kafka e a burocracia weberiana

Franz Kafka e burocracia weberiana

Me. Alexandre Lobo

Franz Kafka e Max Weber viveram em uma mesma Europa do fim da Belle Epoque e da Paz Armada. Estados europeus experimentavam o desenvolvimento cultural e artístico ao mesmo tempo em que se preparavam para uma guerra de disputa por territórios fornecedores de matéria prima e mercado consumidor. Na Alemanha de Guilherme II, herdeira da unificação germânica do Kaiser Guilherme I e seu primeiro ministro Otto Von Bismarck, e no Império Austro-Húngaro, Weber e Kafka produziam suas obras. É essa contemporaneidade que permite uma aproximação por meio de um conceito, a burocracia. O escritor alemão preocupou-se com essa de forma sociológica, mas o escritor tcheco, de mesma formação, o Direito, expressou-a literariamente.

Max Weber entendia que o processo de burocratização era resultado da necessidade de um Estado manter e garantir o controle sobre um território. Esse processo de burocratização tornou-se necessário na era moderna. Houve desde o mundo antigo Estados burocráticos, como o Império Romano ou mesmo o Império Persa, mas foi na Era Moderna que ele se tornou predominante. Na Idade Média, as tarefas de Estado eram delegados aos nobres ligados ao rei, mas com a centralização de poder, surgiu a figura do funcionário, o burocrata, remunerado a serviço do soberano. Quanto mais extenso o domínio, maior a necessidade de burocracia. Trata-se da organização racional de tarefas, tal como uma empresa aos moldes fordista, mas com o diferencial de não ser produtiva e estar a serviço do poder político e não do econômico, como seria o caso da divisão de tarefas na indústria. O objetivo de ambas as organizações de trabalho são economia de tempo, material e eficácia na execução de tarefas.

Tudo em uma burocracia ocorre por meio de protocolos. Papéis, processos e departamentos com funções especializadas são mais numerosos conforme o Estado se expande e necessita do controle e da funcionalidade desta própria expansão. Esse controle deve garantir que a cobrança de impostos, aplicações de sentenças na esfera do judiciário, ou a atuação policial e militar tenham um centro de coordenação. Assim, funcionários, profissionais especializados, representantes do Estado, mas não membros do governo, levam a burocracia por toda a extensão do domínio Estatal. Em determinado momento, de tão grande essa estrutura burocrática, ela se torna independente do poder que a criou, ganha uma autonomia que pode até mesmo boicotar as decisões da autoridade. Exemplifica-nos Weber o caso do Czar que decretou o fim da servidão na Rússia mas sem conseguir exito1. A burocracia não respeitou tal abolição e, desta forma ela não ocorreu de imediato como previa o decreto. O Estado tornou-se dependente da máquina burocrática.

O excesso de racionalidade tornou-se irracional. Se a ciência aparentava ser completamente benéfica nos séculos XVII e XIX, já no início do século XX mostrava-se também maléfica. Na Primeira Guerra Mundial, máquinas de morte voadoras, metralhadoras e armas químicas, frutos da ciência e da racionalidade ocidental, causavam um certo desencanto da Modernidade. Em Herbert Marcuse, “A Racionalidade tecnológica revela seu caráter político ao se tornar o grande veículo de melhor dominação2. Para este autor, termos como progresso e razão devem ser analisados com a questão: “Para quem?” Não sendo neutros, são correspondentes a fins específicos. O progresso é relativo a apenas uma parte da história e aplicável apenas para classes específicas. O progresso técnico e racional da moderna sociedade industrial tem servido mais para a dominação, para a padronização e controle dos indivíduos por meio da racionalização e também pela massificação da cultura. A alienação neste processo consiste em desnaturalizar o ser humano ao moldar-lhes o objeto de desejo via propaganda. Benjamin via o desenvolvimento do progresso técnico nas artes como um princípio alienante, a reprodutividade dos bens culturais, a indústria cultural separou o artista de sua obra. Descontextualizada, fora de sua tradição, a reprodução perde a significação do original.

