

[xviii] Miya Tokumitsu, Do What You Love And Other Lies About Success and Happiness, Nova York: Regan Arts, 2015 apud: Anne Helen Petersen, Não Aguento Mais Não Aguentar Mais: Como os Millennials Se Tornaram a Geração do Burnout, Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2021, p. 122.

[xix] Cf. Anne Helen Petersen, Não Aguento Mais Não Aguentar Mais: Como os Millennials se Tornaram a Geração do Burnout, Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2021.

[xx] Em inglês, usam a sigla “T.G.I.M” – Thank, God, It’s Monday!”.

[xxi] Ver Bryan Menegus, “Lyft Thinks It’s Exciting That a Driver Was Working While Giving Burthin: Gizmodo, 22 set. 2016. Último acesso: 25 ago. 2023.

[xxii] Ver Clarissa Levy, “A Máquina Oculta de Propaganda do iFoodin: A Pública, 4 abr. 2022. Último acesso: 25 ago. 2023.

[xxiii] Theodor W. Adorno, “Educação após Auschwitz” in: Educação e Emancipação, São Paulo: Paz e Terra, 2021, p. 140.

[xxiv] “You eat a coffee for lunch. You follow through on your follow through. Sleep deprivation is your drug of choice. You might be a doer. Fiverr – In doers we trust”. Ver Jia Tolentino, “The Gig Economy Celebrates Working Yourself to Death”, The New Yorker, 22 mar. 2017. Último acesso: 25 ago. 2023.

[xxv] Ver Erin Griffith, “Why Are Young People Pretending to Love Work?”, The New York Times, 26 jan. 2019. Último acesso: 25 ago. 2023.

[xxvi] Pierre Dardot e Christian Laval, A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal, São Paulo: Boitempo, 2016, p. 357, grifos no original.

[xxvii] Ver “Governo federal lança vídeo em tom emocional pedindo que o Brasil não pare; veja”, Tempo, 22 mar. 2020. Último acesso: 25 ago. 2023.

https://www.otempo.com.br/politica/governo-federal-lanca-video-em-tom-emocional-pedindo-que-o-brasil-nao-pare-veja-1.2317098

[xxviii] Ver Anaís Motta, “Secom usa lema associado ao nazismo para divulgar ações, mas nega relação” in: UOL Notícias, 10 maio 2020. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/10/secom-usa-lema-associado-ao-nazismo-para-divulgar-acoes-contra-a-covid-19.htm. Último acesso: 25 ago. 2023.

[xxix] Ver “Trabalhador morre em supermercado no Recife; corpo é coberto por guarda-sóis, e local continua funcionando”, G1, 19 ago. 2020. https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/08/19/representante-de-vendas-morre-em-supermercado-no-recife-e-corpo-e-coberto-por-guarda-sois.ghtml. Último acesso em 26 ago. 2023.

[xxx] Ver Daniel Gullino, “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, diz Bolsonaro sobre pandemia, O Globo, 4 mar. 2021. https://oglobo.globo.com/saude/coronavirus/chega-de-frescura-de-mimimi-vao-ficar-chorando-ate-quando-diz-bolsonaro-sobre-pandemia-1-24909333. Último acesso: 26 ago. 2023.

[xxxi] Theodor W. Adorno, “Educação após Auschwitz” in: Educação e Emancipação, São Paulo: Paz e Terra, 2021, p. 140.

[xxxii] Theodor W. Adorno, Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, São Paulo: Editora Unesp, 2019, p. 419.

[xxxiii] Cf. Pierre Dardot & Christian Laval A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal, São Paulo: Boitempo, 2016.

[xxxiv] Theodor W. Adorno, Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, São Paulo: Editora Unesp, 2019, p. 155.

[xxxv] Susan McKinnon, Genética Neoliberal: Uma Crítica Antropológica da Psicologia Evolucionista, São Paulo: Ubu Editora, 2021, p. 188.

[xxxvi] Silvia Viana, Rituais de Sofrimento, São Paulo: Boitempo, 2012, p. 155.

[xxxvii] Silvia Viana, Rituais de Sofrimento, São Paulo: Boitempo, 2012, p. 156.

[xxxviii] Christophe Dejours, A Banalização da Injustiça Social apud: Silvia Viana, Rituais de Sofrimento, São Paulo: Boitempo, 2012, p. 156, grifos no original.

[xxxix] “Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal – entrevista a Christophe Dejours”, Público, 1º

 fev.  2010. Disponível Aqui. Último acesso: 20 ago. 2023.

[xl] Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 122.

[xli] Theodor W. Adorno, Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, São Paulo: Editora Unesp, 2019, p. 562, grifos adicionados.

[xlii] Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 472. Brecht também notou esse apego à ordem e a obsessão pela execução perfeita da tarefa ordenada na sociedade nazista, sem que o conteúdo da tarefa importasse, e o fez tema de um dos primeiros diálogos de sua obra Conversas de refugiados. Sobre a compulsão ordeira de um membro da SS: “O sentido da ordem era-lhe de tal maneira entranhado que ele preferia não açoitar a fazê-lo de forma desordenada”. Sobre o desperdício ordeiro da guerra: “A ordem consiste em desperdiçar as coisas de modo planejado. Tudo aquilo que é jogado fora, ou arruinado, ou devastado, deve ser registrado e enumerado no papel, isso é ordem. Contudo, a principal razão para que a ordem seja observada é de natureza pedagógica. O homem não pode executar certas tarefas se não o fizer de modo ordeiro. Refiro-me aqui às ordens absurdas. Faça um prisioneiro cavar uma vala e então novamente soterrá-la e em seguida voltar a cavá-la, e deixe-o fazê-lo da maneira mais desleixada, como lhe der na telha; ele se tornará louco, ou rebelde, o que dá no mesmo. Se, porém, for instado a segurar a pá dessa ou daquela maneira, a não enterrá-la um único centímetro mais fundo, e se uma linha for esticada demarcando o ponto onde ele deve cavar, de modo que a vala tenha uma medida exata, e se novamente, ao soterrá-la, zelar para que o terreno fique tão plano como se nenhuma vala houvesse sido escavada, então o trabalho pode ser executado e tudo vai andar na linha, como diz a expressão popular”. Bertolt Brecht, Conversas de Refugiados, São Paulo: Editora 34, 2017, pp. 14; 16.

[xliii] Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 472.

[xliv] Cf. Herbert Marcuse, “A nova mentalidade alemã” in: Herbert Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999.

[xlv] Adam Tooze destaca que os registros disponíveis da famosa reunião entre 25 homens de negócios e Hitler, Schacht e Göring na mansão deste último, em de 20 de fevereiro de 1933, mostram que o conflito entre esquerda e direita foi o tema central dos discursos tanto de Hitler quanto de Göring. Cf. Adam Tooze, O Preço da Destruição: Construção e Ruína da Economia Alemã, Rio de Janeiro: Record, 2013, cap. 3. “Sócios: o regime e o mundo dos negócios na Alemanha”.

[xlvi] Herbert Marcuse, “Estado e indivíduo sob o nacional-socialismo” in: Herbert Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 123.

[xlvii] Herbert Marcuse, “A nova mentalidade alemã” in: Herbert Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 197.

[xlviii] Herbert Marcuse, “A nova mentalidade alemã” in: Herbert Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 197.

[xlix] Herbert Marcuse, “Estado e indivíduo sob o nacional-socialismo” in: Herbert Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 112, grifos adicionados.

[l] Herbert Marcuse, “Estado e indivíduo sob o nacional-socialismo” in: Herbert Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 121.

[li] Herbert Marcuse, “Estado e indivíduo sob o nacional-socialismo” in: Herbert Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 122.

[lii] Amós Oz, “Em louvor às penínsulas” in: Como Curar Um Fanático: Israel e Palestina: Entre o Certo e o Certo, São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 20.

[liii] Ver GREG NEWS | BRASIL PARALELO , entre 2m17s e 2m39s.

[liv] Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 166.

[lv] Mark Fisher, Realismo Capitalista, São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 49.

[lvi] Mark Fisher, Realismo Capitalista, São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 48.

[lvii] Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 169.

[lviii] Victor Klemperer, LTI: A Linguagem do Terceiro Reich, Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, pp. 131-132.

[lix] Bertolt Brecht, “Cinco dificuldades no escrever a verdadein: marxists.org, . Último acesso: 19/10/2022. Um ano após a chegada dos nazistas ao poder na Alemanha, Brecht escreveu o panfleto político “Cinco dificuldades no escrever a verdade”, distribuído ilegalmente em seu país natal.


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David Magalhães discute a ascensão da extrema direita nas eleições europeias em entrevista à Pública. Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Ricardo Terto, Stela Diogo. Pública (expandir)

O crescimento da extrema direita no Parlamento Europeu após as eleições deste ano, com partidos extremistas como o espanhol Vox, o alemão AfD e o português Chega!, indica uma insatisfação dos europeus com a política, analisa o professor David Magalhães. Doutor em relações internacionais, Magalhães tem concentrado suas pesquisas no tema da transnacionalização da direita radical e na política externa de governos ultradireitistas. 

Em entrevista ao podcast Pauta Pública, Magalhães discute a capacidade da direita de conseguir capturar o sentimento de insatisfação com o sistema, não só na Europa, mas também no Brasil e nos Estados Unidos. Para ele, apesar das diferenças nas plataformas eleitorais em cada país, as eleições europeias “impactam e dão uma certa revitalidade aos grupos de extrema direita brasileira que comemoraram a vitória dos europeus no Parlamento”. 

Na discussão, Magalhães ressalta que, do ponto de vista das “direitas”, a Europa é historicamente muito distante do Brasil. Por isso, desde a redemocratização, o movimento brasileiro tem se espelhado na direita americana. Atualmente, essa tendência continua, com o alinhamento a Donald Trump e ao movimento nacional populista, buscando replicar a sua forma e conteúdo. 

[Andrea Dip] Aqui, na Alemanha, percebemos nitidamente como a questão migratória tem sido significativa para o avanço da extrema direita. Ao menos desde 2014, essa xenofobia foi intensificada e deu mais poder para a extrema direita. Nas minhas investigações, eu tenho percebido como esses discursos xenófobos têm se tornado cada vez mais violentos. Como, por exemplo, os discursos do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. Como esse aumento do discurso violento e anti-imigração interfere nessas eleições? 

No caso da Alemanha, a AfD foi fundada em 2013 por ex-membros do partido da ex-primeira-ministra Angela Merkel, a União Democrata Cristã (CDU). Esse momento, segundo o cientista político holandês Cas Mudde, é chamado de “quarta onda”, onde houve uma normalização das ideias e práticas da ultradireita. Tudo aquilo que era visto como marginal foi trazido para o centro, moldando o comportamento dos partidos tradicionais de direita. Já na Espanha, o partido Vox foi fundado por ex-membros do Partido Popular (PP), que é historicamente de centro-direita. Esse partido é conservador, mas tradicional, assim como a CDU alemã. 

Em um primeiro momento, o AfD tinha pautas mais econômicas, com um perfil mais tecnocrático, porque seus membros eram economistas de carreira. Esses membros tinham discursos fundamentalmente contra a zona do euro e contra a ajuda que a Alemanha vinha dando para países que foram abalados pela crise econômica financeira, como a Grécia e a Espanha. Com a crise migratória de 2014 e 2015, quando houve um influxo significativo da população vinda do Oriente Médio (especificamente sírios e afegãos), houve um impacto grande na mudança da agenda dessas organizações. 

Não digo que a AfD já tinha uma agenda nativista [política de favorecer os habitantes nativos de algum país], xenófoba e anti-imigração, mas o fluxo migratório potencializou e redirecionou a agenda para um aspecto que tornou-se a principal ênfase da AfD de 2014 em diante. A partir disso, surgiu o Der Flügel, ala mais próxima à extrema direita neonazista alemã, que tem muita força na região da Turíngia, na Alemanha Oriental. 

A mesma coisa aconteceu na Hungria. A plataforma eleitoral de Viktor Orbán em 2010, ano em que foi eleito, era basicamente o discurso contra o Partido Social Democrático que havia ficado por oito anos no poder. A corrupção do Partido Social Democrático é vinculada à crise econômica de 2009, que foi muito impactante para o país. À época, ainda não havia a questão da imigração no discurso de Orbán. 

Isso muda de maneira substancial após seu segundo mandato, quando a Hungria vira um dos corredores de imigração porque alguns refugiados acabaram ficando (ainda que de maneira provisória) quando passaram pela fronteira com a Sérvia. O país tinha menos de 1% de população imigrante, ou seja, boa parte da população do país não sabia exatamente o que era imigração. 

Orbán começou a mudar a sua agenda do ponto de vista do nativismo e xenofobia, da política de imigração. Ele aprofundou essas conexões entre a ideia de uma identidade húngara tradicionalista e católica, ameaçada pelos imigrantes. Ele passa a culpar as forças internacionais por apoiar o processo migratório. A figura do filantropo George Soros, um judeu húngaro, aparece justamente como “bode expiatório” da destruição da identidade húngara. A partir disso, houve uma campanha muito forte contra as ONGs que protegem refugiados. 

No Brasil, a direita radical não tem agenda nativista e xenofóbica porque a imigração não é uma questão de relevância. No país também temos taxas de imigração abaixo de 1%, em termos de refugiados e imigrantes. Temos muito mais a agenda xenofóbica inter-regional, que seria o preconceito contra pessoas de origem nordestina. O preconceito no Brasil com imigrantes já aconteceu na região Norte do país com refugiados venezuelanos. Mas aqui o nativismo e xenofobia não fazem parte da pauta porque realmente a imigração não é um tema da conjuntura brasileira. 

[Andrea Dip] Sabemos que existem diferenças entre a extrema direita na Europa e no Brasil, como, por exemplo, a agenda da xenofobia posto por você. Mas também existem as semelhanças. Quais conexões você vê entre a extrema direita europeia e a brasileira?

Primeiro, eu queria tentar distinguir o que é a extrema direita europeia, porque podemos compreender nessa extrema direita qual parte mais se aproxima da brasileira. Por exemplo, eu vejo uma diferença muito grande ao comparar Holanda e França, porque são dois países que têm uma cultura secular, laica, com tradição liberal iluminista muito forte. De maneira que o discurso de um nacionalismo de identidade religiosa pega muito pouco nesses países. 

Eu estou acompanhando bastante a campanha do Jordan Bardella, estrela da direita radical francesa, que pode se tornar o primeiro-ministro francês durante as Olimpíadas. O candidato francês praticamente não comenta questões como ideologia de gênero, destruição da família tradicional etc. Não há discurso anti-LGBTQIA+ e antiaborto (aprovado como direito constitucional na França). O mesmo acontece na Holanda. Geert Wilders, do Partido da Liberdade (PVV), que agora está formando o governo, em momento algum usa discurso religioso ou cristão. 

Mas, se pegarmos países que têm um contexto histórico religioso e cristão, como o caso da Hungria, Polônia, Espanha e Itália, conseguimos encontrar alguns traços muito parecidos com a direita radical brasileira. A direita do nosso país fez algo no contexto do bolsonarismo, falar de cristianismo e não falar de catolicismo nem de protestantismo. Ou seja, foi uma aliança de conveniência que aconteceu às vésperas da ascensão do Bolsonaro como força política. 

Antes de Bolsonaro surgir como candidato à unificação dos dois grupos, o Olavo de Carvalho vivia atacando o Edir Macedo e os grupos neopentecostais e os pentecostais no Brasil, houve uma aliança para viabilizar essa candidatura religiosa cristã brasileira. Esse é um traço muito comum que possibilita a interlocução global desses grupos. 

Eduardo Bolsonaro tornou-se, de certa forma, o elemento de internacionalização da direita brasileira. Foi ele quem se aproximou do Steve Bannon junto com Filipe Martins, que está preso agora, mas foi assessor de relações internacionais da Presidência. As duas figuras transnacionalizaram as relações do bolsonarismo com grupos e organizações de ultradireita. Eduardo Bolsonaro se aproximou do partido português Chega!, de André Aventura, e também do partido espanhol Vox, de Santiago Abascal. 

Inclusive, o Brasil faz parte de uma organização conhecida como Fórum de Madri. Essa organização teria sido criada para ser uma oposição ao Foro de São Paulo – suposta organização de esquerda de teor conspiracionista – porém o Fórum de Madri é uma organização de direita conservadora, claramente radical. 

A reivindicação de uma identidade mobiliza um senso de cristianismo e tradição de família católica ou protestante. O caso brasileiro oscila de um lado para o outro, mas de certa forma reivindica a mesma tradição cristã. Ou seja, a ideia de identidade não é nacional secular, como é observado na França ou Holanda, é uma identidade que quer recuperar uma tradição cristã. Como é visto na discussão em torno do aborto no país, esse elemento vem de uma reivindicação identitária cristã muito importante nesses grupos. 

[Andrea Dip] David, você trouxe alguns elementos muito importantes. Eu gostaria de saber como as eleições europeias refletem no Brasil? 

Eu ouvi alguma militância digital de grupos bolsonaristas celebrando a vitória da direita radical, embora eles não entendam exatamente essas diferenças relatadas. No momento que souberem que o partido de Marine Le Pen, a Rassemblement National, é em massa a favor do aborto, vão começar a chamá-la de esquerdista. A visão que eles têm é de um grupo conservador crescendo. Independente de essa percepção ser verdadeira ou não, ela impacta e dá uma certa revitalidade a esses grupos, como se houvesse uma janela de oportunidades de crescimento.  

Não estamos diante de uma direita conservadora normal, mas de grupos verdadeiramente extremistas e hostis à democracia. Eu acredito que existem alguns elementos que fortalecem os movimentos com um discurso geralmente contra o sistema. A direita populista radical na Europa adota uma postura que é, em certa medida, contra o sistema, envolvendo tanto a centro-esquerda quanto a centro-direita. As eleições europeias têm mostrado isso: há um cansaço com o pêndulo centro-esquerda e centro-direita. 

Os problemas também advém da democracia liberal, que se mostrou bastante incapaz de resolver problemas fundamentais de origem social, econômica e de desigualdade. Há uma sensação de insatisfação. Houve, por mais de uma década, uma coalizão na Alemanha entre centro-esquerda e centro-direita com o Partido Social-Democrata (SPD) e a União Democrata Cristã (CDU), que governaram juntos desde a época da Alemanha Ocidental. 

Na Espanha, com o Partido Socialista Obrero (PSOE), há a mesma alternância entre os dois grupos. Existe uma sensação de desgaste geral em relação ao sistema, o consenso liberal que une centro-direita e centro-esquerda está sendo questionado. A esquerda não conseguiu capturar essa energia. Já a direita consegue capturar esse sentimento na Europa, Estados Unidos e também aqui no Brasil. Esse é um ponto que tende a reforçar o discurso antissistema. 

Porém nada se compara com a possibilidade de Donald Trump vencer as eleições americanas. O cenário eleitoral nos Estados Unidos tende a ser muito mais impactante para a direita brasileira do que o cenário europeu. A Europa, do ponto de vista “das direitas” é muito distante historicamente, por isso a direita brasileira tem mimetizado a direita norte-americana. Desde o processo de redemocratização, o principal farol das nossas direitas radicais tem sido os EUA. 

Desde o período do neoconservadorismo, com o ex-presidente americano George W. Bush e a Guerra do Iraque, até quando a direita começa a virar uma direita nacional populista com o também ex-presidente Donald Trump. Inclusive, a extrema direita tenta copiar a forma e o conteúdo da alt-right que ascende com o supremacista branco Richard Spencer. Em termos de pacto, temos que prestar muito mais atenção no que vai acontecer nas eleições dos Estados Unidos agora no final do ano do que nas eleições europeias. A Europa é vista como algo muito distante da direita radical brasileira.

Colaboração: Ana Alice de Lima

Julian Assange livre!

Jornalista deixou prisão britânica depois de 1900 dias. Alvo de perseguição inédita por sua coragem em divulgar documentos criminosos do Depto de Estado, Assange tornou-se símbolo da luta pela liberdade de imprensa.

Leia mais: Outras Palavras - G1 -  Opera Mundi -  Carta Capital - BBC - Brasil de Fato. E a entrevista que Assenge concedeu a Jamil Chade em 2013: "A internet é o maior roubo da história".

O endiabrado

Igreja de Valdemiro vive crise e dá calotes; pastor acumula patrimônio

Enquanto a Igreja Mundial do Poder de Deus era cobrada na Justiça por quase dois anos de aluguel de um templo em Cotia (SP), seu fundador, Valdemiro Santiago, gastava R$ 12 milhões em um avião particular. O episódio ocorreu em 2018, mas continua simbólico.

