Carta aberta à comunidade de Tecnologia da Informação e Comunicação


No último sábado (02/04/22), o grupo Cintia, representado por suas conselheiras (assinadas ao final dessa carta) tomou conhecimento de um seminário organizado pela coordenação de pesquisa que seria promovido tanto para o público interno como externo do Centro de Informática da UFPE. Esse seminário foi divulgado nas redes sociais do CIn, e apesar de não ter ficado claro nas divulgações, tinha por objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa intitulada "Como tornar a computação atrativa para mulheres", e seria transmitida através do Youtube Oficial do CIn. A pesquisa foi realizada por cinco pessoas, das quais três são mulheres. Entretanto, o convidado para trazer o tema foi, exclusivamente, um dos professores envolvidos na pesquisa, um homem, branco, europeu. Na primeira iniciativa recente do CIn de trazer o tema de diversidade em computação para discussão, o formato escolhido foi o de palestra/exposição e essa apresentação seria conduzida exclusivamente por um homem, sem nenhuma mulher autora do trabalho e/ou da comunidade do CIn, convidada diretamente, para participar da apresentação e discussão de um tema de pesquisa que nos interessa e nos atinge diretamente. Quando acessamos o post (no qual, inclusive, há menções de referência ao nosso Instagram), os comentários negativos já estavam repercutindo, questionando o fato de que um tema de pesquisa de suma importância para toda a comunidade de tecnologia, mas que afeta diretamente as mulheres, iria ser apresentado sem a presença de nenhuma mulher.


A discussão sobre esse assunto continuou na postagem do Instagram (e outras redes sociais), mas também se iniciou dentro das listas de graduação, pós-graduação e docência do centro. Estudantes homens responderam a uma mensagem que trazia à tona essa questão, com todo tipo de invalidação do problema, na verdade, não vendo a existência de problema algum. Discutir diversidade e equidade foi comparado a fanatismo e ainda existiram falas que deixaram claro que um centro de computação sério não deveria se preocupar com quantas mulheres ou homens existem dentro do centro, apenas com algoritmos, aprendizagem de máquina e outros assuntos puramente técnicos. Além disso, no meio disso tudo, a instituição adiou o evento indefinidamente, mas não por entender ou levar em consideração algumas das sugestões que foram feitas - como convidar uma das mulheres autoras da pesquisa a estar junto ao convidado original na apresentação dos resultados ou adiar o evento para repensar um formato que fizesse mais sentido para o tema - e sim por ter exposto a situação ao pesquisador e ele ter se mostrado aberto à necessidade de discutir melhor o formato.


Dessa maneira, mais do que trazer a público nossos questionamentos iniciais relacionados ao seminário, essa carta tem a intenção de compartilhar os desdobramentos da situação, que deixaram evidentes, para quem talvez ainda não soubesse ou não tivesse entendido a discussão inicial, o que já é sabido por quem faz parte do CIn e é tocado diretamente pelas desigualdades de gênero, raça e tantas outras: não existe direcionamento, priorização, nem qualquer ação por parte da instituição para lidar com uma realidade que atinge não só a computação, mas também as demais ciências exatas - a gritante a disparidade de gênero do corpo discente, docente e de liderança/gestão. E sem ações concretas e institucionais, o centro abre espaço/favorece um ambiente que estimula a produtividade e os resultados acima/apartada/às custas das questões humanas e de justiça social.


Uma instituição que não considera de forma estratégica o contexto, o tempo no qual vivemos e as discussões sobre equidade de gênero que acontecem em todas as instituições sérias e comprometidas com justiça social em várias partes do mundo, não tem como promover equidade. Lembrando que equidade de gênero é parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU, além de estar na pauta da Sociedade Brasileira de Computação. Se for apenas olhar para o avanço da ciência e tecnologia como algo "puro" ou "neutro", desconsiderando os impactos na sociedade, os efeitos diretos do que está sendo produzido na vida das pessoas, a quem aquela pesquisa se direciona, a instituição vai apenas servir como engrenagem para deixar tudo como está: a manutenção de uma sociedade patriarcal, racista, capacitista e heteronormativa que ignora e, muitas vezes, repudia a diversidade e os benefícios amplamente pesquisados e reiterados dos seus benefícios na promoção de uma sociedade mais justa e igualitária, capaz de enfrentar e dar soluções para os problemas que afligem a humanidade e o planeta. A quem interessa manter tudo como está?


Certamente não a nós, que fazemos parte do grupo Cintia, nem às pessoas que fazem parte de grupos minorizados e são diretamente afetadas pelas desigualdades. Entretanto, é importante deixar claro que o Cintia é um grupo que nasceu da necessidade das mulheres do centro se apoiarem, serem acolhidas e ouvidas e não tem a obrigação, a estrutura e nem a responsabilidade de carregar o peso de resolver todos os problemas que o Centro de Informática contém no seu interior e seu exterior relacionados à equidade de gênero. Destacamos aqui o desejo de sermos ouvidas, algo que não ocorreu no episódio do citado seminário, e que essa escuta se materialize através de ações institucionalizadas, ou seja, através de decisões, políticas afirmativas e planejamento estratégico por parte da instituição, e não apenas de palavras. Se o Centro de Informática da UFPE deseja continuar sendo considerado uma instituição de excelência, é urgente repensar quais são e quais serão os indicadores que irão determinar seu futuro.


Esperamos que o problema inicial que provocou este manifesto e seus desdobramentos possam ser vistos como oportunidades para o centro continuar reafirmando-se como um local de excelência para trabalhar, estudar, avançar a ciência e inovar, e que esteja alinhado com objetivos humanitários, tratando com a devida atenção e prioridade causas relativas à diversidade que já vêm se mostrando importantes e promissoras em diversos âmbitos, incluindo a academia, a indústria e a política. Quando as discussões e ações relacionadas a equidade e diversidade forem prioridade e estiverem presentes no cotidiano da instituição, de forma séria, respeitosa, com dados e evidência científicas que dão suporte a um diálogo crítico, as apresentações de resultados de pesquisas dos mais diversos temas, mesmo que controversos ou questionáveis, terão um espaço mais propício. E o argumento da defesa da pluralidade de ideias não será usado sem considerar os impactos de decisões tomadas a partir dele.


Ainda temos muito por caminhar e aprender em conjunto. O grupo Cintia tem a intenção de continuar contribuindo com o CIn e, contando com o apoio do centro, promoverá ainda mais ações que visam fortalecer a comunidade incrível de mulheres na tecnologia. Também espera poder se juntar a outros grupos e coletivos que já existem ou venham a surgir ligados às demais questões de diversidade que são tão fundamentais para a pauta de gênero e, dentro da comunidade de tecnologia, muitas vezes ainda mais invisibilizados. Queremos, por fim, fazer um convite às demais instituições, sejam elas universidades, faculdades, empresas, escolas: priorizem e tomem ações concretas para promover diversidade, inclusão e equidade dentro dos seus espaços. Não temos como lidar com os desafios que se apresentam hoje, na sociedade e no planeta, continuando a privilegiar apenas uma parte da população.


Juntes iremos ainda mais longe.


Alessandra Aleluia

Ana Cláudia Lima

Carla Silva

Chaina Oliveira

Erika Pessôa

Myllena Alves