Com o processo de burocratização não é diferente, a funcionalidade da especialização pode levar a dependência excessiva de números protocolares, papéis, assinaturas de funcionários autorizados, e como consequência ao emperramento da própria funcionalidade. Um procedimento de estado para com seus cidadãos, ou um procedimento do cidadão, tendo em vista o uso de um benefício concedido pelo Estado, pode esbarrar ou mesmo perder-se em meio a tantas etapas, que só podem ocorrer via protocolo, para sua execução. Além de transformar-se em um poder dentro da estrutura de poder, a burocracia também cria uma certa dependência em relação a certos funcionários altamente especializados, se por um lado, todos são substituíveis, conforme o recrutamento, por outro, a ausência de um funcionário especializado em determinada função, pode atrasar um determinado processo.

Em algumas obras de Kafka tudo passa pela burocracia. Em O castelo, o protagonista tem sua vida dependendo dos tramites da burocracia do Castelo e de seus funcionários. Em O processo, como o próprio nome sugere, a vida do personagem principal prende-se em um processo e termina por meio deste. Walter Benjamin entedia que essa estrutura imponente poderia significar o poder do pai, a autoridade repressora e castigadora que na, visão da criança, o ser reprimido, parece estar em todos os lugares, vendo tudo e pronta para reprimir3. Por outro lado, pensando no conceito de super-ego freudiano, a repressão aos impulsos por parte dos pais como forma de incorporação das regras sociais, podemos unir a interpretação de Benjamin com a ideia da burocracia ser parte do Estado Alemão unificado, Bismarck prometia tal unificação com “mãos de ferro” ou mesmo o próprio Estado do Império Austro-húngaro poderia funcionar como o poder proibitivo. O principio repressor expresso no pai, cumprindo sua função de interiorizar a sociedade, poderia ser também uma marca da estrutura burocrática de um Estado Autoritário que funcionaria por um corpo de funcionários com hierarquia e papéis definidos.

No mundo kafkiano, a realidade externa mostra-se imponente. Uma imensa estrutura, que pode passar a ideia de máquina – a máquina burocrática – altamente hierarquizada, controlando e definindo a vida das pessoas. Em O Castelo, o agrimensor K. foi chamado para trabalhar em uma aldeia de um condado. Sua vida passou a girar em torno da tentativa de esclarecer um aparente equívoco, a aldeia não necessitava de um medidor de terras e tal pedido havia ocorrido à anos. No O Processo, Josef K. transforma sua vida por causa de um processo que nem mesmo tem uma acusação explícita. Não há uma origem, um acusador ou uma culpa original expressa, apenas um processo tramitando nas estruturas burocráticas, ainda que nas instâncias inferiores desta.

A burocracia fazia parte da vida do próprio Kafka. Se, por um lado, tudo que não fosse literatura lhe cansava, por outro, trabalhou no Instituto do Seguro Operário para Acidentes de Trabalho, instituição criada pelo Império Austro-húngaro. Sobre os trabalhadores que procuravam tal instituição, observa: “Como são humildes! Vem nos apresentar requerimentos... Ao invés de tomarem a casa de assalto e levarem tudo, eles vem nos apresentar requerimentos.4” Provavelmente ele se referia a transformação dos operários acidentados em fichas e requerimentos que muitas vezes não eram atendidos.

Em O Processo, tudo parece um organismo burocrático, um corpo vivo. Tudo pertence ou funciona para a estrutura. A justiça, a religião e mesmo a arte estão ligadas, todos destes setores são funcionários – com suas funções específicas – desta máquina. Em O Castelo, até mesmo a educação faz parte dos domínios dos senhores do Castelo, todos são funcionários e aquele que estiver fora do sistema sofrerá a rejeição dos demais tal como ocorreu com a família de Barnabás, o mensageiro. É importante lembrar que o cargo deste personagem só foi criado para a função de estabelecer o contato dentre K. e o Castelo. Nada funciona que não se relacione com o Castelo, embora esse seja inacessível para a maior parte da população do povoado.