A Mundial vive sua pior crise, com dívidas e diversos processos. Levantamento inédito feito pelo UOL revela que a igreja é alvo de ao menos 686 ações de cobrança, só no estado de São Paulo. Quase todas são por calote no aluguel de templos  

(leia no TAB do Uol)

O que há de novo?

# Boulos cresce

Tarcísio e Bolsonaro humilham Nunes e Boulos avança em todos os segmentos (Folha)

# No gueto de Paraisópolis: cor da pele e condição social são os signos da suspeita. O nome disso é preconceito (postagem de dezembro de 2019) 

São Paulo enquadrou 31 mil negros como traficantes em situações similares às de brancos usuários

Racismo é o DNA da aliança que apoia Nunes à Prefeiura de São Paulo (leia aqui). E Mello Araújo, o candidato a vice, já declarou que a prática discriminatória vai continuar (Folha)

Direita, volver

Extremistas se apoiam no anonimato da desinformação das redes e na blindagem parlamentar. Muniz Sodré, Folha 

Repercutiu uma discussão sobre se a universidade deveria abrir-se mais para o pensamento de direita. Houve quem enxergasse no argumento laivos de "Sobre a Liberdade", de John Stuart Mill, com sua ênfase no valor inerente da individualidade e da liberdade de expressão. Para o influente filósofo inglês oitocentista, uma opinião silenciada pode conter boa parte de verdade. Logo, diversidade e debate são eticamente saudáveis numa democracia, onde a razão estaria sempre com o povo, suposta expressão da vontade coletiva (continue a leitura)

Mas argumento como intervenção racional no pensamento político precisa ser validado por prova prática. Isso ganha urgência nas mutações da experiência concreta, em que razão e percepção podem deixar de coincidir. São, portanto, viáveis alguns reparos empíricos à alegada ausência de direita no campo universitário.

Manifestação contra Bolsonaro organizada por movimentos de esquerda e partidos políticos na avenida Paulista, em SP, em 2021 - Mathilde Missioneiro - 2.out.2021/Folhapress

É que em 50 anos de trabalho na maior universidade federal do país jamais tivemos percepção de domínio da esquerda, entendida como militância orientada pela revolução emancipatória. Esse foi sempre o fantasma útil da repressão. A realidade se matiza por silenciosa maioria conservadora, uma coorte de progressistas (centro-esquerda, social-democracia) e nichos convictos das utopias religiosamente reveladas pelo determinismo histórico.

A direita stricto-sensu, espectro reacionário de ideias, sempre esteve embuçada nas fileiras conservadoras. Calava por vergonha, mesmo durante a ditadura. Expõe-se agora como ultradireita, que é o brutalismo das situações extremas, apoiada no anonimato da desinformação das redes ou na blindagem parlamentar. Sem nada formular de interesse nacional, controla as duas casas legislativas federais, retrocede com religiosos a uma sinistra teocracia, realiza por ideologia o que os militares não conseguiram com armas.

Cabe, assim, duvidar da vontade dessa ultradireita de estar na universidade, espaço articulado, tanto nas ciências humanas como nas exatas, em torno da verdade. Aliás, direita e esquerda são termos antigos em que o mundo não mais se reconhece: o que é dado a ver ultrapassa qualquer realidade original. Politicamente, arma-se um projeto neobárbaro de poder, com as massas realocadas, da falência dos partidos populares, para a ultradireita.

Apoiadores de Bolsonaro fazem protesto pedindo intervenção militar, em frente ao QG do Exército, no Setor Militar Urbano, em Brasília (DF)) - Pedro Ladeira - 28.jun.2020/Folhapress

Numa socio-ecologia da mentira, não é mais questão de pensamento, e sim de checagem de dados. Os extremistas sabem, como Thomas Jefferson, que "o preço da liberdade é a vigilância". Daí o recente ataque da câmara de horrores ao Netlab, laboratório de pesquisa em desinformação da ECO/UFRJ, assim como a outras iniciativas do gênero no Brasil e no mundo. Neobarbarismo, protofascismo são só termos aproximativos. O que há mesmo é pulsão brutalista de morte na dispersão de palavras, de sentido e de vida.

Anais da condição colonial 

Parlamento francês ouve a contundência de Simome Weil

Ministra da Saúde da França fez discurso histórico em defesa da legalização do aborto no Parlamento da França 1974 (Dirce Waltrick do Amarante, Folha)

Participantes da conferência de Bretton Woods, 1944, EUA

Produzir uma teoria da dependência renovada pode ajudar o Sul Global a escapar da armadilha neoextraativista (Marcos Nobre, Piauí)

Pensatas para o fim de semana

Ricardo Nunes


O prefeito chega ao dia da indicação do vice de sua chapa pela reeleição em meio a uma insatisfação generalizada no seu entorno com a escolha do coronel da reserva Ricardo Mello Araújo (PL), a qual foram obrigados a encampar.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se manteve irredutível sobre o nome do ex-Rota, e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) passou a endossar o padrinho político e tomar as rédeas da definição.

O anúncio deve ser feito nesta sexta-feira (21), pelo próprio governador, dois dias após jantar organizado por ele no Palácio dos Bandeirantes com dirigentes nacionais dos partidos que compõem a coligação do prefeito (matéria da Folha: continue a leitura)

No lugar do Palácio do Planalto, as torres do Banco Central

O Banco Central e o Brasil do mercado

Decisão unânime do Copom em manter inalterada a taxa Selic foi vista como vitória de Campos Neto e derrota de Lula - e foi também festejada pelo mercado. Mas nem tudo é o que parece, nem mesmo quando a velha mídia emplaca o discurso anti-lulista sob o argumento de que prevaleceu no Banco Central a racionalidade técnica sobre a racionalidade do governo. Conversa fiada. O que prevaleceu foi a condição de um país refém dos piores instintos do capital financeiro... na contra-mão do desenvolvimento e do bem-estar social. Vale a pena a leitura dos textos abaixo, fazer o contraponto com a análise crítica que eles provocam e evitar a armadilha do senso comum...

Destaque: O projeto para privatizar o Banco Central - mesa organizada pelo GGN no programa Nova Economia, de Luis Nassif

Empresários gaúchos envergonham o Brasil. Aliás, empresários brasileiros envergonham o Brasil de norte a sul...

Contratos após desastre no RS indicam cartas marcadas entre empresas gaúchas

# Natália Portinari, no UOL

Em livro que sintetiza mais de 20 anos de pesquisa, economista Regina Madalozzo defende a importância de uma abordagem econômica pela ótica feminista. Edson Veiga (GW)

Remuneração média mensal das mulheres é 17% menor do que a dos homens, mostrou levantamento (G1)

Anais dos que morreram

A luta de classes na comida e nos corpos

Estudo sobre a desigualdade alimentar contemporânea. A comida saudável é reservada aos ricos. Aos pobres, fome ou ultraprocessados. Viagem pela história da nutrição – do Paleolítico à pós-modernidade – ajuda a explicar os porquês. Patrícia Aguirre, Outras Palavras (expandir)

Por Patrícia Aguirre, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues

Nos últimos anos, a discussão sobre o que comemos voltou no contexto da expansão de diferentes subculturas alimentares (veganas, ketos, ayurvédicas, etc.), do crescimento dos movimentos ambientalistas e do aumento de doenças associadas à alimentação.

Neste artigo analisaremos o sistema alimentar sob uma perspectiva sócio-histórica, como um sistema aberto, ou seja, com trocas infinitas com seu entorno – como os organismos vivos. Pela sua complexidade, para abordá-la precisaremos recorrer às contribuições de múltiplas ciências – ecologia, nutrição, antropologia, medicina, economia, etc. – que nos autorizem a relacionar as partes analiticamente separadas, apontando as suas transformações no tempo e no espaço. Delinearemos em linhas gerais a sinergia entre o meio ambiente, a tecnologia extrativista e a organização social (principalmente o sistema econômico-político), que afeta a alimentação e a culinária (com sua construção social de gostos e corpos) e, embora a alimentação seja um fator pré-patogênico por excelência, condiciona fortemente a forma como a população adoece e morre 1 .

O corpo da espécie

Se procurarmos no passado exemplos da referida relação, não podemos deixar de mencionar as glaciações do Holoceno e o desenvolvimento de culturas de caça e coleta com tecnologias de extração extremamente eficazes, principalmente usando ferramentas de pedra – que dão o nome a essa época. Cestos, bolsas, varas, recipientes de cabaças, fibras e folhas, juntamente com fogões (verdadeiros sistemas de cocção, porque não só assavam, mas grelhavam, ferviam e picaneavam) dão conta da variedade de preparações destinadas a transformar uma grande diversidade de plantas e produtos de origem animal em comida, o que ajudou diversas populações em ambientes muito diferentes a terem uma vida boa.

Poderíamos voltar ainda mais atrás e ver a importância da alimentação no próprio processo de nos tornarmos humanos; então veríamos que as paleoespécies que antecederam o nosso gênero, utilizando ferramentas como outros primatas 2 , conseguiram ter uma dieta baseada em vegetais, acessando a carne de forma irregular. Há 2,5 milhões de anos, observamos em ossos fósseis um traço crescente de zinco (o que significa aumento na ingestão de carne) e também modificações anatômicas (cérebro maior, intestino mais rápidos, etc.) que falam de uma mudança na alimentação (onívora) que vai além modificações genéticas e epigenéticas que impulsionam e são impulsionadas por grandes mudanças metabólicas e comportamentais. Somos uma espécie que passou de presa a predador através de nossas próprias criações. Sem garras ou caninos poderosos, tivemos que nos unir, melhorar nossa comunicação e aperfeiçoar ferramentas para obtermos carne em conjunto. Mais do que um necrófago, um caçador ou um coletor, a espécie humana era uma espécie oportunista que usava o que podia para aumentar sua ingestão, e a primeira estratégia era a diversificação e a flexibilidade. Ferramentas de pau, chifre e pedra com especialização crescente indicam a modificação do comportamento comensal. Com anatomia de presa deve ter sido muito difícil atuar como predador, por isso era necessária organização social para obter carne. A dinâmica com aquele ambiente e as relações com aquelas espécies naqueles tempos distantes ainda marcam nossos corpos. Ainda hoje, quando o ritmo rápido da mudança cultural deixou para trás a lenta evolução biológica e o nosso ambiente não é mais uma savana mas a cultura da cidade, estamos mais preparados para a escassez do que para a abundância de alimentos. Resistência à insulina, metabolismo da gordura, estresse prolongado, intolerância ao glúten ou à lactose etc. São características evolutivas que respondem ao nosso passado como espécie onívora que se adaptou a diferentes ambientes (da savana africana às pastagens americanas ou às selvas asiáticas). A tecnologia extrativa necessária para atender às demandas metabólicas nos posicionou como apenas mais um predador, mas para isso foi necessário substituir as pequenas presas e unhas planas da espécie homo3 .

Há cerca de 50 mil anos, o homo sapiens anatomicamente moderno, que vivia em bandos de caçadores-coletores, já havia colonizado todos os ecossistemas do planeta, com exceção da Antártida. Seus corpos, sua alimentação e um pouco de sua vida social podem ser reconstruídos a partir de evidências arqueológicas, com algumas referências etnográficas dos poucos grupos que ainda não foram exterminados pelas sociedades atuais, uma vez que toda a expansão desde as primeiras sociedades agrícolas até as atuais sociedades industrializadas foi realizadas à custa dos seus territórios, da sua cultura e das suas vidas.

Nos bandos de caçadores-coletores, atuais e passados, a chave para a sobrevivência é a organização social e a obtenção de alimentos proporciona um eixo poderoso para a ação coletiva. Comer está em primeiro lugar e extrair o alimento não é fácil em nenhum ambiente, por isso todos (com suas diferentes possibilidades e habilidades) colaboraram para provê-la com seu trabalho diário. Os bandos – embora formadas por vários grupos familiares – compartilhavam um único fogão, o que demonstra reciprocidade no consumo. Embora a coleta de hortaliças fosse a base da alimentação, a carne tornou-se um bem social, pois a caça, por ser difícil e perigosa, era coletiva e promovia a reciprocidade como forma de distribuição, reduzindo o risco de dependência de recursos móveis e atividades penosas. Quando há, há para todos. Quando não há, não há para ninguém.

A dieta média dos nossos antepassados paleolíticos era nutricionalmente adequada. Mas é preciso falar de dietas – no plural –, pois os diferentes bandos, em ambientes diferentes e com tecnologia e organização diferentes, comiam alimentos diferentes que organizavam em diferentes tipos de preparações, em que a criatividade humana transformaria em diferentes refeições. Viver nos trópicos não é o mesmo que viver num glaciar, por isso esta síntese compacta generaliza-se num mundo de particularidades. No entanto, existe uma característica comum a todos estes regimes: as refeições são sazonais, diversificadas e frugais. Também magras (animais selvagens correm para salvar suas vidas, então sua carne tinha 30% menos gordura do que a de seus descendentes domesticados). Exceto em ambientes marítimos, consumia-se pouco sal e, em geral, pouco álcool (proveniente da fermentação de frutas e grãos nativos), poucos carboidratos (tubérculos e grãos silvestres são sazonais), muitas fibras (de vegetais e frutas naturais), poucos açúcares (mel e frutas da estação) e nada de leite, nem açúcares ou óleos refinados. Acrescentavam-se ovos, frutas secas e insetos, quando o ambiente permitia. Uma grande variedade de espécies caiu nas cozinhas dos caçadores-coletores, resultando num regime caracterizado pela diversidade. Os efeitos desse tipo de dieta ficaram marcados nos ossos fósseis, dos quais se inferem corpos altos, magros, com boa saúde nas curtas vidas (30 anos para os homens e 27 para as mulheres, o que comprova uma vez mais os riscos da maternidade).

Se a desigualdade marca os corpos, não devemos esquecer que a igualdade também o faz, de modo que onde a reciprocidade reinou na distribuição encontramos uma forma única nos corpos. As pinturas rupestres mostram pessoas altas (só recentemente o crescimento secular do século XX recuperou, para algumas populações, a altura dos seus antepassados paleolíticos). Viviam no limite, com poucos depósitos de gordura corporal (genes parcimoniosos levavam à poupança em forma de panícula adiposa em épocas de abundância para gastar em épocas de escassez), de modo que as mulheres raramente conseguiam acumular as 23.000 kcal de reservas que são necessárias para ovular durante a lactação, por isso assumimos a existência de espaços intergênicos de quatro anos. Estas dietas foram fruto da vida paleolítica e, embora hoje estejam na moda, devemos reconhecer que não existem condições para desenvolvê-las. Se é verdade que comemos como vivemos, essa alimentação dependia desse modo de vida, e hoje nem a apropriação da terra nem a densidade demográfica permitem uma economia caçadora-coletora, nem existem animais e plantas selvagens, uma vez que na atualidade todas as espécies que constituem a base da nossa alimentação têm em média aproximadamente seis mil anos de domesticação. Mas embora seja impossível reproduzir estas dietas, elas podem servir de horizonte para direcionar o nosso consumo, uma vez que tiveram tanto sucesso que permitiram que um punhado de primatas mutantes ocupasse todo o planeta 4 .

Alguns dados sugerem que nestes pequenos bandos – nos quais as espécies viveram durante centenas de milhares de anos – prevaleceram as diferenças (idade, gênero, função), mas não a desigualdade (porque tais diferenças não expandiram nem restringiram direitos), e esses foram, talvez,as bases desse corpo singular.

Na paleoepidemiologia, mais uma vez, a diversidade é a norma. Dado que os ambientes são diversos, as infecções pŕovenientes de vermes (tênia, ancilostomíase) e mosquitos (malária, dengue) serão um problema nos trópicos e inexistentes nos climas polares. Mas acidentes (mais frequentes e fatais do que hoje), doenças degenerativas (como artrite, osteoporose e desgastes dentários) e febres transmitidas por artrópodes, diarreias, doenças gastrointestinais e respiratórias e infecções de pele eram comuns a todos os grupos. Doenças infecciosas como difteria, gripe ou sarampo, etc. eram desconhecidas ou muito raras nas sociedades de caçadores-coletores antes da domesticação ou do contato 5 .

O corpo do Estado

Há 13 mil anos, o clima mudou e a temperatura média aumentou 5 °C; isto derreteu os glaciares, fez com que as florestas suplantassem as planícies, e a subsequente migração e extinção de espécies deu início ao maior programa de conservação que a humanidade alguma vez empreendeu: a domesticação. Quando os vegetais foram domesticados, foram criados pequenos ecossistemas com certo controle e previsibilidade (parcelas), baseados na adição de energia humana, para aumentar os rendimentos. A domesticação dos animais, por sua vez, conseguiu uma reserva permanente de carne e fibras e permitiu roubar leite de outros mamíferos e conservá-lo na forma de iogurte e queijo. Este evento cultural, ao longo do tempo e em diferentes geografias, estabeleceu cinco mutações que permitem a absorção do açúcar do leite (lactose), transformando o genótipo “estatisticamente normal” que partilhamos com outros primatas de intolerante para tolerante… mas apenas nas culturas em que o gado leiteiro domesticado; para que o consumo de laticínios fosse uma cultura feita na natureza, marcada em nossos corpos e em nossos genes 6 .

As características dos grãos, embora tenham fornecido as soluções mais estáveis para o problema da produção de alimentos (são as mesmas espécies que consumimos hoje), tiveram consequências ecológicas desastrosas (homogeneização e fragilidade dos ecossistemas), demográficas (aumento da população, mas com menor qualidade e expectativa de vida), depressão da saúde neolítica (com uma perda de 20 cm na altura média), redução dos espaços intergênicos (alimentadas com cereais, as mães podiam manter a amamentação e a gravidez simultaneamente) e até epidemias das mesmas doenças infecciosas que que sofremos hoje aparecem. Todas essas modificações tiveram consequências sociais e políticas.

Se compararmos os cultivadores de grãos com os cultivadores de tubérculos, veremos até que ponto o que produzimos como alimento condiciona a organização sociopolítica, uma vez que a natureza perecível dos tubérculos impulsionou a criação de instituições redistributivas sazonais (festas e banquetes onde são consumidos até a saciedade) para metabolizar alimentos que não podem ser armazenados (o que acontece com os grãos) 7 . Em populações numerosas, circunscrita, assentada e amontoadas em vilas ou cidades, alimentadas de forma monótona e pouco diversificada, à base de cereais ou tubérculos – ricos em amido -, e que também utilizam as mesmas fontes de água para higiene, beber, cozinhar e produzir, aparecerão as primeiras epidemias. Onde as populações humanas e animais estiveram em contato próximo durante o processo de domesticação, algumas zoonoses ultrapassaram a barreira das espécies e permitiram que micróbios de animais se adaptassem aos humanos e evoluíssem para se tornarem patogênicos. Além da carne e do leite, as vacas nos transmitiram sarampo e tuberculose; porcos, a coqueluche; e patos, a gripe.

Maior população, superlotação, alimentação pobre em nutrientes, água contaminada e animais domesticados: esse foi o combo explosivo que transformou doenças em epidemias. Estas devastaram as populações regularmente. Porém, a fome foi a principal epidemia que assolou a humanidade desde então. Seja por causas naturais (inundações, secas, insetos) ou por causas políticas (impostos, guerras, escravidão), a possibilidade de comer, para a maioria, sempre esteve em dúvida: desde a invenção da agricultura, a humanidade viveu em sociedades de restrição calórica onde a comida não era suficiente para todos. A acumulação, a apropriação de excedentes e as diferentes formas de distribuição foram as formas mais ou menos criativas que os nossos antepassados encontraram para aliviar a fome (das minorias e não das maiorias). E como uma população desnutrida é uma população imunocomprometida (o sistema imunológico humano é composto por proteínas, que são os alimentos mais caros, devido à energia e ao tempo necessários para produzi-los), tanto agora como no passado a possibilidade de resistir a doenças foi muito limitada. A intensificação da produção com arados e irrigação permitiu superar as carências sazonais e produzir excedentes, mas isso trouxe o problema de como distribuí-los. Foram introduzidas instituições que amplificaram as diferenças (sociais, sexuais, etárias, etc.) transformando-as em desigualdades. Embora os caçadores especializados em animais de grande porte já fizessem parte de sociedades paleolíticas hierárquicas e desiguais, onde a força masculina era a fonte de todos os direitos, a partir do acúmulo de excedentes a desigualdade passa a ser consequência da tendência de apropriação, ou seja, torna-se puramente cultural. E crianças, mulheres e outras pessoas com direitos restritos (escravos ou servos) são excluídas e subalimentadas por serem consideradas subumanas nas novas cidades, onde se concentrava o poder da principal instituição redistributiva: o Estado.

