O case Mainardi

O caso Diogo Mainardi merece uma análise à parte. Foi a construção mais elaborada do esquema, provavelmente nascida da mente sofisticada de Daniel Dantas. Recentemente, o jornalista Paulo Nogueira - ex-diretor de Exame, ex-diretor da Época - publicou interessante artigo sobre o macarthismo na imprensa brasileira e os diversos personagens que ascenderam oportunisticamente no novo quadro.

Dentre todos, destaca Diogo Mainardi como a maior excrescência, uma imitação mal feita de Paulo Francis.

Parafraseando o velho Vitorino Freire - "quando encontrar um jabuti em cima de uma árvore, indague primeiro quem o colocou lá" - em casos de abusos inéditos na mídia, de situações absolutamente inverossímeis, como foi o rápido fenômeno Mainardi e sua falta de limites, não os debite apenas à escassez de discernimento editorial. Tente saber porque se colocou o jabuti na árvore.

Historicamente, o escândalo midiático sempre permeou disputas políticas e empresariais.

Nos últimos anos, contudo, as disputas empresariais, muitas delas globais, tornaram mais agudas tendências da velha mídia, de se alinhar a um dos lados e utilizar o escândalo como arma de disputa em jogos de assassinatos de reputação. A ascensão de Rupert Murdoch do universo midiático global estimulou outros atores a entrarem pesadamente no jogo político: não mais a reboque de partidos políticos, mas conduzindo-os.

Dentre os diversos estratagemas utilizados para burlar a opinião pública, um dos mais eficientes foi a criação de personagens midiáticos que ganhassem repercussão junto à opinião pública. Construído o personagem, seria o instrumento para as grandes denúncias, devidamente inseridas na estratégia comercial e política do grupo.

Fenômeno antigo

Esse modelo de atuação é bem descrito no filme espanhol "O poder da mídia", de 2004. Dirigido por Bryan Goeres, tem no elenco Andrew McCarthy, Michael York e Bo Derek. Provavelmente foi o inspirador do modelo que Dantas ensinou a Roberto Civita, nas longas conversas que tiveram na chácara do dono da Abril e que precederam a mudança de posição da Veja e seu alinhamento com os interesses do banqueiro.Narra a história de um magnata inglês que adquire uma rede de TV na Espanha e a coloca a serviço de grandes jogadas empresariais na área de telecomunicações.

O modus operandi é simples. Um determinado repórter começa a receber informações confidenciais de uma fonte misteriosa. A emissora lhe dá destaque unusual, tornando-o personagem nacional.

Com o tempo, o repórter percebe que os dossiês visavam minar determinado grupo em benefício do seu concorrente. Investiga e descobre que o dono da emissora estava por trás da armação.

Segue-se a dramatização do caso, com o repórter sendo assassinado e um outro assumindo seu lugar.

O case Diogo Mainardi

Dois detalhes separam essa construção do modelo adotado por Roberto Civita: a dramatização dos assassinatos no filme e a suposição do repórter iludido em sua boa fé. No caso Veja, não havia assassinos (a não ser de reputações); mas tão pouco parajornalistas ingênuos.

Excetuando esses dois detalhes, o modelo foi integralmente copiado pela revista Veja, quando Roberto Civita rasgou a fantasia e a colocou escandalosamente a serviço de disputas empresariais - do Opportunity, de Daniel Dantas, a Carlinhos Cachoeira.

É aí que se insere o case Diogo Mainardi.

Até então, quem era Mainardi? Um parajornalista cultural, relativamente mordaz, com uma tragédia familiar que o engrandecia junto ao público e um rosto de enfant terrible.

Pessoalmente, um sujeito inseguro que havia chegado aos 40 anos atolado em problemas com a crise financeira que levou à derrocada da agência de publicidade da família, sem ter conseguido se transformar no grande intelectual que um dia ambicionou ser. Na infância e adolescência, foi um menino sufocado pela presença massacrante do pai. Colegas publicitários lembram-se de cenas vexatórias em sua casa, com o pai desqualificando-o na frente das visitas.