Essa máquina burocrática estabelece rigorosamente papéis e entre estes seus níveis na escala social. Alguns burocratas estão no topo da pirâmide enquanto a grande maioria está na base. Embora o importante mesmo seja o cargo, não o indivíduo que o ocupa, aquele que está em destaque é inatingível. Klamm, embora pareça ser onisciente e onipresente: “Klamm está exatamente por toda a parte, aqui, aqui há demasiada presença de Klamm5” diz Frieda, noiva de K, ao ser indagada por este se sentia falta de Klamm, ele é apenas um dos nobres do Castelo, e não é nem mesmo o mais importante. Este é visto pelos habitantes do povoado, mas os outros nobres não. K, em O Processo, tem um advogado que não tem acesso aos juízes superiores. Os tribunais estão divididos em instâncias de importância. É o pintor dos juízes do Tribunal que fala a K:”Aos juízes inferiores, aos quais pertencem meus conhecidos, não tem o direito de absolver definitivamente, esse direito é reservado ao tribunal superior, que é totalmente inalcançável para mim, para o senhor e para todos nós.6” Nem mesmo o advogado de Josef K. tem acesso aos tribunais superiores e mesmo entre os advogados há uma hierarquia.

Embora onisciente ou onipresente, a estrutura burocrática, justamente pelo tamanho e pelo excesso de racionalismo, de funcional torna-se desfuncional. No O Castelo, a convocação do agrimensor havia ocorrido anos antes e mesmo o memorando desta convocação havia sido perdido em meio a inúmeros outros. Em O processo, por sua vez, os juízes do tribunal, em primeira seção, não sabiam nem mesmo quem ou o que era o acusado: “Pois bem (…) O senhor é pintor de parede?7” pergunta o juiz a K na primeira audiência. A própria convocação para a seção havia sido sem o informe de onde ocorreria.

Mesmo sendo absurda a forma de funcionamento da estrutura burocrática, com exceção dos protagonistas, todos os personagens kafkianos adaptam-se ao mundo imponente dos requerimentos e memorandos dos processos e papéis que muitas vezes não dizem nada, como constata Josef K ao examinar os cadernos de anotações dos juízes. A estrutura é passível até mesmo de corrupção. Os primeiros vigias que no início de O Processo informam ao herói de sua detenção. Estes são a base do sistema repressivo da máquina burocrática, e, por isso, significam também a instância menos valorizada desta, por isso estão sempre prontos a comerem a refeição de seus vigiados. Este ato é uma quebra de protocolo, por isso, vão ser castigados, não pelo ato ilegal em si, mas mais pelo caráter exemplar de vir a público, pois Josef o denunciou na primeira audiência. Dentro de uma repartição em que trabalha K, os vigias são torturados. O protagonista tenta em vão defendê-los. Eles são apenas parte e vítimas da mesma estrutura que processava Josef.

A salvação dos personagens consiste em entregar-se ao processo de alienação aceitando sem questionar a máquina burocrática. Aleatoriamente ela escolhe suas vítimas para demostrar sua força. A família de Barnabás necessitava que este se tornar mensageiro de Klamm para recuperar um pouco de sua dignidade. Frieda tem um cargo invejável de servir a este senhor do Castelo. Mesmo que a minoria de nobres e funcionários ignorem e evitarem contato com a população do povoado, são venerados. Em O Processo, o comerciante Block, arruinado por um processo semelhante ao de Josef, mesmo com mais de um advogado, humilha-se como um cão ante o mesmo advogado do protagonista. Block representa o medo e sujeição a estrutura burocrática. Seu processo não tem fim, toda a sua vida passou a ser a dedicação para o adiamento da sentença, para isso gastou tempo e dinheiro. Gregor Samsa, de A Metamorfose, de tão submisso ao sistema, arbiu mão de sua vida pessoal pela manutenção da família, acordou certa manhã como um inseto. O próprio Josef K, quando desiste de resistir ao seu processo, é condenado e morre como um cão, como o diz um de seus executores. A máquia burocrática desumaniza, torna os seres ou partes de uma grande engrenagem ou apenas folhas de um processo.