Há 6 mil anos, os Estados que surgiram em diferentes partes do mundo, apesar das suas muitas diferenças, tinham características comuns: baseavam-se na existência de grandes populações (a serem tributadas) e circunscritas (sem possibilidades de evasão), estratificações hierárquicas (de acordo com a sua apropriação) e especializações funcionais (camadas de camponeses, artesãos, guerreiros, sábios, etc.) com níveis administrativos (local, regional, nacional) que coexistiam com outros circuitos redistributivos – os templos, o mercado – de menor importância 8 .

Das pequenas cidades-estado gregas aos gigantescos impérios chineses, todos estes Estados, apesar da sua variedade, desenvolverão cozinhas diferenciadas e “corpos de classe”. Porque quando há apropriação hierárquica do excedente agrário, surge a distinção entre estilos de vida com signos particulares, aos quais a alimentação e a culinária não poderiam ser alheias.

A “baixa gastronomia” ou culinária camponesa – caseira, familiar, simples e feminina – baseava-se num cereal (arroz na Ásia, milho na América, trigo na Europa), alguns vegetais e quase nenhuma carne ou produtos de origem animal. Hoje é divinizado como saudável, quando era uma culinária de escassez. Por sua vez, a “alta cozinha” ou cozinha da corte ou aristocrática era composta por todo o resto, até por comidas exóticas. Tinha receitas escritas, preparadas por cozinheiros que organizavam banquetes para uma pequena massa de aristocratas sibaritas que não poupavam despesas. As orgias romanas são um exemplo desta cozinha política, onde a comida se come, se saboreia e é mostrada como espelho do poder 9 . Estas sociedades hierárquicas com cozinhas diferenciadas não podiam promover um corpo único, mas em vez disso geraram “corpos de classe”: pessoas ricas e gordas e pessoas pobres e magras, cada uma com formas diferentes de adoecer e morrer. Os primeiros sofrerão das doenças da abundância (sobrepeso, obesidade, gota, diabetes mellitus) e os segundos, das doenças da escassez (desnutrição, pelagra, anemia). Nos últimos cinco mil anos, o tamanho da cintura coincidiu com a classe social, e não é surpreendente que o excesso de peso fosse visto como uma coisa boa, mas também como um sinal de boa saúde: evidências empíricas alertavam que as pessoas gordas adoeciam menos e recuperavam melhor e mais rapidamente a saúde, por isso se tornaram motivo de desejo e sinônimo de beleza.

O corpo do mercado

A expansão colonial das potências europeias encontrará na África, na América e na Ásia não só o ouro que financiou o seu desenvolvimento, mas também a possibilidade de cultivar o alimento mais caro da sua pirâmide de preços: o açúcar, que deixará de adoçar as refeições da realeza para reforçar a alimentação dos pobres. O sistema de plantation do Caribe inaugura o comércio em grande escala de escravos africanos (sequestrados para remediar o genocídio dos nativos). Tanto na América como no Sudeste asiático, as plantações de açúcar (com os seus engenhos de açúcar para cristalizá-las) expandiram-se à custa de selvas e culturas. A partir do século XVII, o açúcar barato inundou as cozinhas de todo o mundo e financiou metabolicamente a Revolução Industrial e – ao destilar melaço para produzir aguardente – tornou-se tanto numa arma de dominação territorial como num “matador da fome” proletária 10 .

Se o capitalismo mercantil ampliou o comércio de açúcar para todo o mundo, o capitalismo industrial aproveitou-o ao máximo. As fábricas são construídas com base no planejamento espacial dos engenhos. A energia dos trabalhadores metropolitanos foi assegurada com infusões baratas vindas do exterior. A energia – proveniente do açúcar – e a sensação de saciedade e calor – proveniente da água quente – deram aos trabalhadores o que necessitavam para suportar longas jornadas de trabalho mal remunerado. Como a aristocracia se apropriou da maior parte da produção alimentar, os trabalhadores aceitaram de bom grado o açúcar barato. Não devemos esquecer que o sabor doce, precisamente porque era escasso quando se formou a anatomia da espécie, não vai ser rejeitado, como verificaram os abolicionistas europeus quando apelaram – com pouco sucesso – a um boicote ao consumo de açúcar para acabar com o infame comércio de escravos.

Ainda hoje, depois de meio século de pressão sanitarista que visa reduzir o açúcar nas dietas, dada a magnitude e as consequências nefastas do seu consumo, o objetivo dificilmente é alcançado pela substituição por adoçantes. Praticamente todos os alimentos industrializados contêm açúcares (sendo a sacarose e o xarope rico em frutose entre os mais comuns) porque aumentam a palatabilidade e a preservação, e também estão presentes de forma “invisível” em alimentos salgados que não se espera que o contenham.

O transporte de espécies que se seguiu à expansão colonial europeia remodelou os ecossistemas ao promover 15 gêneros à escala planetária, destruindo a paisagem e a organização local em prol da rentabilidade comercial. A indústria alimentícia que emergiu desta abundância transformou os alimentos através da conservação, mecanização, transporte, segurança controlada por sistemas especializados, publicidade e marketing baseados em redes globais de atacado e varejo. Hoje, mais do que indústrias, existem 250 holdings altamente diversificadas (empresas agrícolas, laboratórios de sementes, bancos, empresas de transporte, portos, supermercados, etc.) à escala global que decidem a dieta dos comensais nas sociedades atuais 11 . E como a escala baixa o preço, é produzido em massa e vendido globalmente e, assim, os argentinos, chineses, franceses, nigerianos compram os mesmos produtos industrializados para comer. Longas cadeias de comércio levam as embalagens a todos os cantos do planeta e transformam comensais em consumidores. São bens “bons para vender e não bons para comer” 12 porque, apesar da diversidade de marcas, todas contêm a mesma coisa. O sucesso de um alimento industrializado é que ele é produzido com baixo custo para que, embora o consumidor não saiba, há coisas dentro da embalagem que não vão faltar porque barateiam custos: carboidratos, gorduras, sal e açúcar, juntamente com conservantes, aromatizantes e corantes 13 , entre as substâncias permitidas, e resíduos de plástico, medicamentos e pesticidas entre as não permitidas. A norma do nosso tempo é comer sozinho produtos desconhecidos, em embalagens individuais e, sobretudo, comer sem parar (24 horas por dia, sete dias por semana) em qualquer lugar e a qualquer hora.

Os alimentos processados substituíram os produtos naturais, reduzindo o tempo gasto para se cozinhar (numa sociedade que gradualmente deslegitimou as tarefas reprodutivas), os alimentos ultraprocessados substituíram refeições inteiras (como a “barra de cereais” que substituiu o almoço no escritório). Essa situação benéfica para a indústria custou muito caro ao consumidor, pois esse tipo de dieta (juntamente com a redução de movimentos) é considerada responsável pelas doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, colesterolemia, acidente vascular cerebral, etc.) que afligem o mundo hoje a ponto de se transformarem em pandemias: a obesidade é a primeira pandemia não infecciosa declarada como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 14 .

Num artigo anterior, abordamos a crise alimentar 15 , que hoje se apresenta como estrutural (afeta simultaneamente a produção, a distribuição e o consumo), paradoxal (com alimentos para todos, há 800 milhões de pessoas subnutridas 16 ) e terminal (a poluição provavelmente excedeu as capacidades de neurorregeneração de todos os ecossistemas).

Na produção, enfrentamos uma crise de qualidade (excesso de carboidratos, gorduras e açúcares com situação crítica em micronutrientes como vitaminas, ferro e cálcio) e de sustentabilidade (se o modelo extrativista de agricultura química, pecuária farmacológica e pesca predatória, a deterioração do meio ambiente compromete a produção futura). Dado que a distribuição é feita através de mecanismos de mercado, há uma crise de equidade, porque os alimentos não vão onde são necessários, mas onde podem ser comprados, com consequências desastrosas para a população, como o subconsumo e o sobreconsumo, ambos insalubres. E no que diz respeito ao consumo, vivemos uma crise de comensalidade, uma vez que a alimentação industrial substituiu todos os padrões locais, boicotando as identidades alimentares (que fazem parte da identidade) e apagando a comida caseira e a mesa numa bicada permanente de “ocnis”: objetos comestíveis não identificados 17 .

O extraordinário crescimento da disponibilidade de alimentos no século XXI não garantiu o fim da fome ou das doenças de origem alimentar. Com uma disponibilidade aparente de 3.200 kcal/pessoa/dia como média global (o que implica uma produção capaz de alimentar 10 bilhões de pessoas), os oito bilhões de pessoas que hoje habitam o planeta deveriam ter acesso às 2.000 kcal/pessoa/dia recomendadas pelos nutricionistas. Oculta-se que 30% dos alimentos produzidos são perdidos no transporte e na industrialização, desperdiçados (devido ao mau manuseio) ou jogados fora (para manter os preços). E esconde-se que à medida que o sistema alimentar se globalizou até se tornar, como hoje, um sistema mundial, com enclaves produtivos e nichos de mercado, a fome já não dependia de causas naturais (secas, inundações), mas de causas econômicas (acesso aos alimentos), e entre aqueles que podem comprar, os corpos de classe do passado foram invertidos: agora os pobres têm maior probabilidade de serem obesos, enquanto os ricos podem permanecer magros, ambos com doenças específicas associadas a esses corpos.

Hoje é mais fácil encontrar excesso de peso e obesidade na pobreza do que na riqueza. Porque os pobres do mundo compram (ou recebem) alimentos de alto rendimento (processados pela indústria global), cheios de energia (baratos) e carentes de micronutrientes (caros). Esta desnutrição também tem sido chamada de fome oculta: porque esconde com abundância (de pão, batata, gordura e açúcar) todos os males da escassez (de carne, laticínios, frutas e vegetais). O triste é que as próprias vítimas não questionam a natureza social da sua pena, porque séculos de associação de corpos opulentos com bem-estar significam que o excesso de peso não funciona como um alerta de saúde; no máximo, é visto como um incômodo estético.

Podemos ver esta desnutrição induzida pela indústria (porque é a oferta hegemônica nas cidades) como funcional ao desenvolvimento da vida social, econômica e política. Com esta configuração de consumo, todos parecem obter algum benefício: a população, o mercado e o Estado, só que neste tipo de jogo perverso o ser humano está condenado a perder antecipadamente pelo simples fato de o jogar.

Para os pobres é lucro porque, ao contrário do que aconteceu no passado, agora comem. Ruim, mas eles comem. Eles podem desenvolver suas vidas, aprender, trabalhar, reproduzir, participar de atividades sociais, etc. É uma organização de consumo pouco saudável, mas inclusiva. Deficiências de micronutrientes, imunossupressão ou infecção tornam-se visíveis a longo prazo e como adoecimento individual (maior sensibilidade a infecções, menor nível de aprendizagem, baixo peso ao nascer, anemia, etc.). O sistema médico tem respostas clínicas (individuais). Cuida, controla, legitima, regula e medica, o que resulta na ampliação de suas funções (desde tratar doenças até controlar a saúde). A indústria farmacêutica se expande com a medicalização dos alimentos (fortificados). A desnutrição também é funcional para o sistema agroalimentar, pois mesmo o consumo limitado dos pobres permite a criação de um mercado que produz lucros (e sem dúvida mais lucros do que a ausência de consumo por uma população faminta ou do que o consumo num sistema alternativo, informal, autoprodução e autoconsumo).

Quando o consumo das famílias cai para níveis críticos, o Estado complementa o seu consumo pouco saudável com os mesmos alimentos insalubres. Seja pela economia (barato), pela logística (seco, embalado, fácil de transportar) ou pela aceitação (são os mesmos macarrão, óleos e açúcares que comem quando podem comprá-los), para o mercado eles até simplificam a demanda. São também funcionais ao componente político, que gera clientela partidária através de planos que reduzem o conflito social.

São funcionais para a organização econômica porque os desnutridos trabalham, produzindo mesmo com baixa produtividade, nos mercados de trabalho urbano formal e informal. Funcionais às concepções que diferentes setores têm sobre si e sobre os outros, porque marcam, delimitam, relacionam, opõem e complementam visões de vida, de sociedade e de corpo, em parte marcando, em parte mascarando as relações entre eles.

Se a nossa análise foi acertada, é necessário repensar a dieta atual na sua totalidade e agir agora. Porque dadas as vantagens sistêmicas da desnutrição, da baixa estatura, da obesidade e das deficiências de micro e macronutrientes, e dado que, apesar do sofrimento individual, são funcionais ao desenvolvimento da vida social, então, devemos esperar que esta seja a nova forma da fome no novo milênio.


Notas

A crise da ficção literária na Era Contemporânea

# Muriel Barbery em palestra no Fronteiras do Pensamento (Youtube)

Intermitências

# Gente humilde (Garoto, Chico Buarque, Vincius de Moraes, 1970) interpretação de Luiz Melodia

Tem certos dias/Em que eu penso em minha gente/E sinto assim/Todo o meu peito se apertar/Porque parece/Que acontece de repente/Feito um desejo de eu viver/Sem me notar/Igual a como/Quando eu passo no subúrbio/Eu muito bem/Vindo de trem de algum lugar/E aí me dá/Como uma inveja dessa gente/Que vai em frente/Sem nem ter com quem contar/São casas simples/Com cadeiras na calçada/E na fachada/Escrito em cima que é um lar/Pela varanda/Flores tristes e baldias/Como a alegria/Que não tem onde/encostar/E aí me dá uma tristeza/No meu peito/Feito um despeito/De eu não ter como lutar/E eu que não creio/Peço a Deus por minha gente/É gente humilde/Que vontade de chorar

Chico Buarque, 80 anos

Chico Buarque

Seu conservadorismo formal construiu empreendimentos excelentes com coerência ideológica anticonservadora. Com sutileza crônica, pôs tijolo com tijolo num desenho lógico, mágico e à esquerda. Alta literatura fraseada em assovio, caymmolente, de modo a fazer o pê de MPB parte constitutiva dessa estatura. Está no verbete “canção brasileira” para o mundo como o cume do exemplo convencional. Sua sorte, Bob Dylan, é que ele fala português. 

# Rogério Rufino de Oliveira, em A Terra é redonda

Anais do obscurantismo

Cidade mineira suspende leitura de livro de Ziraldo por pressão de pais de alunos

A Secretaria Municipal de Educação de Conselheiro Lafaiete, na Região Central de Minas Gerais, suspendeu atividades relacionadas ao livro "O menino marrom", de Ziraldo, nas escolas da cidade, após pressão de pais que consideraram o conteúdo da obra "agressivo".

# Leia no G1

Universidade, excelência e compromisso social

Em artigo no Estado de S.Paulo, o professor Marcos Lopes sugere haver um antagonismo entre compromisso social e formação de excelência. Um típico argumento ladeira abaixo, escorregadio e falacioso. Yara Frateschi, Le Monde (expandir)

Em artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, no dia 15 de junho, o professor de literatura geral e comparada da Unicamp, Marcos Lopes, se dispõe a refletir sobre os “Limites e riscos da universidade redentora”. Para ele, a universidade torna-se “redentora” quando assume a missão de promover justiça social. Haveria uma novidade aí, na medida em que buscar justiça social seria uma “nova atividade”, que vem acompanhada de um decréscimo no investimento na formação intelectual e científica de excelência. Ou seja, Lopes sugere haver um antagonismo entre compromisso social e formação de excelência. Se aceitamos que a universidade tem esse compromisso, segue-se a consequência inevitável e indesejável da perda de qualidade. É um típico argumento ladeira abaixo, escorregadio e falacioso, que merece a nossa atenção.

Antes, é importante dizer que não se trata propriamente de uma novidade o compromisso da universidade com a sociedade e com a melhoria da vida humana. Para ficar no campo das humanidades, que é citado por Lopes, cumpre lembrar que no interior das universidades públicas brasileiras as diversas áreas desse campo têm produzido pensamento crítico, diagnósticos empiricamente embasados e propostas para a superação das injustiças múltiplas que acometem sociedades profundamente desiguais, como a nossa. Que se tome como exemplo as áreas das humanidades da Unicamp, universidade na qual leciona Lopes, e que, desde a sua fundação, busca esse ancoramento. Pesquisas longevas, com resultados sólidos, amplamente discutidos pela comunidade científica e construídas em rede internacional são produzidas no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. No entanto, é evidente que o compromisso social não é exclusividade desse Instituto, basta olhar para as pesquisas e ações realizadas no Instituto de Economia, nas Faculdades de Educação e Ciências Médicas e na área ambiental, para citar alguns exemplos. Além de não ser uma novidade, estamos falando de institutos, faculdades e centros de pesquisa que produzem, não é de hoje, pesquisas de excelência com responsabilidade social, o que é suficiente para desvelar a falácia do argumento segundo o qual engajamento destrói qualidade.

A novidade é outra. É inegável que a composição do espaço das universidades públicas federais, em especial do corpo discente, começa a se transformar de maneira bastante significativa a partir de 2012, com a chamada “Lei de Cotas”, ou seja, com uma política de ação afirmativa em âmbito federal, que finalmente passa a olhar para estudantes oriundos da escola pública, pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência. Sabemos que a inclusão desses grupos não aconteceu no mesmo ritmo, algumas são ainda muito precárias, contudo, algo mudou. Na Unicamp, que eu tomo novamente como exemplo por ser a universidade na qual leciona Marcos Lopes, a política de inclusão com recorte social, racial e étnico demorou mais para chegar, mas chegou. Como mostra o Anuário Estatístico, em 2024, quase metade dos alunos ingressantes na graduação (47%) vieram da escola pública e 32,6% dos ingressantes se enquadram na categoria PPI – pretos, pardos e indígenas –, os mesmos que, em 2015, eram apenas 15,7% do corpo discente.

Em vez de olhar para esses dados e notar aí um avanço, Lopes está preocupado em denunciar que “o esforço atual das instituições de ensino recai cada vez menos na formação intelectual e científica de excelência”. Seria importante que essa denúncia ganhasse forma científica, o que demandaria prova. Enquanto não ganha, proponho olhar para o esforço que as instituições de ensino superior estão fazendo para democratizar o acesso – tornando-o menos discrepante com relação à composição da sociedade brasileira – e também para o esforço de diversos cursos e docentes para se abrir para as novas demandas científicas que surgem com a entrada em cena de novos atores, antes alienados do espaço de produção de conhecimento (não sem reação, como podemos ver pelo texto de Lopes). Aqui temos uma novidade. Por exemplo, é evidente que o enegrecimento do corpo discente e a presença de alunos indígenas na sala de aula provoca o corpo docente, hegemonicamente branco, a ampliar a própria mentalidade, a entrar em contato com perspectivas diversas da sua, a olhar para demandas que antes recebiam pouca ou nenhuma atenção, a enfrentar o problema do racismo estrutural e a questão indígena, a entrar em contato com outros saberes e a ampliar a literatura. A novidade é que a pluralização do corpo discente pode levar a uma reeducação do corpo docente e eu ouso dizer que, a passos lentos, isso está acontecendo de algum modo, sobretudo nas humanidades. Contudo, Lopes está preocupado com as investidas contra a “aura do professor”.

Em lugar de olhar atentamente para a abertura de novos horizontes – algo imprescindível para o avanço da ciência e do conhecimento – ele prefere denunciar, sem prova, a suposta queda de qualidade. Enquanto testemunhamos docentes de áreas diversas aceitando o desafio colocado pela entrada em cena de novas demandas e perspectivas, Lopes vê professores confirmando “crenças trazidas pelas experiências sociais dos alunos”. O argumento é mais uma vez escorregadio: por que interessar-se pelas experiências sociais dos alunos leva à confirmação das suas crenças? Novamente seria importante que o impressionismo cedesse ao rigor. Enquanto isso não acontece, proponho olhar para o ingresso de novas experiências sociais no espaço da universidade de outro modo, não como a porta de entrada de crenças a serem confirmadas por docentes acanhados, mas como a oportunidade para o aprofundamento do exercício crítico, que se torna mais rico e complexo quando fruto do diálogo entre pessoas com experiências sociais distintas.

Por não ver o potencial crítico desse possível diálogo – de docentes entre si, de docentes com alunos, alunos entre si, da universidade com a sociedade – e o impacto que pode ter na produção do conhecimento, Lopes prefere acusar o novo “papel redentor” da universidade. Ao invés de se engajar em refletir sobre as difíceis, sem dúvida difíceis, condições dessa conversação no espaço de produção de conhecimento e ciência, ele prefere passar a mensagem de que seria melhor mandar os alunos para as igrejas, afinal, elas cumprem melhor a tarefa redentora. “Esse papel redentor não poderia ser assumido por instituições mais aptas?”. Ele mesmo responde: “As igrejas fazem mais pela inclusão do que sindicatos e universidades”. O argumento é, no mínimo ininteligível, pois as igrejas – não importa a função social que cumprem – não são instituições de ensino e pesquisa.

