O Projeto de Ensino Memórias do Cangaço foi concebido no início de 2021 por Uilma Maíra Queiroz Silva e por Andrey Borges Bernardes, ambos professores de História no campus Ouricuri do Instituto Federal do Sertão Pernambucano. Estiveram envolvidas na sua execução, sete turmas de Ensino Médio Integrado dos cursos de Agropecuária (03 turmas), Edificações (03 turmas) e Informática (01 turma). Todas essas turmas estudaram sobre o Cangaço em algum momento ao longo de 2021, como parte integrante do currículo de História do campus.
Este tema, levando em consideração o currículo mencionado, está inserido dentro de uma discussão mais ampla. Com o advento da República no Brasil, proclamada em 1889, os grupos oligárquicos que passaram a comandar o país a partir de um novo regime administrativo empreenderam um processo agressivo de modernização que fazia aumentar as tensões sociais, além de botar em choque diferentes setores da sociedade com formas de vida e realidades socioeconômicas muito distintas e antagônicas.
Pouco tempo depois da Proclamação, o arraial de Belo Monte, como Canudos era chamada por seus moradores, foi arrasado, pois representava para as elites políticas do Rio de Janeiro uma forma de resistência à modernização do país, um símbolo do arcaísmo e do atraso do país que deveria ser superado. Dezenas de milhares de pessoas foram assassinadas pelo Exército Brasileiro e a cidade foi completamente incendiada. O mesmo aconteceria com as cidades santas da região do Contestado, no Sul do país, já na segunda década do século XX. Mas não era só no campo que o choque entre o moderno e o tradicional ocorria. A capital da República, a cidade do Rio de Janeiro, foi palco da chamada Revolta da Vacina na primeira década do século, quando os planos de higienização urbana e social empreendidos pela prefeitura e pelo governo federal levaram a destruição de casas e cortiços para que houvesse uma remodelação urbana da capital. A obrigatoriedade de se vacinar contra a varíola foi o estopim. Para os governantes, uma massa de incultos ignorantes não compreenderia o valor da vacina e tinha que ser submetida à força. A civilização se dispunha a lutar contra a barbárie… da forma mais bárbara possível.
Dentro deste cenário de tensão entre o que se pretende novo e moderno e o que é julgado atrasado e velho, enquadramos o Cangaço do séc. XX. É certo que esse movimento de banditismo e de salteadores no semiárido nordestino já existia desde o século XIX, antes mesmo da Proclamação da República. Mas, dentro do contexto do séc. XX, o Cangaço também pode ser analisado a partir da modernização violenta do Estado brasileiro durante a Primeira República e mesmo após isso, considerando que foi durante a Era Vargas que Lampião, figura proeminente e de maior destaque do Cangaço, tendo sido notícia no New York Times, foi assassinado, anunciando o fim do movimento que aterrorizou o país.
Dizer que Lampião virou notícia no New York Times é certificar que o terror causado no Brasil não é exagero. Afora isso, o Cangaço virou um subgênero cinematográfico, uma espécie de western brasileiro, em que os cowboys e indígenas do oeste norte americano eram substituídos pelos cangaceiros e volantes policiais. O Cangaço deixou, indubitavelmente, uma marca no imaginário brasileiro, em geral, e nordestino, em particular. O caráter destemido, ousado e valente dos cangaceiros; as mil histórias de cordéis que surgiram sobre os bandos; os versos dos cantadores de feira; os padrões e motivos estéticos das roupas, adereços e adornos belíssimos do cangaço; o xaxado e as cantigas associadas ao movimento; todos esses aspectos do Cangaço tornaram-se elementos constitutivos da identidade do semiárido brasileiro. Muito embora o mesmo Cangaço também inspire revolta e reprovação, dada a brutalidade e terror disseminado pelos bandos. Até hoje, polêmicas em torno do Cangaço alimentam discussões acaloradas, oscilando perspectivas que os consideram, por um lado, bandidos sociais, espécie de Robin Hood sertanejos, e, por outro, homens perversos e sem escrúpulos.
