odossiêfalsificado
O dossiê falso
O furo jornalístico que virou um pterodáctilo para enviar informações para comentar
A parceria de Veja com Daniel Dantas prosseguiu no decorrer de 2006. Várias matérias, dossiês, especialmente os mais improváveis, pareciam terem sido fornecidos pelo banqueiro.
Na edição de 17 de maio de 2006, Veja fez sua aposta mais ousada.
O diretor Eurípedes Alcântara recebeu um dossiê de Dantas, sobre presumíveis contas de altas autoridades do governo no exterior. O mesmo dossiê foi encaminhado a outro membro do quarteto deVeja, Diogo Mainardi.
A tarefa de ir atrás das pistas do dossiê coube a Márcio Aith, o mesmo jornalista que cobrira o caso do dossiê da Kroll para a “Folha”.
Até então, Aith construíra uma sólida reputação de jornalista investigativo. Passou pela “Gazeta Mercantil” e “Folha”, tinha conhecimentos sobre mercado, balanços, economia, e caminhava para se transformar em um dos grandes repórteres da sua geração.
Saiu a campo e, em pouco tempo, constatou que o dossiê era uma falsificação. Tinha tudo para uma reportagem memorável.
O levantamento tinha sido feito por Frank Holder, ex-agente da CIA especializado em América Latina que, depois, largou o serviço secreto e montou uma firma de investigação – a Holder Associates – posteriormente adquirida pela Kroll.
Aith foi atrás de Holder na Suíça. Ouviu sua versão de que a lista tinha sido obtida no curso da investigação italiana sobre a parte brasileira dos escândalos da Parmalat. O repórter foi atrás de autoridades policiais de Milão – que investigavam o caso Parmalat – que afirmaram desconhecer a informação.
Holder, então, mudou a versão e informou que o dossiê tinha sido levantado pelo argentino José Luiz Manzano, ex-ministro e, segundo Aith, um dos símbolos da corrupção do governo Menen.
Aith foi atrás de Manzano que confirmou o dossiê e incumbiu assessores de passar mais dados. O material entregue apresentava inúmeras inconsistências. Estava configurado um novo dossiê Cayman.
Aith tinha conseguido juntar informações suficientes para lhe garantir a reportagem da sua vida, um quase certo Prêmio Esso de Reportagem.
Há um princípio básico de jornalismo: quando está configurado que a fonte tentou enganar o jornalista, é obrigação do jornalista denunciá-la. Eurípedes resistiu a divulgar o nome de Dantas. Houve discussão interna. Não havia como fugir do levantamento de Aith mas, por outro lado, Eurípedes queria defender o aliado.
Aith cedeu. De um lado, admitia-se que a fonte era Dantas. Mas foram tais e tantas as tentativas de salvar a cara do banqueiro, que a matéria transformou-se em um pterodáctilo, um bicho disforme e mal acabado.
O "prego sobre vinil" era claro.
Aith cometeu o erro de sua vida, concordando em assinar a matéria. Ganhou um boxe especial, cheio de elogios, e a primeira mancha grave na sua até então impecável folha de serviços jornalísticos. Veja não se limitava a apenas a “assassinatos de reputação” de terceiros, mas a destruir a reputação dos seus próprios jornalistas.
Começava pela capa. A chamada não mencionava dossiê falso. Pelo contrario, apresentava a falsificação como se fosse algo real:
“Daniel Dantas: o banqueiro-bomba. O seu arsenal tem até o numero da suposta conta de Lula no exterior"
A matéria não tinha pé nem cabeça. As investigações de Aith já tinham confirmado tratar-se de uma falsificação preparada por Dantas.
Mas o “lead” da matéria falava o contrario:
"O banqueiro Daniel Dantas está prestes a abrir um capítulo explosivo na investigação sobre os métodos da "organização criminosa" que se instalou no governo e o estrago causado por ela ao país".
O primeiro parágrafo inteiro, em vez de realçar o furo de Aith – a descoberta de que era um dossiê falso – dizia que:
"Na sessão, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) revelou o teor de um documento no qual o banco Opportunity, controlado por Dantas, diz ter sofrido perseguição do governo Lula por rejeitar pedidos de propina de "dezenas de milhões de dólares" feitos por petistas em 2002 e 2003. A carta, escrita por advogados de Dantas e entregue à Justiça de Nova York, onde o banqueiro é processado pelo Citigroup por fraude e negligência, é só o começo de uma novela que, a julgar pela biografia de Dantas, não se resume a uma simples tentativa frustrada de achaque".
Prosseguia a matéria:
"Para defender-se das pressões que garante ter sofrido do PT nos últimos três anos e meio, Dantas acumulou toda sorte de informações que pôde coletar sobre seus algozes. A mais explosiva é uma relação de cardeais petistas que manteriam dinheiro escondido em paraísos fiscais".