Salta aos olhos o tom reativo ao que ele chama pejorativamente de lutas identitárias. Têm sido chamadas com frequência de “identitárias” as lutas dos outros quando se quer colocar em questão a sua legitimidade. No texto de Lopes é como se demandas das pessoas negras, indígenas, quilombolas, das mulheres (vale inclui-las, todas), do público LGBTQ, fossem a causa do desvirtuamento do fim último da universidade e da baixa qualidade da vida intelectual. Entretanto, não há uma palavra sobre a escassez de investimento público, sobre as dificuldades enormes enfrentadas pelas universidades federais, sobre o problema da permanência estudantil, sobre a evasão escolar, sobre a composição do corpo docente (ainda majoritariamente branca e em algumas áreas absurdamente desigual do ponto de vista do gênero), sobre o ataque fulminante e constante da extrema direita às instituições de ensino. Claro, se fizesse isso, Lopes acabaria engajado naquilo que denuncia.

As pautas específicas que surgem de experiências sociais distintas são, sem dúvida, um desafio a ser enfrentado. Muitas delas estão relacionadas a problemas estruturais, dignos da atenção das humanidades e da universidade como um todo. Será sim uma perda se se transformarem em “particularidades irredutíveis” e levarem à fragmentação. Contudo, o novo pacto que Marcelo Lopes pede entre docentes e discentes, para ser efetivamente um pacto, deve envolver todos os contratantes, e não cabe, no século XXI, sugerir a igreja para quem luta por reconhecimento. Esse novo pacto interno é um dos desafios – há tantos outros, externos e bem mais ameaçadores – a ser enfrentado pela Universidade, essa “velha senhora”, para continuar a ser relevante. Não é opondo justiça social e excelência ou invocando a aura sagrada do professor que seremos capazes de cumprir a nossa parte na tarefa.

Yara Frateschi é professora livre docente de ética e filosofia política da Unicamp, editora da Enciclopédia Mulheres na Filosofia e autora de A física da política: Hobbes contra Aristóteles (2008) e Liberdade, cidadania e ethos democrático: estudos anti-hobbesianos (2022).

Relações perigosas

# O Nubank e a organização de extrema-direita Brasil Paralelo (Amanda Audi, Pública)

# Influenciadores digitais. Uma mera encenação social?

Julia Corrêa sobre "Testemunha Ocular", livro de Peter Burke (Fronteiras do Conhecimento)

# Sim, eu sou o repórter do caso Escola Base

Valmir Salaro fala sobre o erro jornalístico que marcou sua vida (Uol)

# Vinte anos sem Otávio Ianni

Um dos intelectuais mais influentes do Brasil (André da Rocha Santos, A Terra é redonda)

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central

texto republicado

O que há de novo?

Pesquisadores foram recolhidos a clínicas especializadas no tratamento de traumas políticos

Torcicolo no Datafolha: entre ótimo, bom e regular aprovação de Lula chega a 67%

Sob a maior campanha contra um presidente da República movida pela velha mídia e enfrentando hordas reacionárias no Congresso, Lula está virando o jogo (leia mais)

# A política das ruas voltou. E agora?

Manifestações contra a pauta troglodita do Congresso tiraram o governo das cordas e mudaram o cenário político. Antonio Martins (Outras Palavras)

# O punho erguido pelas mulheres

Não é a primeira vez e nem será a última que a roda da história se move, tendo à frente o punho erguido pelas mulheres... Luis Marques (A Terra é redonda)

# A investida reacionária e seus limites

Uma análise do Projeto de Lei do Estupro. Giulia Gouveia e Mayara Goulart (A Terra é redonda). 

# PL do aborto pode mandar 1,7 milhão de mulheres para a cadeia

"(...) mandar pra cadeia 100 mil mulheres por ano, por terem sido vítimas de estupro". José Roberto de Toledo (Uol)

Os ventos mudaram para o governo Lula

"Talvez a principal crise que vivemos não seja da esquerda, mas sim do arranjo tecnocrático neoliberal. Nesse contexto, Lula necessita do apoio social. E esta base precisa de sinalizações positivas do governo", escreve Moysés Pinto Neto, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, editor do canal Transe e fundador da plataforma educacional Alternativa Hub, em artigo publicados por Outras Palavras (expandir)

O governo Lula assumiu com a vitória mais difícil de todo período democrático da Nova República. Sua eleição foi produto de uma intensa mobilização social, da revolta dos de baixo contra a austeridade liberal – com seu arrocho social – e das lutas por sobrevivência e dignidade capitaneadas pelas mulheres, pelas pessoas negras, pelos povos indígenas e a população LGTTQIA+.

A “Frente Ampla” foi composta por praticamente todos os setores com o mínimo de decência republicana e democrática no país, entendendo que o adversário representava um arranjo que não deveria ser uma alternativa nos quadros constitucionais brasileiros. Adversário que, aliás, fez uso da maior manipulação da máquina pública vista no século XXI, indo desde a criação de benefícios aleatórios em período eleitoral – que são, obviamente, proibidos –, táticas de intimidação e ameaça de morte de quem expressasse sua preferência por Lula até a repressão direta e ilegal, inclusive contra ordem judicial, da Polícia Rodoviária Federal. 

Por isso a vitória esmagadora de Lula foi transformada numa minguada diferença, chegando-se ao ponto de viver, em 8/1, uma tentativa de golpe de Estado protegida pelos militares.

Foi nesse cenário que Lula assumiu. Seu apoio institucional, ainda mais com o 8/1, foi geral. Até mesmo a mídia tradicional, usualmente antipetista, freou seu ímpeto e focou a artilharia no golpismo bolsonarista.

Mas, de uns tempos para cá, os ventos mudaram.

O primeiro ano do governo foi tenso, mas partidos do Centrão de forte vocação oposicionista aceitaram se aliar e assumir ministérios, Haddad foi razoavelmente admitido pelo mercado e pautas centrais como o arcabouço fiscal e a reforma tributária foram aprovadas. Como era previsto, os programas sociais vitaminaram a economia e melhoraram as taxas de emprego e renda. Os índices “surpreenderam” os pessimistas, estando ainda hoje quase sempre acima das expectativas.

Tudo começou a mudar quando Haddad começou a implementar pautas redistributivas de corte de privilégios para equilibrar as contas públicas. Lobismos implícitos, como os promovidos pelas próprias empresas de comunicação que adotaram um discurso ambíguo em relação aos cortes, uma vez que beneficiárias das desonerações, começaram a aparecer. Além disso, Lula também começou a adotar uma posição agressiva na política externa em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia – com uma postura de conciliação, e não apoio –, flertou com o “Sul Global” e criticou o genocídio em Gaza.

Ao mesmo tempo, ia-se consolidando um novo consenso. Ele começou no mercado financeiro, com agências de rating publicando relatórios em que Tarcísio de Freitas era aplaudido como gestor alinhado com os interesses privados e potencial candidato à Presidência em 2026. Uma famosa consultoria, por exemplo, já em março sintetizava a fórmula de Tarcísio como um “Bolsonaro melhorado” capaz de contemplar a centro-direita, além dos seus naturais habitats na direita e extrema direita. E então foi a vez do bastião do conservadorismo, Estadão, assumir a posição em editorial, para algum tempo depois ser seguido por Folha e Globo.

Ou seja, o establishment adotou Tarcísio. Com uma vantagem: ao estar no interior do bolsonarismo, ele tem ainda apoio da base fascista que herda de Bolsonaro. Assim: confluência entre mercado financeiro, latifundiários (totalmente alinhados ao bolsonarismo), empresários arrivistas (boa parte da grana nacional), e alinhamento entre a mídia estabelecida e o “partido digital” bolsonarista. No primeiro ano de governo, a atitude de Campos Neto chegou até a ser escrutinada pela mídia alinhada com o neoliberalismo, o que é surpreendente. No segundo, as coisas mudaram. O alinhamento ocorreu por duas vias: críticas da falta de “confiança” na parte fiscal do governo, com o evitamento do corte de gastos, e ataque ao STF, que estaria se excedendo ao investigar e tomar medidas contra a extrema direita.

Lula estava preparado para sofrer uma enxurrada de projetos absurdos no fim da gestão de Lira. Afinal, Lira não é mais que Presidente do Sindicato, e seu poder deriva diretamente da caneta. E, assim como Cunha, ele tem aquela marca do Poderoso Chefão, arbitrário e negociador, forte e poroso. (Aliás, recentemente ouviu-se falar de interferência direta do próprio Cunha no Congresso). Com o fim do mandato, Lira iria desaparecer. Por isso, era bem provável um último bombardeio como tentativa de se perpetuar por meio de um sucessor.

Mas a expectativa de Lula era um 0-0. Ou seja, o Congresso aprovaria algumas coisas, mas manteria a pauta econômica intacta, e a partir de julho se dispersaria para as eleições municipais. Aí, o governo voltaria ao jogo e poderia marcar seus gols.

O problema é que tinha uma pedra no caminho. Lula não contava com uma reaglutinação tão rápida da extrema direita, e com o apoio midiático a ela, causando pressão sobre seu governo e as expectativas. A mídia abandonou Lula, deixando na condição que já viveu durante seu primeiro governo, isto é: narraremos seus contras; se, depois, os prós ficarem explícitos, a gente muda de novo a linha editorial.

Antes, Lula era capaz de influenciar a mídia local por meio da mídia mundial. Como pode um líder celebrado no mundo inteiro ser tratado como um pária pela mídia brasileira? Com isso, produzia um efeito de fora para dentro.

E podemos perceber que essa era a intenção de Lula agora também. Não é apenas “preguiça” de atuar internamente, ficando como chefe de Estado: Lula sabe que a elite brasileira não o engole e, por isso, vai em busca de apoio internacional.

Só que o mundo não é mais o mesmo (ele sabe disso) e hoje existem polarizações no âmbito internacional. Entre 2002 e 2010, houve uma pax generalizada regada pela globalização. Portanto, Lula não pode mais contar com essa guinada de fora para dentro.

O que resta, então?

Bem, a eleição de Lula foi apoiada sim, pelo establishment liberal, mas vamos lembrar que o establishment esteve com Tebet no primeiro turno e teve que engolir Lula com certo desgosto. Portanto, a fração realmente existente de representativa desse “centro democrático” é pequena. É um caso óbvio de sobre-representação. Aliás, o mesmo centro que cobra de todos autocrítica e invoca a tese da “polarização” como diagnóstico é o mais condescendente consigo mesmo: será que a principal crise que vivemos não é da esquerda, mas do arranjo tecnocrático neoliberal centrista que se considera como destinado pelas forças divinas a governar para sempre?

Mas Lula precisa, urgentemente, de apoio social. E isso se faz como? O jeito de mostrar força nas democracias hoje ocorre por duas vias: pressão digital, especialidade do bolsonarismo, e pressão nas ruas, que era nossa especialidade, hoje também mais para o lado deles.

Vejamos o caso das universidades. Muitos governistas criticam os professores pela greve em função dos maiores investimentos que o governo está levando a cabo em relação ao anterior. Mas é preciso lembrar o papel estratégico que têm as universidades no debate público: assim como os jornalistas da mídia tradicional, professores ocupam o lugar de intelectuais públicos e têm, por isso, a possibilidade de influenciar no enquadramento dos problemas – o que é muito superior a simplesmente já se posicionar dentro de uma polêmica. Além disso, o movimento estudantil é hoje a forma de organização que consegue colocar mais jovens juntos para lutar por direitos, correndo em paralelo a igrejas e outros meios usados pelo bolsonarismo.

A atitude de desmerecer as lutas é um erro tático, porque o que o governo precisa é exatamente de uma sociedade mobilizada. Afinal, o agro, as igrejas, a bala, enfim, todo mundo do lado de lá está permanentemente mobilizado.

A primeira coisa que a esquerda precisa é de um “partido digital”. Mas isso deixo para outro texto. Vamos ao que dá para fazer nos quadrantes tradicionais.

Primeiro, aquecer os partidos. Existe um problema geracional nos partidos de esquerda brasileiros que consiste no seguinte: a geração pós-Lula do PT é formada de quadros que operaram de cima para baixo, sem grande vocação popular. E o PSOL, nos seus quadros fundadores, tampouco era um partido popular, sendo muito mais um partido esquerdista. Temos, no PT, figuras como Gleisi, Rui Costa, Padilha, Camilo Santana e o próprio Haddad – seu melhor quadro. Vejam os quadros do PT para disputa no Sudeste e no Sul: vou citar o exemplo de Maria do Rosário em Porto Alegre, hoje claramente disfuncional. São quadros com lutas importantes, mas com pouca adesão popular. No PSOL, entre seus quadros fundadores, tínhamos Plínio, Luciana Genro, Babá e Heloísa Helena. Ainda temos outros que parecem ter trilhado um caminho mais ousado, mas ainda assim têm o mesmo problema: Marcelo Freixo e Alessandro Molon, por exemplo.

O PSOL percebeu isso e está fazendo a transição com mais velocidade: hoje seus nomes são Erika Hilton, Sâmia Bomfim, Guilherme Boulos, Henrique Vieira. Já o PT, anda a passos de tartaruga. Há nomes fortes, como Renato Freitas, que esperam mais espaço no partido. O que Lula fez muito bem em São Paulo, forçar a aliança com o PSOL de Boulos, tem que ser radicalizado. Não é questão apenas de alianças: o PT pode continuar na cabeça quando for o melhor. O problema é de abrir espaço. É preciso formar novos quadros com vocação popular e linguagem digital para ontem, sob pena de o PT tornar-se, muito rapidamente, um Partido Trabalhista britânico com seus Tonys Blairs. Se Lula não tomar parte nisso, as máquinas vão continuar no automático.

Os partidos, além disso, são máquinas de organização. Ok, muito burocráticas, cheias de vícios, comandadas por feudos. Sim, concordo. Mas eles conseguem colocar gente nas ruas quando dirigidos de forma mais popular, assim como associações sindicais (CUT) ou movimentos organizados (MTST, MST). Assim, é preciso juntar esse orgânico com o espontâneo que pode ser propulsionado pelo movimento indígena, pelo movimento negro, pelo movimento feminista e pelo movimento LGTQIA+, assim como alianças surpreendentes com fandoms, torcidas, coletivos de trabalhadores uberizados.

Não se trata da burrice patológica dos esquerdo-machos contra o “identitarismo”. É preciso que haja uma grande coalizão. Mas ela só acontecerá quando houver um aquecimento dos movimentos, e os partidos são meios para aproveitar uma organização já existente e permitir que as manifestações sejam maiores e maiores. Somente uma mobilização popular cacifa o governo para enfrentar, com base na sociedade civil, o Congresso mafioso que temos. Lembremos que foi isso que aconteceu em 2022. Os mafiosos preferiam Bolsonaro, fomos nós, a sociedade civil, que impediu que isso acontecesse.

Em segundo lugar, parece que Lula terá que calcular muito bem a sucessão de Lira. Vale a pena continuar com essa base frágil e chantagista? Talvez mediante uma reorganização partidária seja possível encontrar parlamentares que topem no mínimo a “estratégia Rodrigo Maia”: pausa nas pautas de extrema direita (“costumes”), avanço nas econômicas.

Vale lembrar que um dos ideólogos do renascimento do Centrão foi, segundo consta no noticiário político, Aloizio Mercadante, então ministro da Casa Civil, quando estimulou a criação de PSD e outros novos partidos com o intuito de desidratar o MDB. Talvez o caminho agora seja o inverso: reaglutinar a dispersão, para enfraquecer o troca-troca, e negociar um apoio mais sólido.

Além disso, o governo precisa usar a caneta – se algo fez Dilma perder politicamente, foi ter muito ameaçado e pouco executado. Na prática, a direita não perdia nada; o discurso ficava cada vez mais “antigolpe”, ao mesmo tempo em que as medidas caminhavam cada vez mais à direita.

Uma reforma ministerial radical quando o impeachment já estava em vista (por exemplo, após a aprovação na Câmara, naquele espetáculo hediondo), por exemplo, nunca ocorreu.

Há múltiplos meios de o governo usar poder, e ele precisa ser usado porque esta é a única linguagem que o Centrão entende.

Finalmente, voltando ao caso das universidades, mas pensando também nas demarcações indígenas e na política da Petrobrás, o governo precisa parar de atacar a sua base. Para que a base esteja viva e resistente, como é o caso do momento, é preciso que haja sinalizações positivas – e isso envolve que Lula se decida sobre algumas coisas.

Quando Lula assumiu em 2023, eu acreditava que a era Dilma, de negacionismo climático e política antiambiental, havia ficado para trás. Mas hoje a gente vê o mesmo Lula de 2008 (Pré-Sal): ainda trata a pauta ambiental de modo oportunista. Com Marina Silva e Sonia Guajajara, Lula tem uma equipe sólida para tocar as questões que são fundamentais para sua base. Se continuar jogando olhando só para os inimigos, talvez no final não tenha mais ninguém na sua retaguarda – o que, aliás, foi o que ocorreu com Dilma.

Aquecer os partidos, reorganizar a base institucional, conter a dispersão clientelista, reforçar suas questões fundamentais – esses são alguns pontos que acredito poderem ajudar um governo que, sob forte artilharia, ainda pode oferecer uma perspectiva de melhora.


Pesquisadores analisaram os sites mais compartilhados pela extrema direita no Telegram e descobriram que a cada 10 reais arrecadados, 7 vêm do Google Ads. Laís Martins (Intercept)

# Monarquistas do Brasil Paralelo querem formar professores de História e em outras disciplinas das Humanidades (1 e 2)

Matérias da Pública revelam a insanidade da extrema-direita (neste caso, de capa e espada) e os espaços que o bando ocupa. Amanda Audi.

Escrevendo numa conta pra junto a gente cobrar... 

Geraldo Vandré, Aroeira (1967)

Extrema-direita dentro e fora do Congresso, lobby empresarial e velha mídia conspiram para levar Lula à exaustão. Defesa do governo precisa vir das ruas...

O PL do aborto a caminho do lixo

Banco Central, orçamento, reforma fiscal

# A PEC 65: independência ou patrimonialismo no Banco Central?
O que Campos Neto propõe é a PEC do almoço grátis para a futura elite do Banco Central (A Terra é redonda)

# Ladislau Dowbor: Temos democracia, mas a classe dirigente é a mesma 

“... temos ditaduras, temos golpes, e é tudo a mesma classe dirigente, as mesmas elites.” (Camila Bezerra, GGN)

 Não é suficiente que o Senado proponha fontes de recursos que atendam apenas este ano (247)

Governo do PT herdou de Temer e de Bolsonaro R$ 519 bilhões em renúncias fiscais concedidas ao parasitismo empresarial (Folha)

Otaviano Helene, Professor do Instituto de Física da USP (Jornal da USP)

José de Souza Martins, Professor Emérito da FFLCH da USP (Jornal da USP)

Um Estado forte para uma democracia forte

Há de se resistir às pressões do neoliberalismo e de seu bebê maligno: o nacional-populismo de direita. Luiz Carlos Bresser-Pereira, A Terra é redonda (expandir)

Para as sociedades capitalistas, o paradigma desejável e possível é o de um Estado forte, capaz, para uma democracia igualmente forte. A ideia de um Estado forte parece estar em contradição com uma democracia forte, mas não é isso o que mostra a realidade. A Suiça e a Finlândia são exemplos de países nos quais esse ideal está próximo de ser alcançado, mas esta afirmação requer definir o que é uma democracia forte e um Estado capaz.

O Estado é o sistema constitucional-legal e a organização que o garante, enquanto o Estado-nação é a sociedade político-territorial soberana formada por uma nação, um Estado e um território. Um Estado é capaz quando a Constituição e demais leis do país são cumpridas. Algo que não depende apenas do poder de polícia do Estado, mas também e principalmente da coesão da sociedade em torno do Estado.

Em outras palavras, depende de toda a sociedade entender que a lei é necessária para a vida da sociedade, e de que cada cidadão considere seu dever denunciar aqueles que agem contra ela. Ao agir assim, ele não será um “dedo-duro”, mas um cidadão que cumpre o seu dever. No plano econômico, é capaz o Estado que tem o poder efetivo de tributar – de aumentar impostos quando isto é necessário para assegurar o equilíbrio fiscal.

A nação é a forma de sociedade de cada Estado; ela compartilha uma origem, uma história e objetivos comuns, estes explícitos ou implícitos no sistema jurídico. Uma “boa” sociedade é aquela que é relativamente coesa. Nunca é plenamente coesa, porque há a luta de classes e um número infinito de conflitos entre os cidadãos, mas esta luta ou estes conflitos não são radicais, não implicam uma relação de vida ou morte – e, portanto, podem coexistir com uma nação ou uma sociedade civil (outro nome da sociedade de cada Estado) relativamente coesa.