Em razão dessas polêmicas e da fama de Lampião e do Cangaço, é comum que a população do semiárido brasileiro conheça histórias do Cangaço ou que guarde, reproduza e recrie memórias individuais e coletivas acerca deste movimento, atuante até a década de 1940. E foi esta premissa de que muitos, sobretudo as gerações mais velhas, conhecem histórias do Cangaço que nasceu a ideia que impulsionou este Projeto de Ensino: os estudantes das turmas mencionadas deveriam procurar um familiar, ou conhecido da família, que conhecesse histórias ou guardasse memórias sobre o Cangaço. O objetivo seria realizar uma entrevista sobre o cangaço, que seria gravada em áudio.
Para tanto, os estudantes participaram de uma oficina sobre realização de entrevistas. O propósito da oficina era fazer com que os estudantes percebessem o papel ativo do entrevistador em estimular e conduzir o discurso dos entrevistados, não no sentido de moldar o que se diz, mas de criar as condições para que o entrevistado deixe emergir as memórias que interessam ao Projeto. Além disso, a oficina alertou quanto aos aspectos técnicos da gravação de uma entrevista em áudio e auxiliou cada um dos estudantes a elaborar um roteiro para a entrevista que iria realizar.
Com a oficina concluída e a pessoa a ser entrevistada escolhida, os(as) estudantes passaram à gravação das entrevistas. Entre maio e setembro de 2021, foram realizadas 22 entrevistas nos municípios de Ipubi, Ouricuri, Santa Filomena e Trindade (Pernambuco), no Crato (Ceará) e em Governador Valadares (Minas Gerais). O perfil dos entrevistados é muito variado. Embora a recomendação tenha sido entrevistar pessoas mais velhas da família, ou conhecidas dela, três entrevistados (13%) tinham menos de 40 anos, enquanto seis (27%) tinham 70 anos ou mais. Cerca de 40% eram agricultores, mas dentre os entrevistados também encontramos professores, comerciantes, engenheiros, pedreiros, administradores etc. Estas breves considerações não têm, no entanto, nenhuma pretensão estatística ou de constituir uma amostra que dê validade quantitativa ao trabalho. Tão somente revela a variedade e o perfil geral das entrevistas.
De posse do material, idealizamos publicizar o conteúdo com alguns objetivos em mente: em primeiro lugar, queríamos valorizar e reconhecer o trabalho dos estudantes, tornando público o seu trabalho. Superando a passividade com que se exige do estudante que seja um receptáculo de informações, este esforço evidencia a capacidade dos estudantes, sob orientação atenta dos professores, em produzirem conteúdos ativamente. Em segundo lugar, pretendíamos evidenciar que a memória individual ou coletiva das pessoas comuns também constitui importante fonte de conhecimento. E de conhecimento válido. Esperávamos, inclusive, que esta atividade aproximasse os estudantes de seus familiares mais velhos em uma relação de troca intergeracional através da contação de histórias, prática cada vez menos comum em nossa contemporaneidade. Por fim, intencionamos criar um repositório deste conteúdo para outros interessados no tema Cangaço, para que pudessem, agora e no futuro, ter acesso a recortes e fragmentos de memórias que reproduzem e criam narrativas sobre este movimento.
Para tanto, foi criado este site, que serve como um repositório destas entrevistas. Para a construção do site, o Projeto contou com a participação cuidadosa e indispensável da professora Shayane de Oliveira Moura, recentemente redistribuída para o Instituto Federal do Ceará, campus Cedro. Aqui neste site se encontram os áudios de todas as 22 entrevistas, cujo conteúdo também foi transcrito. Em breve, as transcrições estarão disponíveis para serem baixadas e lidas.
Gostaríamos de registrar um agradecimento especial à designer do campus Ouricuri, Milena Anunciada Monteiro, que criou o lindo logo do site. Além disso, gostaríamos de saudar e agradecer aos estudantes que fizeram este Projeto acontecer, bem como aos(às) entrevistados(as) que gentilmente participaram e autorizaram a publicização de seus depoimentos. Os detalhes dos entrevistados estão na página Inicial, acompanhados das gravações. Para ver a lista dos estudantes entrevistadores, acesse a aba Quem Somos.