Tímido, de não olhar nos olhos do interlocutor, a partir de certo momento Mainardi se transmuta. Foi quando Roberto Civita o escolheu para ser o personagem que faltava para seu roteiro tupininquim adaptado de "O poder da mídia", tanto para as armações empresariais quanto para as políticas. Aos interesses de Daniel Dantas se somariam as prioridades de José Serra.

Houve um trabalho meticuloso de preparação.

Para dar uma aura de "heroísmo" à sua conduta, foi incitado a cometer todos os ataques a Lula, sem limites de agressividade, transformando-se no ídolo de uma classe média midiática refratária ao estilo do então presidente.

O macartismo e o combate incessante a Lula foram o biombo atrás do qual se passariam as jogadas comerciais regiamente pagas pelos participantes do jogo.

Lançou o livro "Lula, minha anta", amparado por amplo esquema de repercussão pela Editora Record e pelos veículos que compuseram o pacto de 2005 visando a derrubada de Lula, após o escândalo do "mensalão.

A resenha no Estadão - do inacreditável Melchiades Cunha Filho - comparou-o a Carlos Lacerda. Na Folha, outro panegírico. Na Veja, duas páginas laudatórias - escritas pelo incrível Mário Sabino - tratando-o como o "guru do Leblon", ou coisa do gênero.

Ao vivo, no programa Manhatan Conection, apenas um integrante apagado da bancada, tímido e desinformado. Nas páginas da Veja e nos podcasts do seu portal, o intimorato agente do antilulismo, com chispas de coragem sendo lançadas pelo olhar penetrante.

Atrás do rosto de adolescente tardio, os mais atilados identificavam o perfil adunco de Roberto Civita.

Como se destacar

Até então, os veículos de mídia se valiam (e ainda se valem) de alguns dos chamados jornalistas "investigativos" para seus ataques a adversários. São pessoas ligadas ao submundo político e criminoso, incumbidas de montar ataques contra quem quer que seja, de adversários políticos e empresariais dos patrões a meros críticos de seu jornalismo.

Mas o personagem Mainardi era uma construção muito mais sofisticada e eficaz. Os "investigativos" ficavam na cozinha, eram como advogados de porta de cadeia. A Abril pretendeu criar um personagem para exibir na sala de visitas.

Ele deveria ser um intelectual refinado - como Paulo Francis - para que, quando acionado para as jogadas comerciais da Abril, os ataques tivessem maior eficácia.

Mesmo assim, como se destacar, sem dispor do talento e do histrionismo de Paulo Francis e do próprio Arnaldo Jabor?

Para poder se destacar, então, ele foi autorizado a ultrapassar limites só possíveis com expressa autorização da direção. Poderia atacar colegas, desqualificar autoridades, cometer todas as tipificações do Código Penal para calúnia, injúria e difamação. A Abril garantiria advogados e bancaria as condenações pecuniárias. Mainardi teria a visibilidade que até então perseguia e a diferenciação em relação a militantes mais talentosos do antilulismo.

Essa estratégia está detalhadamente explicada em "O Caso de Veja", de 2008.

Completado o personagem, tornou-se o escoadouro de todo o lixo jornalístico da revista, visando dois objetivos: reforçar a luta política (o que passava pelo patrulhamento a jornalistas que não se enquadrassem na estratégia) e permitir as jogadas comerciais da Abril.

No meu caso, os dois primeiros ataques de Mainardi vieram acompanhados de 12 páginas de publicidade de empresas controladas por Daniel Dantas. Depois, a Abril se mancou e encontrou outras maneiras de se remunerar com as parcerias comercais.

O papel de Serra

Nos ataques a jornalistas, Mainardi era abastecido por Serra. Bastava algum jornalista não se enquadrar na linha definida pelo pacto de 2005, para merecer ataques desqualificadores.

Percebi de imediato esse jogo porque, na campanha de 2002, ouvi de Serra as mesmas acusações e insinuações levantadas, depois, por Mainardi contra colegas. No meu caso, entrava por um ouvido e saía pelo outro, atribuindo os resmungos ao temperamento difícil de Serra.