Ia mais longe:
"Além disso, Dantas compilou metodicamente não só os pedidos de propina como também as contratações e os pagamentos efetivamente feitos para tentar aplacar as investidas do atual governo sobre seus interesses. Se pelo menos uma parte desse material for verdadeira, o governo Lula estará a caminho da desintegração"
Esse tipo de menção ao poder terrível do banqueiro era um convite ao achaque. Na mesma matéria, Veja justificava a publicação do dossiê como forma de prevenir achaques:
"Ao mesmo tempo, isso (a publicação do dossiê) impedirá que o banqueiro do Opportunity venha a utilizar os dados como instrumento de chantagem em que o maior prejudicado, ao final, seriam o país e suas instituições".
A conclusão final era risível:
"Por todos os meios legais, VEJA tentou confirmar a veracidade do material entregue por Manzano. Submetido a uma perícia contratada pela revista, o material apresentou inúmeras inconsistências, mas nenhuma suficientemente forte para eliminar completamente a possibilidade de os papéis conterem dados verídicos".
Só então entrava na reportagem o conteúdo apurado por Aith.
A entrevista armada
Pior: em uma matéria em que Dantas era desmascarado como autor de documentos comprovadamente falsos, Eurípedes colocou um membro do quarteto ligado a Dantas – Diogo Mainardi – para permitir ao próprio banqueiro fazer sua defesa (clique aqui).
Não era uma entrevista normal. Sua leitura induzia qualquer leitor atento a suspeitar que as perguntas foram formuladas por quem respondeu. Não se deram sequer ao trabalho de utilizar o padrão de formatação da revista para entrevistas ping-pong. É como se Mainardi tivesse ido até Dantas, recebido o questionário preparado pelo advogado, remetido para a revista, que o publicou na íntegra. Nem edição houve.
Cada pergunta levantava uma bola para o banqueiro bater em sua tecla de defesa: a de que seus problemas eram decorrentes de perseguição política – na mesma mat��ria em que se demonstrava que ele próprio recorria a dossiês falsos para achaques.
O nível do ping pong era da seguinte ordem:
POR QUE O GOVERNO QUERIA TIRAR O OPPORTUNITY DO COMANDO DA BRASIL TELECOM?
Porque havia um acordo entre o PT e a Telemar para tomar os ativos da telecomunicação, em troca de dinheiro de campanha.
A TELEMAR ACABOU COMPRANDO A EMPRESA DO LULINHA. POR QUE VOCÊS TAMBÉM NEGOCIARAM COM ELE? ERA UM AGRADO AO PRESIDENTE LULA?
Nós procuramos de todas as maneiras diminuir a hostilidade do governo.
O EX-PRESIDENTE DO BANCO DO BRASIL CÁSSIO CASSEB DISSE AO CITIBANK QUE LULA ODEIA VOCÊ.
Casseb disse também que ou a gente entregava o controle da companhia ou o governo iria passar por cima.
A entrevista, na qual provavelmente a única participação de Mainardi foi a assinatura, terminava apresentandoDantas como vitima de achacadores, e não como quem tinha acabado de produzir um dossiê falso, com o claro intuito de achacar:
"Agora releia a entrevista. Mas sabendo o seguinte: Daniel Dantas cedeu aos achacadores petistas. Ele e muitos outros".
Pelas informações que correram na época, o máximo que Aith conseguiu, como contrapartida ao fato de ter concordado em assinar aquele texto, foi uma matéria na edição seguinte, contando em detalhes como o dossiê chegou à revista: entregue pelo próprio Dantas ao diretor Eurípedes Alcântara (clique aqui). Eurípedes só cedeu à segunda matéria porque percebeu que a falta de limites o colocara na zona cinzenta que separa a legalidade da ilegalidade.
De nada adiantou o escândalo, de nada adiantou saber da capacidade do banqueiro em inventar dossiês. A mídia estava completamente anestesiada. Mesmo com o absurdo dessa matéria, o quarteto de Veja continuou com autorização para matar.
As referências a informações e dossiês de Dantas, ao seu poder ameaçador, passaram a ser freqüentes nas notas de Lauro Jardim e Mainardi.
A ponto de, na semana passada, em seu podcast no site da Veja, Mainardi continuar acenando com dossiês italianos para chantagear críticos. Minha série sobre a Veja estava ainda nos primeiros capítulos, mas já estava claro que Mainardi seria um dos próximos personagens.
No dia 7 de fevereiro passado, coloquei o seguinte post em meu blog:
Do último podcast de Diogo Mainardi:
Clique aqui para ouvir. Ele me relaciona entre os jornalistas "quintacolunistas" e enfatiza por duas vezes a palavra "dinheiro vivo" para se referir às malas de dinheiro da Telecom Itália.
No final do podcast, manda um aviso:
"Da próxima vez, antes de reclamar de mim, lembre-se: teimo em falar sobre o caso Telecom Itália porque ele pode revelar não apenas o destino das malas sujas de dólares, como o jogo sujo de sua escolta de jornalistas".
Esse mesmo recado aparece com destaque na chamada do podcast, no portal da Veja.
O Houaiss descreve assim a palavra chantagem:
"pressão exercida sobre alguém para obter dinheiro ou favores mediante ameaças de revelação de fatos criminosos ou escandalosos (verídicos ou não)".
Do lado de outros grandes veículos, silêncio, complacência, aceitação conformada do estupro semanal a que o jornalismo está sendo submetido.
Próximo Capítulo: O post-it de Mainardi