A democracia forte, por sua vez, é a democracia consolidada. É a democracia existente em um país ou Estado-nação que completou sua revolução capitalista – já formou seu Estado-nação e realizou a sua revolução industrial. E, por isso, a nova classe dominante burguesa já não precisa do controle direto do Estado para se apropriar do excedente econômico (ela pode realizá-lo no mercado através do lucro).

É o regime político no qual as novas e amplas classe média e classe trabalhadora que nasceram da revolução capitalista preferem a democracia. Na prática, uma democracia forte é aquela que soube resistir às pressões antidemocráticas do neoliberalismo e, depois, do seu bebê maligno – o nacional-populismo de direita.

Embora a democracia seja o melhor regime político para um país que completou sua revolução capitalista, essa mesma democracia enfraquecerá o Estado dos países que ainda não a realizaram. E poderá igualmente enfraquecer os Estados de países de renda média, que já realizaram sua revolução capitalista, como é o caso do Brasil, ao ser essa democracia caracterizada por uma polarização que a torna incapaz de fazer compromissos necessários para realizar as reformas institucionais. O império sabe disso, e usa a democracia para garantir a sua dominação sobre os países da periferia do capitalismo.

A prioridade dos países de renda média é, portanto, fortalecer o seu Estado, porque assim estarão fortalecendo sua democracia; é tornar sua nação mais coesa; é livrá-la do conflito entre os liberais que se submetem ao império e os que buscam soluções nacionais para os problemas.

Não existe um caminho claro para alcançar maior coesão nacional. Porém, o simples fato de as elites sociais – não apenas as econômicas, mas também as políticas, intelectuais e organizacionais – saberem da necessidade dessa maior coesão já é um passo nessa direção.

O Brasil é um “Estado-nação-quase-estagnado” há 44 anos, cresce mais lentamente que os países ricos e mesmo que as demais nações em desenvolvimento – não realiza, portanto, o esperado alcançamento (“catching up“). Precisa, portanto, dramaticamente fortalecer a sua nação e o seu Estado para deixar de ficar para trás – como tem ficado neste quase meio século.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV). [https://amzn.to/4c1Nadj]

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.

Leia na matéria ao lado os 10 momentos em que Lula foi ovacionado pelos paarticipantes da Conferência da OIT

Lula é aplaudido de pé na Conferência da OIT

Embora não tenha recebido destaque nos meios de comunicação da chamada grande mídia brasileira, o presidente Lula foi aplaudido de pé e ovacionado pelo menos 10 vezes durante seu discurso no fórum de encerramento da 112ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Leia no site GGN

O que há de novo?

Segundo Clichê*

Setores de empresários que criticaram o governo tiveram R$ 90 bilhões em isenções fiscais

Segmentos do agronegócio e dos combustíveis, representados por empresários que criticaram duramente a MP do PIS/Cofins apresentada pelo governo federal, estão entre os maiores beneficiários de isenção fiscal no Brasil. Graças à desoneração, os setores deixaram de pagar R$ 90,8 bilhões em impostos no ano passado, segundo o TCU (Leia no Uol)

Aliança católicos-evangélicos não é mais para impedir avanços, mas para impor retrocessos

A CartaCapital, Lilian Sales alerta para o fortalecimento da extrema-direita entre católicos e analisa a mobilização pelo PL antiaborto de Sóstenes e cia. 

Lilian Sales é professora de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do projeto Pluralismo Religioso e Diversidade no Brasil Pós-Constituinte, do Cebrap (Leonardo Miazzo, leia aqui)

Capela Sistina

 A Expulsão de Adão e Eva do Paraíso

Os escombros negacionistas

A eternidade que não existe é a eternidade que pensa em repetir sempre a mesma humanidade ou a que julga ser impossível a extinção dos humanos. Tarso Genro, A Terra é redonda

Ambiente, exclusão, renda, insegurança, são os problemas mais graves que, com suas especificidades regionais, ofendem as possibilidades de uma vida ecologicamente saudável e socialmente solidária, na ampla maioria dos países do mundo (continue a leitura). 

A perseverança desses problemas ou sua “eternidade” –como queiram – não encontra prioridade que mereceria nos partidos democráticos (de esquerda ou não), cujos “propósitos” estão em regra soterrados pelos identitarismos que venceram a inércia burocrática das políticas tradicionais: a democracia é lerda para resolver problemas, os partidos envelheceram, os centros de poder do capital financeiro comandam as “reformas” e o fascismo avança.

Os negacionistas acham que o mundo é eterno, que eles são eternos e que vão durar para sempre, fixados num passado imaginário. Por isso mesmo dispensam formular quaisquer propósitos que estejam mais além da sua mesquinha ancoragem no mundo, onde os preconceitos e as políticas de morte, ligam uns aos outros e a fixação no presente deve ser sempre preservada. Sua forma mais imediata é a dogmática da violência, que dissolve os laços afetivos da vida comum e gera, não um programa político para o futuro, mas uma associação de forças dos violentos dominantes. Não uma comunidade de destino nacional.

Os negacionistas na área da saúde, os negacionistas climáticos, os fascistas preconceituosos e demais espécimes do bolsonarismo homicida, que tomou conta do país nas eleições presidenciais que precederam à terceira eleição de Lula, se creem donos da eternidade. E como são despidos de propósitos que dignifiquem a própria política tradicional, dentro de um Estado democrático de direito, apelam para os métodos que trouxeram à lume a extrema direita europeia do século passado: apodrecer a democracia social por dentro e aproveitar as maiorias parlamentares para enfraquecer o ethos da democracia política.

Seus dois cardápios políticos são claros: aproveitar a crise da insegurança pública que grassa em várias partes das grandes regiões metropolitanas do país, para retomar discurso da morte e do autoritarismo, como solução nacional para qualquer crise; e consolidar um programa de reformas bafejado pelas religiões do dinheiro, para especular com o sentimento da população a respeito de temas que podem dominar – através dos seus pastores do nada – enjambrados por propagandas televisivas e redes criminosas da extrema direita mundial.

O que mais preocupa nestes dois temas – insegurança pública e reformas conservadoras nos “costumes” – é a ausência de respostas estratégicas do governo federal, um governo democrático que ascendeu ao poder resistindo a um golpe de Estado de onde saiu fortalecido no exterior e no interior do país – (inclusive no seio das classes dominantes) pela figura redimida do Presidente Lula.

É que a simples repetição não basta mais, para arquitetar um “novo bloco histórico” para governar, nos limites de uma época que finda e de outra que ainda se esclareceu: a estabilidade para governar fazendo reformas progressistas para gerar e distribuir renda, enfrentar a crise ambiental e retomar a sensação de segurança não se casam mais “naturalmente”.

As grandes políticas sociais que foram a característica central dos dois governos anteriores do Presidente Lula não são suficientes para soldar um novo boco de poder, cujos fragmentos nas boas políticas setoriais – por si só – não criam a ideia de uma nação justa num projeto ambicioso de destino comum. De diferentes textos absurdos de Jorge Luis Borges no seu História da eternidade, captei duas joias da sua literatura que – ao contrário de muitas das suas metáforas evasivas – nos fazem encarar o mundo real como um suplício e as linguagens deste mundo como escárnio.

Na primeira fórmula borgiana está lá a definição da “eternidade”, como “um artifício esplêndido que nos liberta, nem que seja fugazmente, da intolerável opressão do sucessivo.” Na segunda hipótese, ao definir um personagem que denomina Lane, Jorge Luis Borges assenta que ele é de uma “fidelidade admirável (pois) carece de propósitos, o que é positivamente uma vantagem.” É necessário compreender que “eternidade”, vida comum, cotidiano, “propósitos” que dão sentido à vida imediata, são novas categorias dominantes que fundam, tanto uma política democrática como uma reação fascista, mas – uma má notícia – elas são controláveis pelos cálculos logarítmicos que vem de fora da vida real das massas e podem submetê-las a quaisquer “propósitos”.

Ora, é na intolerável “opressão do sucessivo” que os seres humanos fazem e aprendem a sua história; ou – se não querem aprender – sofrem-na de forma embrutecida na sua carne, com os desastres de governos, desastres climáticos, violência sem controle e endemias terríveis. A fidelidade “admirável” na linha borgiana, sobre aqueles que não têm propósitos, já é um propósito épico da direita fascista: devolver a sociedade ao seu estado natural e permitir que os seres humanos se devorem. Num mundo em crise, no ambiente doentio de um cotidiano de miséria e dor.

Checadas no mundo real, as palavras de Jorge Luis Borges são joias evasivas, pois o conceito de eternidade não nos liberta da “opressão do sucessivo”, mas reforça-o; e a “carência de propósitos”, por seu turno, só é uma vantagem para quem faz da dispensa dos propósitos um projeto anárquico de eliminação dos que sofrem as suas consequências despropositadas. Este é o projeto de Javier Milei, não de Lula da Silva. Este é o projeto do fascismo, não da democracia: este é projeto da perversão que começa aceitando a apologia da tortura e termina nas mãos do Dr. Mengele.

É preciso explicar antes de seguir: a “eternidade” não nos liberta da “opressão do sucessivo”, porque onde pessoas são escravas elas não lidam com conceitos, mas com necessidades e a eternidade, para elas, não existe. E ainda: onde “a fidelidade carece de propósitos” não existem vantagens compreendidas, mas comportamentos programados pela biologia, como na vida animal ou vontades aniquiladas pela repressão, como na pura ideia fascista de uma vida cercada pelos mitos.

Num antigo livro de Jorge Luis Borges e José Eduardo Clemente, publicado pela primeira vez em 1952 (El linguaje de Buenos Aires) parece estar uma resposta antecipada de Clemente às aventuras de linguagem do velho Borges: “Somente o cotidiano nos dá a profunda dimensão do tempo; esse morrer repetido de todos os dias cujo nome é a vida. Uma das tantas ruas da eternidade”.

A eternidade que não existe é a eternidade que pensa em repetir sempre a mesma humanidade ou a que julga ser impossível a extinção dos humanos. Todas as fidelidades, na outra parte da história que lida com as humanidades reais – quando não apresentam claramente os seus propósitos, só tem um objetivo: extinguir as barreiras de resistência à dominação, para dizerem que ninguém deve ter propósitos de redenção, propósitos de igualdade, propósitos radicais de liberdade.

Nem Borges nem Clemente foram teóricos da política, nem eu sou filólogo e filósofo, mas nada me impede de trazer para o debate cotidiano uma ideia sobre os propósitos, que nos envolvem – à esquerda – na tragédia gaúcha. Esta é uma pequena ponta de um desajuste ambiental global e de um ajuste local brutal, feito pelos governos – mais ou menos próximos do bolsonarismo – que ainda nos assolam. O desajuste ambiental e econômico é universal, mas as formas particulares de enfrentar as suas consequências são sempre locais.

O “ajuste” na redução das funções públicas do Estado é um propósito perverso e o tratamento do Estado, como o lugar privilegiado da corrupção e dos privilégios, é sempre uma sucessão feita para eternizar políticas dos mais privilegiados, “de fora” do Estado. Tudo para melhor explorá-lo para os seus negócios privados, depois de demonizar o Estado por longo período de cumplicidade com a maior parte da mídia tradicional.

Penso que a assistência humanitária imediata (primeira fase) que uniu sociedade civil e estado, pelos três entes da União, na solidariedade possível aos atingidos pela catástrofe climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul está funcionando. Creio que a reconstrução (segunda fase) da infraestrutura e o apoio de reconstrução da vida civil, comercial, empresarial e das habitações, superados os naturais desajustes de ordem política normais em qualquer democracia vai demorar mais do que sugerem os governos envolvidos, mas vai funcionar razoavelmente. Mas algo nos falta planejar, como sociedade civil de todas as classes e como estado de todos os níveis. E este algo é o essencial.

É iniciar imediatamente, por dentro desta segunda fase, uma terceira fase: do planejamento estratégico para começarmos, em face da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, a construção – a partir daqui, de um novo modelo socioambiental e de desenvolvimento com e crescimento acelerado, capaz de servir de exemplo para todo o território nacional.

A produção de energia limpa, novas tecnologia de controle ambiental e de previsão de desastres, estímulo estatais a “startups” ambientalmente corretas, canais de irrigação e de dispersão de águas nas bacias hídricas e, ao longo dos “muros” refeitos e renovados, parques ambientais e zonas de absorção e amortecimento das águas, escolas ousadas de educação ambiental e moradias decentes – ecologicamente adequadas a estes novos tempos – para as populações deslocáveis das zonas de perigo, nos eventos climáticos que vão se repetir.

Este planejamento concertado só pode partir do governo federal através de uma Autoridade Superior a ser instalada em definitivo a partir de janeiro do próximo ano, que fique fora do contencioso eleitoral, assim como quem representar o governo do estado nesta relação. Assim se poderá contornar, inspirando o país, a eternidade do desastre. O governo federal, seja ele qual for, poderá vincular-se, nos próximos dez anos ao propósito de construir a nação junto com o Rio Grande do Sul. Afinal, quem canta no seu hino ser um “modelo a toda terra” pode começar inspirando seu próprio país.

*Tarso Genro  foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios) [https://amzn.to/3ReRb6I]

Enquete da Câmara sobre PL do aborto bate 1 milhão de votos, 88% são contra

Uol

A "grande" imprensa atua como corruptora da democracia

Globo e Estadão montam gabinete de ódio contra mídia independente

"A mídia tradicional uniu-se contra youtubers de esquerda, com a finalidade de reaver o monopólio da informação no Brasil", escreve Aquias Santarem no 247 (leia aqui)

Leia também: # O recomeço de Lula 3, a eleição municipal e a ofensiva reacionária, Vinicius Torres Freire (Folha)

Folha: de rabo preso com quem mesmo?

Jornal (que se vangloria de sua independência) não consegue se livrar do impulso a-ético que o atinge sempre que a democracia pode desbancar os interesses privados das elites brasileiras. O exemplo ao lado é clamoroso: sob o disfarce de uma notícia, o jornal publica conteúdo patrocinado pela Prefeitura. Conversa: é propaganda elitoral escancarada - eventualmente mais acintosa que uma fake news. A "matéria" inteira está aqui... com a chancela de um tal de Estúdio Folha.

# Sala de Professores

MIS exibe "A sala de professores", filme alemão indicado para o Oscar como melhor fime estrangeiro (Folha Ilustrada)

# A sociedade da História Morta

História foi inserida em área genérica e desapareceu no ralo curricular (Antonio S. de Almeida Neto, A Terra é redonda)

Universidade e formação no contexto neoliberal

O ensaio discute, ancorado em uma pesquisa bibliográfica, a relação entre universidade e formação no contexto neoliberal. Inicia-se com um breve diagnóstico de época, mostrando alguns aspectos do efeito destrutivo do neoliberalismo nos âmbitos social, econômico, cultural e político. Na sequência, trata tais efeitos especificamente no âmbito educacional, evidenciando como a lógica econômica neoliberal se apodera da educação, transformando escola e universidade em empresas voltadas quase que exclusivamente para a concorrência, a eficiência e a lucratividade. Por fim, baseando-se na convicção de que a força poderosa do neoliberalismo não é insuperável, o ensaio procura refletir sobre algumas formas possíveis de resistência, sinalizando para o alcance de uma filosofia da educação transformada. Cláudio Almir Dalbosco, Scielo (expandir)

Imagem: The Healer (O curandeiro), 1937, Bronze de René Magritte 

O cenário educacional contemporâneo está sendo pouco a pouco mais colonizado pelo neoliberalismo. Com o prefixo neo, queremos indicar, inicialmente, sem ignorar possíveis vínculos com o liberalismo clássico, o conjunto de novidades trazidas pelo neoliberalismo desde a década de 1970, que tornam cada vez mais sutil e intenso o processo de assujeitamento do sujeito contemporâneo. Seguindo de perto as análises empreendidas por Michel Foucault, sobretudo no curso proferido no Collège de France no período de 1978-1979 e publicadas, posteriormente, com o título Nascimento da biopolítica, podemos afirmar que o neoliberalismo consiste basicamente em uma forma de governamentalidade que combina, de maneira inteiramente nova e original, dois vetores importantes, o homo economicus e a teoria do capital humano. Resulta dessa combinação a ideia do sujeito empreendedor de si mesmo, do qual é exigido, pelo modelo empresarial da economia neoliberal de mercado, que se oriente quase que exclusivamente pelos princípios da concorrência, eficiência e lucratividade (FOUCAULT, 2008).

Dessa maneira, o neoliberalismo invade, em suas diferentes dimensões, social, econômica, cultural e política, a vida diária dos indivíduos, pretendendo moldar sorrateiramente suas formas de ser e viver. Dados seus efeitos altamente destrutivos, se o neoliberalismo não for parado a tempo, ele poderá nos conduzir à extinção da humanidade, com o risco de destruir também o próprio planeta. Felizmente, embora poderoso, o neoliberalismo não é um modo definitivo de organização social nem cultural, razão pela qual sua força destrutiva pode ser interrompida. Contudo, e esta é a primeira parte de nossa hipótese, somente o reavivamento da dimensão democrático-participativa da esfera pública é capaz de detê-lo. E, para fazê-lo, e esta é a segunda parte da hipótese, a apropriação reconstrutiva da ideia ampliada de formação humana cumpre papel indispensável.

Dividimos o ensaio em três partes. Na primeira, oferecemos um breve diagnóstico de época, mostrando alguns aspectos da crise do neoliberalismo nos âmbitos social, econômico, cultural e político, bem como a emergência de um mundo multipolar. Na segunda parte, investigamos os efeitos do neoliberalismo no âmbito educacional, evidenciando como a lógica econômica neoliberal se apodera da educação, transformando escola e universidade em empresas voltadas quase que exclusivamente para a concorrência, eficiência e lucratividade. Por fim, com base na convicção de que a força poderosa do neoliberalismo não é insuperável, procuramos tratar de algumas formas possíveis de resistência. Considerando nossa procedência investigativa, focamos na ideia de uma filosofia da educação transformada, tomando-a como força reflexiva capaz de pensar a formação em uma direção pós-humanista.

Um Breve Diagnóstico de Época: a Crise do Neoliberalismo e a Emergência de um Mundo Multipolar

Enquanto teoria econômica e política, o neoliberalismo, assim como o liberalismo clássico, ergue-se sobre a base do capitalismo moderno. Nessa perspectiva, seu impacto precisa ser entendido, ao menos em parte, como a amplificação de algumas tendências desde o início presentes no sistema do capital. A utilidade prática como critério máximo para avaliação dos processos, incluindo daqueles ligados à produção do conhecimento e à formação humana, à busca do lucro como imperativo e à compreensão dos indivíduos em vista da produção econômica, por exemplo, são aspectos que já estavam presentes, de modo mais ou menos explícito, desde os primórdios do capitalismo moderno. O neoliberalismo que se tornou hegemônico nos últimos 50 anos “apenas” potencializou e escancarou sua gravidade. Mas essa hegemonia, até então assegurada por um mundo unipolar de globalização unidimensional, parece agora iniciar seu doloroso ocaso.

Embora o primeiro laboratório desse modelo de globalização tenha sido o Chile de 1973, sua hegemonia consolidou-se simbolicamente com a queda do muro de Berlim, em 1989, e escancarou seu declínio com a guerra entre Rússia e Ucrânia, que começou em 2022. Sua força, ao longo das últimas décadas, deveu-se, sobretudo, de um lado, à capacidade de impor sua visão de mundo baseada na lógica competitiva do mercado projetada sobre todos os setores da vida humana e de um imaginário social apresentado com a pretensão de ser a única alternativa possível, no sentido de que o mundo é o que está aí. Por outro lado, necessitou da forte projeção de uma visão atomizada de ser humano, individualista e ultracompetitivo, transformando-o em capital humano, empresário de si mesmo, bem como do incansável esforço de conformar não apenas a subjetividade, mas também o próprio sujeito, como tão bem o percebeu o psicanalista Jorge Alemán (2018).

O neoliberalismo pretende aceder à constituição estrutural e ontológica do sujeito, na medida em que cria um sofisticado dispositivo de performance que consiste em levar esse sujeito sempre para muito além de suas possibilidades, em um exercício de autodominação que visa extrair o máximo rendimento de si mesmo. Com isso, a razão de mundo neoliberal passou a influenciar diretamente também aspectos que incidem decisivamente sobre a qualidade de vida das pessoas, como é o caso da saúde e da doença individual e global. A força de tal influência faz propagar pandemias, gerar alterações climáticas irreversíveis e provocar o crescimento de doenças crônicas, assim como o ressurgimento de doenças já erradicadas.

