Miklós Peternák entrevista Vilém Flusser

Vilém Flusser: Sobre a escrita, complexidade e revoluções técnicas

Osnabrück, European Media Art Festival, September 1988.

Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8rtZXpMUlS8

[MP] = Miklós Peternák

[VF] = Vilém Flusser

[VF] Estou aqui em Osnabrück pela seguinte razão: estou impressionado pelo fato de que uma das mais importantes dimensões da revolução cultural presente não foi suficientemente acentuada. Nomeadamente, o fato de a comunicação linguística, tanto a palavra falada quanto a escrita, não ser mais capaz de transmitir os pensamentos e conceitos que temos concernentes ao mundo. E novos códigos estão sendo elaborados. E um dos códigos mais importantes é o código das imagens técnicas. Assim, eu vim a Osnabrück para ver o que essas pessoas estão fazendo.

Deixe-me explicar um pouco o que eu quero dizer. Está claro, há vários séculos, agora, que se nós queremos entender o mundo não é suficiente descrevê-lo por palavras. É necessário calcular o mundo.

De modo que a ciência tem cada vez mais recorrido a números, que são imagens de pensamentos. Por exemplo, 'dois' é um ideograma para o conceito 'par' ou 'casal'.

Agora, esse código ideográfico, que é o código dos números, foi desenvolvido, de um modo muito refinado, ultimamente, por computadores. Números têm sido transcodificados para códigos digitais. E códigos digitais estão, eles mesmos, sendo transcodificados para imagens sintéticas.

Então, é minha crença firme que se você quer, hoje em dia, ter uma comunicação clara e distinta de seus conceitos você tem de usar imagens sintéticas, não mais palavras. E isso é uma profunda revolução no pensamento.

E eu estou muito interessado nisso, mas eu tenho que confessar que, no que diz respeito à minha experiência em Osnabrück, eu não vi muito [sobre isso] nesse sentido.

A razão pode ser que as pessoas ainda não sabem como realmente lidar com os novos aparelhos. Isso é uma resposta à sua questão?

[MP] Pode ser. Talvez aqui algo relacionado com seu livro "A escrita: A escrita tem futuro?", o desenvolvimento de conceitos e ideias?

[VF] Nesse livro, eu tentei dizer o seguinte: quando a escrita alfabética foi inventada, digamos há 3500 anos atrás, uma total transformação da nossa, não só experiência, mas até mesmo nossa ação, foi envolvida.

Antes da invenção da escrita, imagens tradicionais eram usadas como mapas do mundo. E a estrutura das imagens envolvia um modo específico de olhar para o mundo, que é o modo mítico.

Agora, quando o alfabeto foi inventado, o pensamento mítico deu lugar ao pensamento crítico histórico. Porque a estrutura da escrita linear é uma linha unidimensional, unidirigida. De modo que, aos poucos, as pessoas começaram a pensar de modo causal histórico e de um modo crítico.

Agora que esta linha foi decomposta em pontos [os números], agora que o discurso foi substituído pelo cálculo, o pensamento histórico progressista está sendo abandonado em favor de um novo tipo de pensamento que eu gostaria de chamar, digamos, um modo de pensar sistêmico ou estrutural.

De modo que eu acredito que nós estamos assistindo e somos testemunhas de uma revolução que pode ser comparada àquela que deu origem à história.

Em minha terminologia, eu digo que antes da invenção da escrita as pessoas pensavam de um modo 'pré-histórico'. Depois da invenção do alfabeto, a consciência histórica foi elaborada. E agora nós estamos começando a elaborar um modo de pensar pós-histórico, estrutural.

[MP] Em sua palestra aqui, você fez uma distinção entre complexidade estrutural e funcional.

[VF] Isso mesmo.

[MP] Podemos ouvir alguma coisa sobre isso?

[VF] Sim. Eu penso que os sistemas podem ser complexos em dois sentidos. Eles podem ser complexos estruturalmente. Por exemplo, pode haver sistemas em que os elementos mantêm uma relação muito complexa uns com os outros. Mas também pode haver [sistemas] funcionalmente complexos. O que significa que, se você usa o sistema, você o usa de um modo complexo.

Agora, essas duas complexidades são independentes uma da outra. Um sistema estruturalmente complexo pode ser simples funcionalmente, como um aparelho de televisão, que é uma estrutura de complexidade quase impenetrável, mas cujo uso é extremamente simples.

Por outro lado, sistemas [estruturalmente] simples, como o jogo de xadrez, podem ter manipulações funcionais muito complexas.

É um fato que sistemas funcionalmente complexos são um desafio para o pensamento criativo, ao passo que os sistemas funcionalmente simples são estupidificantes, idióticos.

Agora, os sistemas complexos que estão surgindo são complexos em um sentido estrutural. Se eles serão funcionalmente complexos, ou não, depende de nós. Por enquanto, esses sistemas [estruturalmente] complexos estão sendo usados para usos funcionalmente simples. O que é a razão pela qual o nível intelectual, estético, e mesmo ético, está baixando.

Mas isso não é culpa do sistema, é culpa do usuário do sistema. Nós podemos, com o tempo, aprender como dar uma complexidade funcional a essas estruturas. E é com isso que eu estou comprometido.

[MP] Você parece estar desenvolvendo uma disciplina que nós podemos chamar 'filosofia das imagens' ou 'teoria das imagens'.

[VF] Sim, eu penso que há uma longa história da filosofia das imagens, a maior parte dela negativa, pois, devido à nossa tradição grega e judaica, a filosofia tem um preconceito no que diz respeito às imagens. É o preconceito de que uma imagem é apenas uma cópia, uma simulação, do pensamento. De modo que ou é proibido fazer imagens ou imagens são aceitas com grande desconfiança.

Mas acho que isso está mudando, porque as imagens não representam mais o mundo. Essas novas imagens são, agora, articulações do pensamento. Elas não são cópias, mas projeções, modelos. Assim, uma nova atitude é necessária em relação à imagem é necessária e eu acho que ela está se desenvolvendo.

Benjamin foi um dos primeiros pensadores que articularam isso. E eu penso que nós estamos todos nessa tradição.

[MP] Quem são os cientistas, neste século, que trabalharam nesta direção? Quem são aqueles que são importantes para você, mesmo que suas ideias não estejam na mesma direção?

[VF] Eu posso lhe dar dois nomes. De um lado, Roland Barthes, que é muito importante para mim. E eu comecei a partir do pensamento dele, apesar de considerá-lo completamente errado. E, de outro lado, no outro extremo, McLuhan, que propõe uma atitude em relação à imagem que eu considero 'fascistóide'. Eu sou totalmente contra ele, mas mesmo assim é um ponto de partida.

Eu posso mencionar um terceiro pensador, Abraham Moles, que é um amigo próximo, com quem eu estou em contato quase diário, mas de quem eu tendo a discordar cada vez mais.

[VF] Eu gostaria de dizer o seguinte, se me permite. Cada revolução, seja ela política, econômica, social ou estética é, em última análise, uma revolução técnica. Se você olhar para as grandes revoluções por que a humanidade passou, digamos, a revolução neolítica, ou a revolução da era do bronze, ou a revolução do ferro, ou a revolução industrial - toda revolução é, na verdade, uma revolução técnica. Assim é a atual.

Mas há uma diferença. Até agora, as técnicas sempre simularam o corpo. Pela primeira vez nossas novas técnicas simulam o sistema nervoso. De modo que esta é a primeira vez, se você quiser dizer assim, uma revolução realmente imaterial e, para usar um velho termo, uma revolução espiritual. Eu acho que é importante dizer isso em seu contexto.

[MP] Obrigado.