Frente a um mundo que transforma pessoas em números, é necessário, para Kafka na leitura de Leandro Konder, resistir, e, até mesmo, em caso extremo, transformar-se em um inseto, deixar de ser funcional. O argumento de Konder refere-se ao conto A toca e a parábola diante da lei. No conto, uma lontra enloquece ao esperar a vinda de algo que a destruiria, porém, tudo poderia ser apenas fruto de sua imaginação. Já na parábola, a questão não seria tanto quem enganava quem, se o camponês enganava o vigia ou era o contrário. O importante, para Konder, é que a porta estava aberta ao camponês para que este a passasse, embora formalmente isso não fosse permitido. A lei, como proibição e monstra de um poder arbitrário, deveria ser subvertida Essa é uma das leituras possíveis sobre a obra kafkiana. Kafka deixou grande parte de sua obra inconclusa. Toda a obra literária é aberta, como nos diz Umberto Eco, mas em Kakfa, o “agravante” é este ser inconclusa e fragmentada. Mas é importante lembrar que estas obras foram escritas no contexto do pré-guerra e no decorrer da própria Primeira Guerra Mundial. Esta guerra foi diferente das demais pela questão da rapidez da produção da morte e da possibilidade de se matar a distância, reduzindo o efeito psicológico. Entre os resultados desta guerra foi uma Alemanha destruída e endividada com o Tratado de Versalhes, abrindo espaço para o crescimento do Estado Totalitário nazista que transformaria pessoas em objetos passíveis de serem exterminados. Judeus, ciganos, comunistas, homossexuais, doentes mentais estavam sujeitos a um destino kafkiano, absurdo sem nenhuma lógica aparente. E este estado Totalitário só foi possível pela aceitação se sujeição da maioria da população alemã a ele. Kafka não viveu tais tempos sombrios, mas sua família foi exterminada em campos de concentração da máquina burocrática do III Reich.

O universo na literatura de Kafka é marcado pelo absurdo, processos sem precedências, homens se transformando em insetos, macacos se transformando em homens e convocações desnecessárias e atrasadas à anos. Mas esse absurdo é em sentido alegórico, o mundo representado em suas obras é um mundo possível e que, de certa forma, viria a se concretizar alguns anos depois da publicação de obras como O processo. O Homo Sacer e Giorgio Agambem, aquele que pode ser morto sem que se cometa assassinato, estaria povoando campos de concentração. O Estado Totalitário nazi-fascista, representando a lei que é mais importante que a justiça, tal como na condenação de Josef K.; a atrocidade de um dono de shopping center que preferiu fechar as portas e deixar pessoas morrerem queimadas para não saquearem seus bens, como ocorreu em agosto de 2004, no Paraguai; ou em Ruana, hutus e tútsis em uma guerra civil por uma rivalidade criada por belgas que empregavam o princípio maquiavélico de dividir para governar8,tudo isso não são exemplos de absurdos reais? E o que dizer da quantidade de recursos provenientes de Estados, como os EUA, a Rússia ou a Coréia, que são destinados ao aperfeiçoamento em armas de destruição em massa?

Hannah Arendt cita uma parábola de Kafka no prefácio de Entre o passado e o futuro. Trata-se de um personagem, denominado de “ele” entre duas forças, o passado e o futuro. Essas duas forças são infinitas, a primeira, sem início e a segunda, sem fim, tornando o presente apenas um lapso do tempo. O momento presente é herdeiro do passado e está construindo o futuro. Kafka e Weber, cada um em sua forma de expressão, nos mostraram um presente que agora já é passado, o presente em que viveram de uma sociedade burocratizada e irracional pelo excesso de racionalidade. Mas esse passado ainda marca nosso presente assim como marcaremos o futuro. Cabe-nos decidir se tomamos uma medida meramente contemplativa ou enfrentamos o vigia e passemos pela Porta da Lei.

BIBLIOGRAFIA:

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.

ARENDT, Hannah. Prefácio:A quebra entre o passado e o futuro. IN: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.

BENJAMIN, Walter. Kafka. IN: A Modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2000.

CHOSSSUDOVSKY, Michel. A Globalização da pobreza. São Paulo: Moderna, 1999.

KAFKA, Franz. O Processo. Porto Alegre: L&PM, 2008.

___. A Metamorfose. São Paulo. Cia das Letras, 1997.

___. O Castelo. Rio de Janeiro: Ediouro. s/d.

KONDER, Leandro. Kafka, vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967,

WEBER, Max. Burocracia. IN: Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982.

1Ver Weber,1982, p 270.

2MARCUSE, H. 1967. p 37

3 Ver: BENJANIN, 2000.

4KONDER, L. P34.

5KAFKA, F. s.d. P 112.

6KAFKA, F. 2008. p184.

7KAKFA, F. 2008, p57.

8Sobre a questão da gênese da guerra civil ruandesa, ver CHOSSSUDOVSKY, M.1999.