Freudenberg (2022), identificando com precisão a origem da responsabilidade por esses problemas, fá-la residir em fatores como “a globalização controlada pelas empresas, a financeirização, a desregulamentação, a concentração monopolista e a captura corporativa das novas tecnologias, características que definem o capitalismo do século XXI” (FREUDENBERG, 2022, p. 465), tendo em vista que essas são “causas fundamentais de múltiplas e crescentes ameaças ao bem-estar” (FREUDENBERG, 2022, p. 465). Em consonância, pois, com determinada visão de mundo e de subjetividade, a ética neoliberal vinculou um modo de vida consumista, desigual, excludente, adoecedor, dessolidário, violento, autodestrutivo e destrutivo do meio ambiente.

No plano econômico, uma das marcas típicas do neoliberalismo é a economia oligopolizada, com a forte predominância de grandes corporações que dominam o mundo e em boa proporção definem o modo de vida das pessoas1. Outra de suas características essenciais é o capitalismo financeiro. Sua agenda padrão sempre foi norteada por privatização, desregulamentação, corte de impostos e austeridade fiscal. Todavia, a hybris neoliberal gerou uma forma disfuncional de capitalismo – um “filho bastardo”, para usar a expressão de Wendy Brown (2019) – que paradoxalmente se alimenta das próprias ruínas e das disfuncionalidades por ele geradas. Mazzucato (2022, p. 28) identifica quatro “forças profundas” aí presentes: “1) o curto-prazismo do setor financeiro, 2) a ‘financeirização’ dos negócios, 3) a questão climática, e 4) governos morosos ou ausentes”.

No âmbito da democracia, a tática neoliberal foi corroer as instituições políticas por dentro e por fora, subjugando-as fortemente à lógica fundamentalista de sua economia de mercado. Esse processo não pode ser entendido apenas como um efeito colateral da razão de mundo neoliberal, mas como algo claramente concebido já em sua matriz teórica hayekiana, cerca de meio século atrás. Para Hayek (1983), democracia resume-se apenas a um método de governo, ou seja, de determinação ou de decisão de quais leis deverão ser aprovadas. A questão central é, pois, segundo o autor, de ordem legal, e não a da vontade livre e soberana da nação. Nas suas palavras, “liberalismo é uma doutrina que define as características da lei; democracia é uma doutrina que define o método pelo qual se determinará que leis serão aprovadas” (HAYEK, 1983, p. 112). É por essa clara limitação da democracia e pelo consequente destronamento da política que Brown (2019) constata que, das teorizações de autores como Hayek (1983), surge, como efeito colateral, o neoliberalismo como uma figura frankensteiniana para proteger o capitalismo de qualquer forma de estado de justiça social.

Essa fragilização da democracia impulsionou o processo de massificação e de despolitização das pessoas, da sociedade e do Estado mundo afora, assim como a neutralização da participação e da vontade soberana das populações. Vale destacar que as consequências desse fenômeno já haviam sido muito bem estudadas por Hannah Arendt (2012) na metade do século passado, alertando para o risco, representado em relação à política, da conversão das sociedades ocidentais em massas. Dele resultou a desdemocratização e a fragilização da política regida pela lógica privada e de mercado e, pois, a corrosão do sistema político e da estrutura de pesos e contrapesos entre os poderes da democracia liberal. Outra de suas consequências foi a geração de grandes corporações privadas, castas estatais (legislativo, judiciário, executivo, militares), bem como grandes rentistas e determinados setores religiosos, que, nas sociedades ocidentais, se apropriam do Estado contra a sociedade. Resultou daí uma situação de profunda desigualdade social e de canalização do descontentamento, do ódio e da violência para a captura da política.

Para tal, o neoliberalismo precisou demonizar o Estado e vendê-lo como mínimo e ineficiente. Sua ideologia retrata o Estado e os governos como paquidermes ou máquinas burocráticas desengonçadas que dificultam ou suprimem o “ímpeto animal do setor privado”, este sim, supostamente, criador de riqueza. Mazzucato (2022, p. 37) refere-se oportunamente a cinco mitos repetidos à exaustão como mantras pela ideologia neoliberal: as empresas criam valor e assumem riscos, ao passo que o Estado apenas reduz riscos e facilita a ação daquelas; o papel do Estado limita-se a corrigir falhas do mercado; os governos devem funcionar como empresas; terceirizar significa poupar dinheiro público e reduzir riscos; e o governo não deve escolher “vencedores” ao estimular a atividade econômica. Na ideologia neoliberal, a eficiência do mercado contrastaria com a ineficiência intrínseca ao Estado, seja ele qual for.

Todavia, como também destaca Mazzucato (2022), os mercados não resultam apenas de decisões individuais, mas sobretudo da maneira como se governa cada agente criador de valor, incluindo o próprio governo. Nesse sentido, os mercados estão sempre estruturados em torno de regras, normas e contratos que influenciam diretamente “comportamentos organizacionais” e “interações e desenhos institucionais” (Mazzucato, 2022, p. 33).

Essa compreensão do mercado defendida pela autora implica outra visão de Estado e da relação deste para com aquele e com a sociedade. Prossegue Mazzucato (2022, p. 33): “O governo [...] não pode se limitar a corrigir mercados reativamente, mas ‘coestruturá-los’ para que entreguem os resultados necessários para a sociedade”. Por essa razão, os governos não apenas podem, mas devem orientar os rumos da economia, de modo a servirem “como ‘investidor de primeira instância’ e assumir riscos; podem e devem estruturar os mercados para atender a um propósito” (Mazzucato, 2022, p. 33). Essa noção de orientação da economia é central em razão de que, em última instância, a visão neoliberal destitui o Estado de qualquer propósito ao naturalizar a ideia de que ele deveria restringir-se a corrigir as falhas do mercado2.

O neoliberalismo somente conseguiu difundir a ideia de Estado mínimo em razão de ter esvaziado a noção de “propósito” na economia, que, em última instância, reside em uma sociedade mais inclusiva, sustentável e justa. Trata-se de uma postura moralmente questionável, dado que resta ao Estado consertar as irresponsabilidades do mercado, por muitas vezes com o socorro a bancos e empresas por meio da injeção de recursos públicos, como ocorreu nas crises de 2008 (subprimes), de 2020–22 (Covid-19) e de 2023 (de bancos americanos e do Credit Suisse). A ideologia neoliberal do Estado mínimo sempre procurou esconder que o mínimo se refere apenas à sua dimensão social e que o mercado é intrinsecamente eficiente apenas em sua propaganda. Trata-se, em sua verdadeira feição, de um Estado máximo em seu braço coercitivo e débil em seu braço social. Os focos do neoliberalismo sempre foram o desmonte do Estado social – sobretudo as redes de proteção social – e o fortalecimento da dimensão coercitiva e repressora do Estado.

Uma consequência bastante plausível das disfuncionalidades de seu sistema econômico ao apropriar-se do Estado é a profunda desigualdade e, no limite, a anomia social. Por essa razão, Piketty (2020) lembra que o aprofundamento das desigualdades não é apenas perverso pelo mal que causa às condições de vida digna das pessoas, mas também porque trava o crescimento econômico. A violência, nesse caso, tende a tornar-se estrutural e capilarizada como linguagem social, dando margem ao avanço de forças paralelas ao poder do Estado, como paraísos fiscais, grupos nazifascistas, máfias e milícias armadas ou digitais.

No âmbito cultural, é acertada a leitura de Dany-Robert Dufour (2005) de que o capitalismo, no fim, acaba também por consumir o ser humano, no sentido de reduzir-lhe o espírito. O autor mostra como, no interesse supremo de favorecer a livre circulação e troca de mercadorias, o novo capitalismo, dito neoliberal, favorece o florescimento de toda sorte de contestação e transgressão, supostamente em nome de maiores autonomia individual e tolerância, mas ao custo de minar as bases simbólicas, fontes de sentido para o existir humano. Toda referência ao simbólico, aos valores culturais que tradicionalmente acompanham as trocas humanas se torna, para os interesses do livre mercado, entraves que precisam ser eliminados. O “novo capitalismo”, afirma Dufour (2005, p. 200), “persegue um ideal de fluidez, de transparência, de circulação e de renovação que não pode se conciliar com o peso histórico desses valores culturais”. A lógica neoliberal força, por assim dizer, o despontar de uma nova humanidade, reduzida a um grupo de indivíduos simbolicamente empobrecidos em sua subjetividade, movidos por interesses racionais, em concorrência selvagem uns com os outros.

Outra marca do neoliberalismo é a destruição irrefreável dos recursos naturais para além da capacidade de renovação deles. Catástrofes ambientais e sanitárias, fenômenos climáticos extremos, perda de terras agricultáveis, destruição das florestas e da biodiversidade, contaminação da água, do solo e do ar, migrações forçadas, guerras e fome ou, ainda, insegurança alimentar resultam da sanha autofágica do lucro e do acúmulo a qualquer preço. Trata-se de um regime de crises que se alimenta cruelmente das crises. A de 2008 mostrou os limites da financeirização da economia, a concentração da riqueza e a brutal desigualdade social. A pandêmica, de 2020, ressaltou a catástrofe ambiental e os limites da falsa lógica autorreguladora do mercado com a crise sanitário-pandêmica (a pandemia não atingiu a todos de modo igual). Por fim, a bélica, agudizada desde 2022, deflagrou os limites de um modelo de globalização unidimensional e de dominação belicista, imperialista, concentrador de riquezas e excepcionalista.

A lógica autofágica deparou com sua consequência necessária, a de que em algum momento a gravidade da crise deixaria de retroalimentar o próprio sistema que dela vive em razão da simples exaustão de sua dinâmica, uma vez que os recursos naturais são finitos. Ronald Wright (2007) lembra, em sua Breve história do progresso, que o sistema de extração natural e acúmulo de riquezas hoje apresenta evidentes tendências suicidas, de modo a tratar-se de um risco de extinção civilizacional. O autor destaca que várias civilizações ao longo da história alimentaram seu próprio processo de destruição ao abusar insensatamente dos elementos que permitiram seu avanço. Ou seja, foram vítimas de seu próprio desenvolvimento.

Na mesma direção, Wallace-Wells (2019) faz um alerta sobre nosso futuro próximo e as consequências dos problemas climáticos que nos afetarão dramaticamente, implicando importantes mudanças políticas e culturais, acompanhadas de uma radical transformação na forma como entendemos a vida. O autor toma como base dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas e indica que ações conjuntas entre os países consistem no único caminho para a minimização dos efeitos da crise em curso.

É em meio a esse cenário permeado por crises de várias ordens que se delineia o doloroso nascimento do mundo multipolar e do lento deslocamento da hegemonia do Ocidente para o Oriente. Vários fatores sinalizam nessa direção, bem como para um ponto de inflexão, na medida em que as profundas crises e contradições do mundo ocidental apontam para o esgarçamento da lógica neoliberal. É o que sugere o economista Jeffrey Sachs (2022). A exemplo do que já apontaram outros importantes autores, como Dowbor (2017) e Piketty (2020), Sachs (2022) entende que todas as grandes crises que afetam o planeta na atualidade têm origem na profunda concentração de riquezas e em um sistema de produção que se tornou claramente disfuncional. São elas: a(s) pandemia(s), especialmente da Covid-19; a já referida iminente catástrofe climática; a nova corrida armamentista; e a brutal desigualdade social. Esta última é a principal causadora de mortes e, assim como o faz de modo contundente Piketty (2020), em Capital e ideologia, Sachs (2022) indica que sua origem e solução é fundamentalmente política, e não apenas econômica. Um dado muito simples o prova: se a estimativa de vida das pessoas na Europa é de mais de 80 anos, enquanto na África se limita a cerca de 60, é porque no continente africano as pessoas estão morrendo mais cedo em razão exclusiva da pobreza.

O início do fim de décadas de dominação neoliberal lideradas pelo Estados Unidos e países da Europa ocidental sobre o Oriente é indicado por vários fatores, tais como os blocos de integração euroasiáticos (novas rotas da seda) e do Sul global (BRICS+); o papel ativo do Estado assumido em países como China, Rússia, Irã, Turquia e Índia; a política de integração comercial com o respeito à soberania das nações; a economia e a moeda lastreada em produtos e energia (Rússia, China etc.); o acordo sino-russo de 2022; o fortalecimento dos BRICS+ como alternativa ao atlanticismo/à Organização do Tratado do Atlântico Norte; o novo sistema financeiro em desenvolvimento, alternativo ao ocidental, baseado em uma moeda comum, mas sem eliminar as moedas próprias dos países nele envolvidos; a autonomização e o crescimento industrial e bélico dos países, impulsionados pelas sanções ocidentais; o progressivo fim da hegemonia do dólar e do capital financeiro especulativo; o forte investimento da indústria nacional bélica e de transformação nos países euroasiáticos; o acentuado investimento em educação, ciência e tecnologia; o grande fomento de fontes de energias limpas; e a integração comercial com o mundo, sobretudo com o Sul global.

Esse diagnóstico de época, esboçado em largos traços, mostra o fracasso do neoliberalismo atual em se efetivar como organização econômica apta a distribuir socialmente a riqueza e a proporcionar formas de vida solidárias capazes de oportunizar interações livres e responsáveis dos seres humanos entre si e com o meio ambiente. Ao contrário disso, o neoliberalismo, em suas múltiplas dimensões, social, econômica, cultural, política e climático-ambiental, está conduzindo à autodestruição a humanidade e o próprio planeta.

No tópico seguinte do ensaio, vamos analisar alguns efeitos do desenvolvimento destruidor que o neoliberalismo provoca no âmbito educacional, no sistema do ensino superior e, mais especificamente, na universidade.

Universidade e Precarização da Formação nas Sociedades Neoliberais Ocidentais

Com o diagnóstico anteriormente apresentado, procuramos esboçar uma visão geral da sociedade atual em aspectos que importam para avançarmos na reflexão sobre os impactos do neoliberalismo na educação em geral e, mais pontualmente, na educação de nível superior. Decisivo, nesse ponto, parece-nos ser a corrosão da dimensão formativa da educação universitária em decorrência da intromissão crescente da lógica capitalista neoliberal nas políticas e na gestão da educação superior. Tal corrosão facilmente resulta na deformação (Unbildung)3 do espírito investigativo e de inquietude permanente que marca a perspectiva da filosofia enquanto educadora desde sua origem.

Também nesse caso cabe pontuar que o neoliberalismo não é a origem da corrosão formativa identificada na atualidade, mas seu máximo potencializador. Assim como o próprio liberalismo e sua versão atual, a universidade moderna e a ideia de formação a ela vinculada sofrem uma profunda influência do sistema capitalista. É ilustrativo disso o fato de que já nos primórdios da ciência moderna a universidade foi impulsionada por financiamento privado e direcionada pelo interesse utilitário de suas descobertas. No plano formativo, já cedo, na modernidade, a demanda do capital por mão de obra qualificada passou a pautar os objetivos educacionais. Isso ficou especialmente claro com a universidade napoleônica e sua ênfase na formação profissional. São esses e outros elementos do sistema capitalista moderno que o neoliberalismo agrava a ponto de descaracterizar a função social da universidade e o sentido humano da formação.

A universidade precisa ser compreendida também como um produto de seu tempo, mas não apenas como tal. Em sua longa história, de quase mil anos, ela sobreviveu enquanto instituição adaptando-se às transformações da própria sociedade, no entanto essa narrativa da adaptação, nas últimas décadas, tem se convertido no discurso falacioso pelo indispensável alinhamento da universidade aos preceitos e princípios da sociedade neoliberal. Nessa levada, o conhecimento foi perdendo gradativamente seu valor crítico-formativo para se transformar em um produto cujo valor se torna relativo à sua pertinência para o desempenho de funções específicas no mercado de trabalho e para a produção direta ou indireta de mercadorias.

Sendo assim, do mesmo modo como constatamos, do ponto de vista antropológico-ontológico, a dessubjetivação dos indivíduos provocada pela ideologia neoliberal do empreendedor de si mesmo, ocorre aqui, no âmbito educacional, uma pauperização cultural crescente, à medida que a formação ampla cede lugar à profissionalização aligeirada e tecnicista crescente. É preciso considerar, nesse contexto, que o enfraquecimento progressivo do papel crítico-reflexivo do conhecimento se refere a um fenômeno mundial, sobretudo ocidental, e, portanto, não só brasileiro. Esse fenômeno tem sido investigado em detalhes, por exemplo, na Alemanha, por Reinhard Brandt (2011) e, nos Estados Unidos, por Martha Nussbaum (2015). Enquanto Brandt (2011) mostra a redução da noção ampla de conhecimento ao modelo do saber gerenciado, Nussbaum (2015) denuncia, por sua vez, o desaparecimento silencioso das humanidades no currículo universitário norte-americano. No bojo de ambas as críticas está, como se pode observar, o esfacelamento de princípios decisivos à formação da cidadania democrática, como o pensamento crítico, a cidadania universal e a imaginação narrativa (DALBOSCO, 2021, p. 157-175).

No âmago desse movimento de transformação, verificamos a conversão da universidade em empresa, dos professores em burocratas e dos estudantes em clientes (ORDINE, 2016, p. 101). Tal tendência encontra, infelizmente, ainda poucos nichos de resistência, pois é impulsionada pela necessidade introduzida pelo mercado da educação superior de as universidades disputarem entre si e com outras instituições de ensino os apoio e público necessários para se legitimarem politicamente e para se manterem em termos financeiros. A bandeira neoliberal do Estado mínimo cumpre um papel decisivo nesse processo, uma vez que inibe os investimentos do Estado em educação e lança as instituições em uma luta por recursos que invariavelmente perverte suas finalidades educativas. Não bastasse isso, o Estado, que é mínimo em investimento, tampouco costuma ser máximo em políticas sociais, de sorte que mesmo a qualidade da educação ofertada acaba por se pautar pelos interesses imediatos do mercado.

A consequência disso, facilmente observável e já bem documentada, é o aparecimento de cursos universitários cada vez mais curtos, restritos ao mínimo de treinamento técnico-científico e com o máximo de flexibilidade na modalidade de oferta (híbridos, a distância, sem horários fixos etc.). Em tese, cursos dessa natureza conseguem atender melhor à demanda de uma geração de trabalhadores que precisa adequar-se a um mercado de trabalho precarizado e em constante transformação e que não pode, por isso, despender muito tempo para a formação, uma vez que corre o risco de estar obsoleto ainda antes da conclusão do processo. A internalização da ideologia do empreendedor de si, subjacente ao neoliberalismo, complementa essa visão com a premissa de que o tipo relevante de formação é o economicamente vantajoso e de retorno imediato, tornando os indivíduos ávidos por cursos baratos, curtos e rentáveis. Essa tendência também fortalece políticas educacionais públicas que incentivam o enxugamento dos currículos e a formação cada vez mais tecnicista e aligeirada de professores, desacoplando-a da perspectiva de uma formação cultural mais ampla.

Assim, por influência da lógica neoliberal, a formação profissional acabou ganhando peso desproporcional no entendimento do papel social da universidade, em detrimento da formação crítico-científica e cidadã dos indivíduos. Nussbaum (2015), no livro-manifesto Sem fins lucrativos, mostra como todo esse movimento tem consequências profundas para o tipo de formação que vem sendo ofertado para as gerações atuais. Com base em longa pesquisa empírica realizada sobretudo nos Estados Unidos, na Europa e na Índia, mas que vale paradigmaticamente para muitas outras partes do mundo e, de maneira especial, para o Brasil, ela chama atenção, como já referido, para o movimento silencioso que está eliminando as humanidades e as artes dos currículos da educação básica e da educação superior. Essas disciplinas são tomadas como ornamentos inúteis pela mentalidade estreita de gestores obcecados pela competitividade e rentabilidade. Não bastasse, também perdem aceitação entre os novos “consumidores” educacionais, que preferem formação profissional barata e rápida, tendo em vista a diminuição crescente do investimento público na educação. Esse enfraquecimento das humanidades vem acontecendo, assegura Nussbaum (2015), sem que tenhamos verdadeiramente refletido a respeito e escolhido conscientemente seguir por esse caminho. Pois, trata-se, no fundo, de uma imposição da economia neoliberal, que, em sua fase da financeirização, transforma a educação não apenas em mercadoria, mas também em capital de investimento em bolsas de valores.

Se esse estreitamento formativo prosseguir, alerta Nussbaum (2015, p. 4), “todos os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros”. Tomados pela racionalidade capitalista neoliberal, continua a autora, “estamos indo atrás dos bens que nos protegem, satisfazem e consolam”, mas esquecendo-nos da “capacidade de pensar e de imaginar que nos torna humanos e que torna nossas relações humanas e ricas, em vez de relações meramente utilitárias e manipuladoras” (NUSSBAUM, 2015, p. 7).