Era uma armadilha considerável para as vítimas. Como um jornalista com biografia iria polemizar com um parajornalista sem passado, montado na revista de maior circulação do país, com ordem para atirar em quem quer que fosse? Nem que quisesse, a vítima receberia autorização do seu veículo para responder. E essa impotência dos atingidos ajudava a fortalecer o mito criado por Civita.

Alguns desses ataques serviram de senha para o afastamento de profissionais. Em outros casos, conseguia-se a intimidação e o devido enquadramento de jornalistas de peso.

No dia em que ousou escrever uma coluna contra Serra, um dos mais notáveis colunistas da imprensa escrita recebeu um tiro de Mainardi. Piscou. No final de semana seguinte estava devidamente enquadrado, publicando um artigo que se assemelhava a um ato de rendição. E nesse enquadramento prosseguiu durante todo o período posterior.

Como jornalista atilado, tinha percebido que o jabuti não tinha subido sozinho na árvore. Seu receio não era do jabuti, mas do dono do jabuti.

O personagem ilustrado

Só que, para se manter, o personagem Mainardi jamais poderia abandonar o estilo Francis-Jabor. Teria que utilizar o talento para acumular credibilidade; e o saldo de credibilidade para as jogadas encomendadas a Roberto Civita.

Em entrevistas ao fax "Jornalistas & Cia" Civita definiu Mainardi como o "pimentinha", que fazia o que quisesse na revista, com total liberdade (meio envergonhado, lembrou que, em que pese Mainardi, a revista tinha o "príncipe" dos cronistas brasileiros, Roberto Pompeu de Toledo).

No dia a dia o jogo era outro. Um conhecido jornalista especializado, alvo dos ataques de Mainardi, procurou Civita. E ele foi objetivo: "Se quiser, mando o Mainardi parar de te atacar agora".

Esse dupla militância - no jornalismo cultural iconoclasta e no jornalismo empresarial de escândalos - expôs Mainardi a um desafio insuperável.

Suas limitações culturais não davam conta do erudito iconoclasta. Uma semana atacava Antonio Cândido, na outra Chico Buarque, na terceira, Mozart. E os leitores, como viciados em pornografia, querendo mais e mais.

Sem um bom repertório intelectual, o inseguro Mainardi precisou se render por completo aos dossiês e baixarias. Dossiês falsos, insinuações até em relação à vida sexual de Dilma, ataques desqualificadores, tudo isso entrou em uma espiral escatológica poucas vezes vista na imprensa. O colunista de dossiês engoliu o arremedo de Paulo Francis.

Perdeu a graça e ganhou suspeitas, na fotografia, ficou pior do que o pior repórter "investigativo". Tornou-se constrangedor para Civita exibi-lo na sala de visitas.

Tão rapidamente quanto surgiu, a estrela foi se apagando. A Abril começou a afastá-lo do centro da Veja - conforme se ouve em uma gravação de Daniel Dantas se queixando a Janaina Leite - e do seu podcast semanal. Um constrangido Mainardi explicava a seus leitores que interrompera o podcast (dois minutos por semana) para dispor de mais tempo para se dedicar aos seus livros.

Despido da capa de Super Homem, o ator se desmanchou.

No dia em que blogs informaram as suspeitas do Ministério Público Federal em relação à sua atuação no caso Opportunity, veio correndo a São Paulo se apresentar ao procurador Rodrigo de Grandis. Uma das testemunhas contou jamais ter presenciado episódio mais constrangedor do que um balbuciante Mainardi tentando se explicar. Como poderia aquele sujeito temeroso, trêmulo, um menino de mais de 40 anos, inseguro, assustado, ser o implacável colunista que chamava o presidente de "anta"?

Por trás do jogo, sempre a face macilenta de Roberto Civita se desfazendo, por inservível, do personagem que criou.

Era o criador usando a criatura até onde deu.

Essa escalada foi refreada quando o personagem se esgarçou, perdeu efetividade, tornou-se equivalente a outros repórteres investigativos que tem marginais como fontes e são utilizados para ataques a adversários..

E acabou bem antes da pessoa física de Mainardi ser condenada a três meses de prisão - rompendo a barreira que a Abril conseguira construir na Justiça.