O futuro democrático de nossa sociedade é, para a autora, a grande vítima dessa crise silenciosa. Porque, essas disciplinas “inúteis”, do ponto de vista da produtividade econômica, possuem valor inestimável para o funcionamento saudável da democracia, na medida em que fortalecem a capacidade de pensar criticamente, de transcender os compromissos locais em direção a questões mais amplas e, por fim, de imaginar, com simpatia, a situação dos outros. A democracia depende do fortalecimento e da proliferação dessas capacidades na forma de um ethos. Sem elas, perde o poder de mobilizar transformações em vista da ampliação dos direitos individuais e da qualidade de vida geral dos cidadãos, esvaziando-se como um mero sistema de criação de leis para regulação do capital.

Nussbaum (2015) deixa claro que não se trata de combater a pertinência de uma educação consequente em termos econômicos, da mesma forma que não se trata de combater a gestão empresarial das instituições e, enquanto isso, representar adequadamente um uso mais racional dos recursos. Trata-se, sim, de denunciar a redução da formação ao aspecto econômico e a interferência perniciosa de princípios gerenciais nas finalidades educativas das instituições de ensino. Ou seja, a questão, além do conteúdo específico da educação que vem sendo oferecida, refere-se principalmente ao valor daquilo que ela vem deixando pelo caminho.

Passando do discurso mais amplo da política educacional para os discursos pedagógicos, observamos que essa redução da noção de formação ao atendimento das finalidades econômicas profissionalizantes vem acompanhada da ascensão daquilo que Gert Biesta (2013) chamou de “linguagem da aprendizagem” em prejuízo de uma mais ampla “linguagem da educação”. Também aqui opera um reducionismo que perde de vista o aspecto humano e social da formação, passando a concentrar-se em uma concepção estreita da aprendizagem centrada apenas em competências e habilidades.

Dito de um modo talvez caricatural, o ensino passa a ser entendido como facilitação para o aprendizado ou, de forma ainda mais reducionista, para a busca do êxito em avaliações de larga escala. Tem-se, em decorrência, a educação como produção de oportunidades de aprendizagem e o estudante como aquele que aprende o que é ensinado na linguagem da aprendizagem como treinamento. Há, nisso, um nítido enfraquecimento dos aspectos relacionais e sociais da educação e, o que é mais preocupante na direção da formação para a cidadania democrática, o enfraquecimento de processos educacionais voltados à preparação para o pensar por si mesmo. Por outro lado, essa guinada vem ao encontro da visão neoliberal que almeja submeter a educação aos princípios da eficiência, uma vez que a aprendizagem compreendida conforme essa lógica é mais afeita à mensuração.

Por conseguinte, com o intuito de garantir maior retorno dos investimentos em educação, criam-se instrumentos de avaliação que quantificam e ranqueiam os índices de aprendizagem, como os propostos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Essa abordagem, cujo locus de origem é a educação básica, não tardou em estender sua influência também para a educação superior, em que a mensuração do aprendizado que se concentra em áreas técnico-científicas, importantes para o ranqueamento das instituições, acaba por reforçar ainda mais o descaso com aquelas capacidades associadas às humanidades e às artes, difíceis de verificar e, mais ainda, de quantificar.

Concentrando seus esforços em uma formação profissional enxuta, marcada conceitualmente pela linguagem da aprendizagem, a universidade busca acompanhar a dinâmica de rápida transformação que afeta a sociedade atual, ao custo de comprometer o ideal da liberdade acadêmica, há muito enaltecido como traço essencial da universidade moderna (HUMBOLDT, 2002). A própria pesquisa, no Brasil ainda feita predominantemente nas universidades, encontra-se limitada em grande parte pela lógica do capitalismo neoliberal, tanto pela dependência de financiamento, como também, em decorrência, pela necessidade de produzir conhecimentos úteis ao capital, que possam ser, direta ou indiretamente, vertidos em novos produtos comercializáveis. A busca livre e desinteressada pelo conhecimento é um tipo cada vez mais raro de privilégio que, quando contrastado com os valores dominantes, tem dificuldade até de se justificar eticamente.

Existem nas universidades grupos que ainda remam contra a correnteza, fazendo pesquisa independente dos interesses mercantis e oportunizando uma formação ampliada, não restrita às fronteiras desta ou daquela prática profissional. Essas exceções não invalidam, no entanto, a leitura geral de uma tendência ao reducionismo da formação e da pesquisa na universidade, que, quanto mais comprometida com a lógica neoliberal, mais distante fica da possibilidade de contemplar também aspectos de uma formação humana e cidadã, comprometida com temas relacionados a crises como as das mudanças climáticas e as das desigualdades sociais (assuntos que apenas muito timidamente aparecem no ensino e na pesquisa de nossas universidades, em que pese sua urgência).

Que um sentido ampliado de formação tenha de ser acolhido pela universidade em substituição daquela formação reducionista que viemos caracterizando é uma questão que ainda precisa ser enfrentada. O momento parece mais do que oportuno para fazê-lo, considerando a reviravolta social em curso, decorrente sobretudo do impacto da revolução digital que transforma, por um lado, a produção e circulação do conhecimento e, por outro, o tipo e a demanda de trabalho.

O estrondoso desenvolvimento da microeletrônica, associado à melhoria da qualidade e à ampliação do acesso à internet, tornou obsoleta uma das funções tradicionais da escola e, principalmente, da universidade enquanto guardiãs e propagadoras do conhecimento. Com algumas exceções, o conhecimento encontra-se hoje em dia disponível em amplas e diversas bases de dados, a maior parte delas de livre acesso para qualquer pessoa conectada à rede mundial de computadores. Há, além disso, um número crescente de cursos e palestras disponíveis para serem usufruídos a qualquer tempo, demandando baixo ou nenhum investimento financeiro.

Nesse cenário, que já vem se constituindo há décadas, começam a proliferar discursos que questionam abertamente a relevância de se fazer um curso superior, sobretudo da parte daqueles incapazes de vislumbrar o sentido mais amplo da formação universitária para além do simples repasse de conhecimento. Tais discursos foram coroados, mais recentemente, pela decisão de algumas empresas, entre elas gigantes como a Google e a Amazon, de não mais exigir diploma universitário como critério para novas contratações4s razões apresentadas como justificativa dessa decisão, estão o reconhecimento de que habilidades e conhecimentos não se vinculam necessariamente à titulação e, também, a dificuldade de os cursos universitários acompanharem em ritmo acelerado as mudanças que afetam as diferentes áreas de atuação profissional, em vista do que as empresas acabam investindo na capacitação in company.

Um baque ainda maior para o modelo de universidade centrado na formação profissional é a ameaça que acompanha a terceira onda de automação viabilizada pelas conquistas mais recentes no campo da inteligência artificial. Como faz notar Harari (2018), no capítulo que dedica ao tema do trabalho em 21 lições para o século 21, diferentemente do que aconteceu nos processos anteriores de automação, agora a mão de obra substituída por algoritmos dificilmente encontrará espaço suficiente em outros setores para seguir trabalhando. Quando, por exemplo, na segunda onda de automação, o trabalho manual nas fábricas passou a ser feito predominantemente por robôs, surgiram postos de trabalho no setor de serviços que requeriam o tipo de habilidade cognitiva que só os humanos possuíam, como aprender, analisar, comunicar e compreender as emoções humanas. Agora, no entanto, à medida que programas inteligentes aprendem a lidar com essas tarefas até então tipicamente humanas (análise e resolução de problemas, comunicação etc.), aqueles que perdem seus empregos vão ficando pelo caminho, sem um campo de atuação exclusivamente humano para onde possam migrar com sua mão de obra.

Essa terceira onda de automação já está em curso. Podemos trocar nosso plano de telefonia, fazer compras e abastecer o carro sem o auxílio de qualquer atendente humano. Há programas, alguns até mesmo disponíveis ao grande público, capazes de produzir textos autorais e outros que até fazem arte. Isso tudo é apenas o alvorecer do desenvolvimento da inteligência artificial. Ao longo desse movimento, muitos novos e diversificados postos de trabalho acabarão surgindo (operadores de drones, analistas de dados etc.), mas dificilmente serão em quantidade suficiente para compensar aqueles que desaparecerão e, além disso, provavelmente demandarão alto nível de qualificação que não poderá ser prontamente adquirido pela massa de novos desempregados.

Embora seja muito difícil prever todas as consequências dessa transformação em curso no mundo do trabalho, o pouco que já podemos observar dá indícios de uma crise que se instala no seio do modelo de formação universitária que se tornou hegemônico nas últimas décadas, cuja diretriz principal no ensino é a transmissão de pacotes de conhecimento direcionados à capacitação para atuação em profissões específicas. Ao tornar caduco esse modelo de formação reduzida, as transformações em curso também põem em xeque o valor da instituição que o promove. Por esse caminho enviesado, surge, no entanto, a oportunidade de a universidade repensar sua função social e, sobretudo, o tipo de formação por ela promovido.

O enfrentamento dessa iminente instabilidade no mundo do trabalho, bem como daquela “dessimbolização” de que fala Dufour (2005), geradora de sujeitos precários, demanda uma contrainvestida para recuperação da dignidade dos indivíduos e de ressimbolização da cultura, de tal modo que se possa também fazer o enfrentamento do conjunto mais amplo das crises deflagradas pela expansão predatória da lógica neoliberal. Em vista disso, talvez, hoje, mais que em qualquer outro tempo, seja preciso promover a formação ampliada dos indivíduos para que possam enfrentar as provações de um mundo cada vez mais incerto, capacitando-os para um posicionamento crítico e responsável em favor de uma vida significativa e de uma sociedade mais justa. Para dar conta desse desafio, será decisiva a atuação das instituições, entre as quais a universidade. Cabe, então, a tarefa de pensarmos, política e academicamente, que universidade e que formação estará à altura dessa tarefa e, no nosso caso específico, que filosofia da educação pode contribuir para repensar a própria ideia de formação que ocorre no contexto universitário atual.

A Modo de Conclusão: Tarefas Formativas Colocadas à Universidadepor uma Filosofia da Educação Transformada

Oferecemos, nos dois tópicos anteriores, um breve diagnóstico de época do neoliberalismo atual, desdobrando-o em duas dimensões: uma econômico-político-social mais ampla, e outra, especificamente educacional, focada na questão da universidade. No que se refere à primeira dimensão, destacamos, do ponto de vista filosófico (antropológico-ontológico), o modo como o sujeito contemporâneo é assujeitado à figura empobrecedora do empreendedor de si mesmo, que para poder cumpri-la precisa desfigurar-se em sua dimensão propriamente humana, uma vez que nega ou limita excessivamente sua liberdade para poder cumprir com as exigências de competição desenfreada, de eficiência reducionista e de lucratividade cega. Essa desfiguração ontológico-antropológica do sujeito é acentuada pelo predomínio da economia de mercado dirigida pelo capital financeiro.

O capital financeiro deixa mover-se inteiramente pela ideologia neoliberal, que pretende colocar o Estado e o próprio governo unicamente a serviço da financeirização privada. Como resultado desse amplo processo, destacamos a barbarização cultural crescente e seus efeitos destrutivos no espectro especificamente político. Também frisamos, nesse contexto, como uma das consequências destrutivas da ideologia neoliberal, a redução da noção de democracia ao “método de governo”, ignorando, com isso, a dimensão ético-política ampla, plural e rica que a constitui, enquanto forma participativa de governo e, propriamente, como forma de vida. A depreciação da dimensão ético-política da democracia se faz acompanhar pelo crescente enfraquecimento da esfera pública, dialógico-participativa, concebida desde as sociedades republicanas modernas como âmbito de constituição legítima do comum.

O diagnóstico dessa dimensão mais ampla do neoliberalismo preparou o terreno para a compreensão da dimensão mais específica do âmbito educacional. Grandes reformas educacionais mundiais do ensino superior, como aquelas realizadas especialmente na Alemanha e nos Estados Unidos, precursoras do que também vemos acontecer com toda força no Brasil, promovem o desaparecimento progressivo do conhecimento crítico-reflexivo nos currículos universitários, resultando no próprio enfraquecimento da ideia ampla de formação humana, voltada à preparação do exercício democrático da cidadania. A colonização neoliberal crescente da educação conduz a uma formação excessivamente profissionalizante, voltada ao atendimento de demandas mercadológicas transitórias, em menosprezo ao fortalecimento de formas de vida responsáveis e comprometidas social e politicamente com o bem comum, com os outros e com a questão climático-ambiental.

Em síntese, podemos concluir, como ideia diretriz da exposição dos tópicos anteriores, que a crise e os limites do neoliberalismo revelam, na prática, a incapacidade de o mercado ser o centro e o princípio articulador da sociabilidade e, também, de dar conta do grave conjunto de crises (ambiental, sanitária, bélica, social – desigualdade, fome, refugiados, laboral, seguridade social etc.) que coloca em risco a civilização atual e o próprio planeta. Considerando tal diagnóstico de crises e mudanças geopolíticas, demarcamos, ainda no primeiro tópico, a urgência, nos tempos atuais, de se repensar a difícil relação envolvendo mercado, Estado, governo e sociedade, pondo como agenda do dia o debate sobre a responsabilidade social tanto do Estado como do governo, servindo isso também como princípio orientador da relação do Estado com o mercado e com a sociedade. É no âmbito dessa transformação mais ampla que se torna possível retomar o sentido público da educação como bem comum, atribuindo ao próprio Estado o papel de garanti-la.

Logo, podemos nos perguntar: qual é, então, o papel da filosofia da educação? Tem ela ainda alguma tarefa relevante a cumprir? Ela não pode mais querer arvorar-se para si a pretensão metafísica de ser indicadora de lugar para a cultura como um todo nem, menos ainda, querer determinar de modo vertical a maneira ética e política das mais diferentes formas de exercício profissional. No contexto de sociedades cada vez mais plurais e complexas, nas quais nenhum âmbito do conhecimento humano tem o monopólio da última palavra, a própria filosofia já perdeu faz tempo, pelos menos desde Hegel, a condição de ser a prima ciência. Em vez disso, ao renunciar à condição de indicadora de lugar, ela pode assumir a condição mais modesta de intérprete mediadora, esforçando-se, desse modo, para colocar em diálogo, entre si, a pluralidade cultural e profissional e as diferenças singulares que a constituem (HABERMAS, 1999, p. 9-28; DALBOSCO, 2007, p. 27-52; DALBOSCO, 2010, p. 179-210).

Ademais, abrindo mão da pretensão de fundamentação última, a filosofia pode assumir uma noção mais fraca de racionalidade, capacitando-se para interagir com os resultados do diagnóstico do tempo presente, construído criticamente pelo trabalho interdisciplinar das ciências humanas e sociais, de maneira especial pela crítica histórica, econômica, sociológica, jurídica e literária (história, economia, sociologia, direito e literatura). Também é o conceito fraco de racionalidade inerente à condição de intérprete mediadora que permite à filosofia atualizar o próprio conceito de formação humana, despindo-o de seus “restos” metafísicos fundamentalistas e deixando de lado, ao mesmo tempo, a postura prescritiva em relação ao ethos das mais diferentes profissões. Pois, em tempos atuais, não cabe à filosofia em geral nem menos ainda à filosofia da educação de modo particular querer determinar prescritivamente como cada profissional deve agir em sua área de atuação específica, nem querer impor uma ideia de cidadania democrática. Tal ideia, como ampliação necessária da formação profissional, precisa ser construída de maneira dialógico-participativa, com base na escuta e na pergunta de fundo hermenêutico.

É dessa mudança paradigmática que brota uma filosofia da educação transformada, capaz de assumir ao menos três tarefas principais: a primeira repousa no trabalho crítico-conceitual de atualização da ideia de formação; a segunda diz respeito à reivindicação incessante, com o apoio interdisciplinar das ciências humanas e sociais, do retorno, no currículo da educação escolar e universitária, da ampla formação concebida em uma perspectiva pós-humanista5; e, por fim, a terceira tarefa consiste em levar adiante, de maneira crítico-interpretativa, na condição de uma filosofia da educação como intérprete mediadora, o inesgotável tensionamento entre formação humana e formação profissional. Vejamos, separadamente, cada uma dessas três tarefas.

No que se refere à primeira tarefa, esta pressupõe o diálogo crítico e criativo com a tradição filosófico-pedagógica clássica, retendo dessa tradição referências que permitam pensar criticamente o nexo reducionista entre a economia neoliberal de mercado e o paradigma da aprendizagem, dominado pela linguagem das competências e habilidades. Nesse sentido, há um fio condutor definido na tradição filosófico-pedagógica, que se inicia com a paideia grega e chega até nossos dias, passando pela humanitas latina e pela Bildung alemã, que concebe a formação em sentido amplo, não voltada exclusivamente para o exercício somente de um ou de outro ofício determinado, mas sim para a vida como um todo. Por conseguinte, torna-se decisivo desconstruir teoricamente a noção de competência que avaliza a ideia reducionista de formação profissional, resgatando do diálogo crítico com a tradição filosófico-pedagógica a noção de capacidade, ancorando-a na ideia de formação entendida precisamente como o desdobramento educacional da pluralidade das próprias capacidades humanas6.

De qualquer forma, podemos reter do diálogo crítico com essa longa tradição o papel teórico que a ideia de formação possui: assegurar a tensão, indispensável para a constituição plural do si mesmo (self/selbst), entre coerção e liberdade (KANT, 1998), ou entre adaptação e resistência (ADORNO, 1971). Em um contexto socioeconômico e político-cultural, no qual quase tudo tende a se orientar para a coerção e adaptação, visando fortificar diferentes formas de assujeitamento humano, torna-se decisivo investigar o sentido amplo de educação como prática de liberdade, revelando sua importância à formação do pensamento crítico-reflexivo das novas gerações, pois uma das variantes do sentido amplo de educação repousa em sua dimensão ético-estética, na qual a educação encontra a própria ideia de formação e se embrica profundamente com ela, tornando-se quase que uma só ideia7.

Também como tentativa de síntese produtiva dessa longa tradição, encontra-se a hermenêutica gadameriana, alicerçada na capacidade de escutar e perguntar (GADAMER, 1999a). É esse sentido amplo de formação que precisa ser apropriado reconstrutivamente e ser colocado não em oposição negadora, mas em confronto crítico-interpretativo permanente com a formação profissional especializada8. Ora, é esse tensionamento permanente entre formação humana e formação profissional que faz brotar referências ético-políticas indispensáveis para a preparação do exercício democrático de uma profissão cidadã. Igualmente, é de tal tensionamento que surge a compreensão dos limites inerentes ao paradigma da aprendizagem orientado estritamente pela lógica da economia neoliberal de mercado e centrado na formação profissional tecnicista com fins voltados predominantemente à concorrência, eficiência (desempenho) e lucratividade.

A segunda tarefa, referente ao retorno no currículo da educação escolar e universitária da formação em perspectiva pós-humanística ampla, é tão complexa e difícil quanto a primeira. Ela exige, antes de tudo, o empenho em rever e revogar, quando for o caso, o núcleo das reformas educacionais autoritárias que conduziram à eliminação progressiva das humanidades nos currículos da educação básica e superior. Isso só é possível, no entanto, no bojo de lutas políticas mais abrangentes de retomada da dimensão pública da educação e, com ela, do papel do Estado como agente garantidor insubstituível da educação pública de qualidade. A concretização desse pano de fundo político-estrutural permite avançar no trabalho investigativo sobre o sentido formativo do ensino, repondo novamente o debate a respeito da finalidade da educação (para que educação?) e seu papel ético-estético-político na formação das novas gerações. Tal debate constrói sua solidez com base em um intenso trabalho investigativo que permite projetar a escola e a universidade muito além do sentido empresarial, redutor da relação pedagógica professor-aluno à mera relação mercadológica empresário-cliente.

Por fim, no que tange à terceira tarefa, como intérprete mediadora, a filosofia da educação, deixando-se inspirar pela longa tradição hermenêutica, pode levar adiante, de maneira crítico-interpretativa, o inesgotável tensionamento entre formação humana e formação profissional. De tal inspiração, brotam dois princípios ético-formativos, atualmente quase esquecidos na prática epistemológico-pedagógica de formação das novas gerações: a escuta e a pergunta. A ampla despolitização democrática levada a cabo pela governamentalidade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016; BROWN, 2019) também atinge em cheio o mundo acadêmico, fortalecendo posturas autoritárias à medida que deforma as capacidades eminentemente humanas de escutar e perguntar. Desse modo, o diálogo crítico com a tradição intelectual faz ressurgir a escuta e a pergunta com dois núcleos constitutivos de uma Bildung atualizada (rejuvenescida), que permite oxigenar a práxis acadêmica em suas mais diferentes dimensões.

Na contramão do dispositivo neoliberal de governamento autoritário da vida, das profissões e de muitas instituições, essas duas capacidades humanas fundamentais à vida social (capacidades de escutar e de perguntar) possibilitam, portanto, a indispensável postura de abertura em direção ao outro, permitindo que cada um seja reconhecido no outro e se prepare honestamente “para dar respostas exigidas pela pergunta do outro” (FLICKINGER, 2010, p. 53). Essa ideia posta por Flickinger (2010) de tomar a sério a pergunta do outro é considerada pelo próprio Gadamer (1999b) como exigência ética fundamental da práxis dialógica com pretensão formativa. Em um clássico ensaio publicado na década de 1970 intitulado “A incapacidade para o diálogo”, Gadamer (1999b, p. 213) coloca como condição decisiva para que o diálogo possa assumir postura formativa o reconhecimento do outro como outro, e, para que isso aconteça, é preciso saber escutar.

Em síntese, como se pode observar, a práxis dialógica depende de um preparo constante e inesgotável da escuta, sendo precisamente nessa preparação inesgotável que repousa o próprio sentido formativo do diálogo: embora nunca estejamos suficientemente prontos para escutar, o importante, em termos pedagógicos, é o fato de estarmos abertos (disposição para abertura) para escutar o outro.

Uma filosofia da educação movida pela capacidade de escutar e perguntar – algo cada vez mais raro na práxis acadêmica contemporânea, dominada pelo empreendedorismo neoliberal embrutecedor – é capaz de despotencializar a conduta autoritária que orienta a relação interdisciplinar entre as áreas do conhecimento. Tal postura filosófico-formativa torna-se mais adequada para respeitar a singularidade de cada profissão, provocando-a, simultaneamente, a pensar seu exercício profissional específico como algo inserido na perspectiva cultural, ética e política mais ampla, pois é pela condução dialógico-participativa que o tensionamento entre formação humana e formação profissional pode desaguar na cidadania democrática, a ser ela própria reinventada pela escuta ativa, questionadora e participativa de cada nova geração.

Em suma, esperamos ter contribuído para mostrar, neste ensaio, as imensas dificuldades e desafios que permeiam o cenário educacional contemporâneo. A mesma força destruidora que o avanço neoliberal exerce nas diferentes esferas da sociedade também se faz notar cada vez mais no âmbito educacional, transformando, desse modo, a olhos vistos, a escola e a universidade em empreendimentos empresariais lucrativos. Essa força só pode ser contida pelo revigoramento democrático da esfera pública, o qual depende da ideia ampliada de formação, que se torna força movente das capacidades humanas, alicerçadas no pensamento crítico, na cidadania universal e na imaginação criativa. Afinal, da dimensão formativa da educação, isto é, de uma educação formadora, que brota a força ético-estético-política capaz de resistir à barbarização crescente provocada pela ideologia neoliberal e que chega cada vez com maior força também à universidade.

Notas

Referências

Pensatas para o fim de semana

Saúde, moradia, educação, transporte, cultura... onde já se viu... Reforma fiscal não é pra isso...

Lula eleva o tom: taxação de fortunas, nova globalização, mercado deve exigir juros mais baixos, esquerda precisa retomar discurso contra a ordem vigente...

# Matérias do Opera Mundi e do Uol.

# Carlos Lacerda (1914-1977)

"O Sr. Getúlio Vargas não pode ser candidato; se for candidato, não pode ser eleito; se for eleito, não pode tomar posse; se tomar posse, não pode governar"
(Getúlio Vargas suicidou-se em agosto de 1954)

Conspiração em marcha?

Penso que uma malha narrativa fundada na evidência de uma crise fabricada está sendo montada em torno do governo Lula com o claro objetivo de torná-lo inviável. É uma estratégia implementada desde que o presidente deixou a prisão a que foi submetido pelas ilegalidades da Lava Jato até sua vitória nas eleições 2022. O registro desse processo pode ser observado na linearidade com que a pauta econômica do governo vem sendo atacada pelos três maiores jornais do país e pela forma como esse ataque se desdobra na pauta conservadora do Senado e da Câmara e em segmentos da sociedade civil. O senso comum respira esse clima e põe em perspectiva o ponto futuro de um golpe (# leia mais)

Uma janela temporal

Governo Lula — um tudo a fazer e um legado a defender. Ion de Andrade, A Terra é redonda (expandir)

Completados dois anos do governo Lula, o que ocorrerá em sete meses, para além das expectativas frustradas que tenhamos tido até aqui, a agenda das lutas não vai mais poder ser a da pressão para que o governo faça “algo novo” em termos de projeto de sociedade que possa ser capaz de consolidar a sua viabilidade eleitoral. E daqui até lá, não haverá coelhos saindo da cartola.

A agenda que vai se impor vai ser a de garantir que realmente aconteçam os resultados das iniciativas sociais do governo, (Periferia Viva, Territórios de Cultura, Minha Casa Minha Vida com as suas bibliotecas, os 180 Institutos Federais, etc.) e de defender esse legado e a possibilidade de sobrevivência eleitoral do governo.

No entanto, mesmo diante dessa resignação que estou antecipando aqui e que se tornará ao longo dos próximos anos sinônimo de sobrevivência, temos uma pequena janela temporal agora onde certa visão de futuro ainda pode ser expressa, como um último drink antes da resignação.

Quero aproveitar esses últimos momentos que nos restam de liberdade de crítica, antes do que será o campo de batalha eleitoral de 2024 e, sobretudo, o de 2026, para dizer, de forma muito sumária, que o governo como um todo parece não ter entendido algumas coisas essenciais que são responsáveis, conforme vejo, pelo momento de incertezas e desorientação pelo que passamos hoje.

Antes de passar ao que não foi entendido pelo governo e que poderia tê-lo feito ir mais longe na construção de uma sociedade um pouco mais justa no Brasil, vamos considerar que a fase atual da vida institucional republicana, o  que inclui o governo Lula vem tendo uma importância estratégica para a consolidação do Estado de direito e da democracia.

O governo Lula, tem sido protagonista de algo que é, nesse sentido, tão importante quanto o seu sucesso: o exercício da governança sob normalidade democrática e respeito à institucionalidade.

O Senado, por exemplo, acaba de criminalizar a apologia à tortura e à ditadura e o Judiciário se prepara para o que será para nós, enquanto sociedade, um julgamento emblemático: o da responsabilização do ex-presidente (inominável) pela trama golpista, o que assume ares de uma virada de página histórica num país em que o golpismo sempre esteve na ordem do dia.

Tendo considerado esse conjunto de variáveis, que não tocam diretamente a resultados de um governo, mas à consolidação do Estado de direito, e que podem ser suficientes para devolver as forças que elegeram o presidente Lula ao Poder, vamos ao que não foi entendido pelo governo e continua atravancando o país e infelicitando o povo.

A economia não é um fim em si

A economia e as finanças públicas não são boas por si só, não adianta ser a oitava economia, ou ser elogiado por agências de classificação de risco e bancos. A economia é tão somente o aspecto máquina de um processo social que é essencialmente político. É como ter um carro novo e poder encher o tanque. Mas a questão central tendo o carro é saber e ter para onde ir.

Ter o carro, nesse sentido figurado, pode até gerar uma satisfação momentânea, mas ela será incapaz de sustentar o conceito político de alguém e será concorrida na sua ressignificação última, por quem se beneficiou, pela meritocracia ou pela teologia da prosperidade, como já ocorreu no passado recente, anulando politicamente os ganhos na economia.

Há quem defenda, nesse entendimento economicista, que a “saída” para o Brasil estaria numa nova industrialização, na integração econômica com a América do Sul, isso é até parcialmente verdade, mas tão somente enquanto aspecto máquina.

O que é preciso, entretanto, é mudar e saber em que mudar a vida do povo e nisso os bons resultados econômicos são apenas a premissa da sustentação de um projeto emancipatório para as maiorias, que, se estiver ausente, talvez não sirva para nada.

As políticas públicas têm que ser universais

O governo e a maior parte da esquerda, incrivelmente, não entenderam a necessidade de universalizar as políticas públicas, razão por que todas elas começam no seu enunciado, excluindo os que vão ficar de fora, servindo apenas para abastecer de argumentos aqueles que ficam satisfeitos porque há “muita coisa boa” sendo feita.

É assim: (a) nos novos Institutos Federais, cerca de 180 que atenderão no máximo 360.000 alunos de um universo de sete milhões e duzentos mil matriculados no Ensino Médio (5% do total) sem sinalizar um novo modelo para as demais escolas de Ensino Médio nos estados, o que as vulnerabiliza fortalecendo o modelo autoritário que emerge nessa disputa — as escolas cívico militares; (b) no combate à fome, que está limitado, segundo a Portaria 972 do MDS a cidades acima de 300.000 habitantes (clique aqui para ler) ou (c) nos repasses para o piso da enfermagem cuja ausência deixou as Instituições de longa permanência de idosos filantrópicas ao Deus-dará.

Essa vocação do Estado brasileiro, (quando está em mãos “piedosas” como é o caso hoje) para a caridade (um século XVIII) e não para a política pública universal, (o século XX) fenômeno que eu tenho chamado de melhorismo, sobrecarrega a dita comunicação do governo que se tornou mais estratégica do que deveria ser.

A comunicação tem que tentar fazer saber ao povo que não se beneficiou com uma dada política, da existência, sim, de terceiros beneficiados, noutras cidades e regiões e até, quem sabe, em outros bairros da sua própria cidade… (como se matar a fome de um pudesse aliviar a fome de outro através, não de comida, mas de uma narrativa)…

Ora, obviamente que no cenário de tragédia social do Brasil, que o que fala mais alto é a experiência vivida pelo povo da política oferecida e experimentada e não o ouvir dizer. O ouvir dizer só é suficiente para a classe média de esquerda que já resolveu sua vida no mercado, comprando tudo o que precisa e entende a política como um “já está bom, só falta convencer a ralé” sendo esse o papel estratégico a ser exercido pela comunicação.

A classe média de esquerda é um apparatchik que sabota a ascensão do povo

Essa classe média de esquerda entende que tudo já está ótimo e que é preciso tão somente fazer o povo pobre saber (cerebralmente) que o governo Lula está fazendo todas as políticas necessárias e “tudo o que pode”.

Como disse um pensador, não se pode analisar alguém pelo que ele acha que é, mas pelo que ele é. Tendo isso em vista, temos que considerar que, por uma questão de sobrevivência de classe, a classe média de esquerda tem que manter a concorrência com os de baixo num certo limite e não se interessa, nem é capaz de entender que o que o governo realmente precisa para galgar popularidade e credibilidade é que povo saiba, visceralmente que as políticas existem pelo seu acesso universal a elas.

Dessa forma 180 Institutos Federais são suficientes e ninguém sinaliza criticamente ao próprio governo que isso alcançará, no máximo, 5% dos alunos matriculados no Ensino Médio e que haverá mais não atendidos do que atendidos, o que pode fazer dessa iniciativa, que poderia ser a semente de uma política universal a ser ampliada ano a ano, num material inservível para as eleições!

Além disso, o fato de que o povo possa eventualmente não valorizar essa política ou que possa até, in extremis, preferir as escolas cívico-militares, é um problema de comunicação do governo, não sendo, absolutamente nem um problema de acesso aos Institutos Federais nem da indefinição de uma proposta definitiva e cidadã para o Ensino Médio, o que politizaria as maiorias!

Essa dimensão da politização escapa ao governo e aos setores da classe média de esquerda que o hegemonizam e o influenciam (é um apparatchik) fazendo o governo achar que tem um problema de comunicação quando o que falta é fazer chegar às políticas a todos, como o SUS pelo menos tenta fazer através da sua abordagem territorial da distribuição universal dos dispositivos de Saúde…

A emancipação das maiorias

O governo não entende que é o despertar das maiorias, ou a replicação da cidadania aos milhões o único lastro durável da democracia.

Ideal pequeno burguês, sempre à mercê de uma ressignificação pela meritocracia ou pela teologia da prosperidade, o alvo a atingir nos discursos é o empreguinho, o carrinho e a casinha, nunca é a participação popular na tomada de decisões e o empoderamento do povo pelo cumprimento das suas necessidades de inclusão social por meio de uma democracia vibrante e cidadã: isso nunca está no cardápio.

Não há um projeto de desenvolvimento qualitativo da vida das pessoas fundamentado no desenho de uma emancipação baseada na oferta de respostas aos problemas locais, (é onde as pessoas vivem) que são complexos variados e graves, com a devida participação social, peça chave da conversão do recebedor passivo da política em cidadão empoderado e protagonista…

Para ilustrar, noutro dia pensei ser do governo um projeto de iluminação noturna de uma aldeia indígena com painéis solares que me apareceu no Instagram. Antes de me entusiasmar descobri que o financiamento vinha de uma fundação privada. Se fosse proveniente do governo, encarnando a solução de uma necessidade enunciada pelos índios, a iniciativa teria o papel de politizar aquele povo indígena tornando-o protagonista do seu destino. Vindo de uma fundação privada, a benfeitoria corre o risco, a depender de quem tenha financiado, de produzir o efeito oposto…

Centrado no protagonismo político da tecnoburocracia de Brasília, não se previu uma “infantaria” para enfrentar essa problemática local das periferias e zonas rurais, que poderia ser coordenada por um urbanista no território, com orçamentos territoriais definidos, focado no planejamento territorial (da aldeia, zona rural ou do bairro) para a definição de um projeto local de desenvolvimento para a qualidade de vida e a contemporaneidade, capaz de incluir melhorias habitacionais, equipamentos sociais e políticas para a cultura, o esporte e o lazer (passando, por exemplo, pela solução da iluminação noturna das aldeias indígenas) e comprometido com o acesso universal…

Parece que achamos que a guerra política se ganha tão somente com artilharia pesada e publicidade. No entanto, qualquer guerra só se ganha, como é óbvio, com a ocupação do território.

O SUS tenta ocupar o território e poderia inspirar o governo. Mas não há ninguém realmente interessado em estudar sobre como aquilo que é obrigatório para o SUS (o acesso universal à saúde) modelou uma gestão e um financiamento e poderia inspirar o acesso, para além da caridade, a outros direitos, como o estratégico direito à cidade…

O Programa Periferia Viva do Ministério das Cidades, começa a se aproximar disso, mas há uma tremenda inércia a vencer.

Finalmente, dito tudo isso, em dezembro de 2024 se iniciarão os dois últimos anos do governo Lula.

O esforço de prospecção do futuro, de como poderíamos ser um país melhor, de como tudo isso estaria ao nosso alcance, das críticas e indignações de cada um de nós vão ter que ceder lugar à defesa do governo e à garantia de que os resultados do que foi plantado — ainda sem ser um projeto estruturante para o governo como um todo — possam emergir.

Sendo realista, a força da inércia do agora dificilmente permitirá mudanças de rumo ou redesenhos profundos na macropolítica do mastodonte que é o governo federal hegemonizado pelos gestores da classe média de esquerda para quem já deu.  

A sorte está lançada. Preparemo-nos para lidar com isso, porque bom ou não, terá sido o que de melhor teremos conseguido fazer coletivamente nesse interminável século XVIII em que estamos.

*Ion de Andrade é médico, professor universitário e membro da Rede BrCidades.

Manifestações contra o PL do estupro ganham as ruas do país

Em São Paulo e em outras cinco capitais, mulheres também saem às ruas contra projeto fundamentalista que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. 

# Leia na Rede Brasil Atual

Apesar de decisão da ONU, Israel mantém ofensiva em Gaza

# Opera Mundi

O debate sobre poliamor deve ir além da exclusividade sexual e incluir o senso de comunidade (Folha)

# A Revolução segundo Judith Buttler

Um encontro com a norte-americana e suas reflexões sobre a guerra contra o gênero, Kafka e os ataques do Hamas a Israel. Thiago Ferro (Piauí)

O que há de novo?

Quem será o vice na chapa de Nunes?

Pois então...

Quem será o vice de Nunes? Resposta difícil... Em primeiro lugar, é preciso saber quem é que topa aceitar o encargo de associar seu nome ao do prefeito, um das maiores nulidades da safra de "lideranças" fabricadas no vazio do pós-bolsonarismo. Em segundo lugar, pela personalidade subserviente que Nunes tem: incapaz de qualquer opinião própria sobre qualquer assunto, dono de um perfil envergonhado de si mesmo e inseguro, um candidato à vice-prefeitura estaria na posição do subalterno que corre atrás do titular o tempo todo para corrigir as derrapadas que todos sabem que Nunes dá. Neste caso, uma ironia: o fantoche é o próprio prefeito... com Bolsonaro, este sim, coordenando os movimentos do boneco - o vice. É preciso ter uma personalidade absolutamente de aluguel para aceitar uma situação dessas... Em terceiro lugar vem a dificuldade maior: quem será o vice de Nunes? Qual é o nome dele?

O atual prefeito não tem qualquer densidade política - e sequer autonomia ou autoridade pessoal - para determinar um nome de sua escolha, até porque não tem a menor ideia de quem poderia aceitar um convite seu. Nunes é um peixe fora d'água... Justamente por conta desse perfil, é uma personalidade absorvente: aceita tudo o que lhe mandam aceitar. Nesta situação específica, volta à cena Bolsonaro, agora com o alinhamento de Tarcísio, atuando ambos pela indicação de um ex-coronel da Rota, Ricardo Mello Araújo, uma espécie de garantia de que se repetirá no nível do município o fundamento da Segurança Pública posto em prática na baixada santista: mate primeiro, pergunte depois. É possível que a indicação até faça crescer a performance de Nunes nas pesquisas, levando em conta esse colapso fascista que toma conta da classe média sempre que um arrebatado PM pareça um justiceiro... Mas é preciso que o eleitorado (em especial o da periferia) avalie o impacto que um nome desses terá na contabilidade dos "confrontos' que seus habitantes vão enfrentar, claro... os os que sobreviverem.

 Longe dos cargos, mas perto do poder, Doria renovou as energias para fazer o que mais gosta de fazer..

Doria? Está de volta...

Ex-prefeito, ex-governador, ex-bolsonarista, ex-candidato à candidatura à Presidência, ex-amigão de Moro... procura espaço ao lado de Tarcísio... de quem certamente será ex-alguma coisa logo que for possível (matéria do jornal O Estado de Minas).

Enrico Berlinguer e a convicção democrática

Depois de Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer certamente foi o principal dirigente do Partido Comunista Italiano. Sua astúcia política e severidade ideológica levou-o a interpretar o contexto dos anos 70 como favorável à remodelação orgânica e estratégica do PCI no movimento que ficaria conhecido como Eurocomunismo. Sua morte em 1974 interrompeu esse projeto... e as consequências disso foram dramáticas para toda a cena política de esquerda, ainda hoje...

# Leia o artigo de Mario Mondaini em A Terra é redonda e matéria de Carta Capital por ocasião do centenário do dirigentes comunista italiano em 2022: Berlinguer e a defesa do valor universal da democracia.

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Sala Genocídio em Gaza
(Os crimes de Israel contra os palestinos)

Sala Giordano Bruno

(O livre pensamento e a descoberta do mundo)

Intermitências

"Por todos os pretos"

# "Vini Jr celebra condenação de torcedores  na Espanha a 8 meses de prisão e probição de ir a estádios por 2 anos". Para Sakamoto, o jogador brasileiro ofendido em jogo no dia 21 de maio, venceu, mas não calou os racistas: "times de lá e daqui precisam de punição" (leia aqui).

Conselho de Segurança da ONU aprova cessar fogo em Gaza

Decisão isola Israel e deixa mais próximo o reconhecimento internacional de uma nação palestina no Oriente Médio (leia mais no GW)

As luzes se apagam na Europa?

# Página do site com resultados e análises sobre as eleições para o parlamento europeu em 9 de junho de 2024

Noam Chomsky

O linguista norteamericano Noam Chomsky não fez nenhum comentário sobre a guerra de Israel em Gaza, iniciada há nove meses. É um silêncio surpreendente.

De origem judaica, ele viveu num kibutz no norte de Israel em 1953.

Apesar das centenas de pedidos da imprensa mundial, não analisou o ataque do Hamas em 7 de outubro e a destruição de Gaza, porque teve um acidente vascular cerebral massivo em junho passado. Está com dificuldades na fala e o lado direito do corpo entorpecido. Chomsky é casado com a carioca Valéria. Ela decidiu trazê-lo para SP, onde o casal tem uma residência desde 2015.
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