Flautista Solista x Flautista Sinfônico

Uma vez me correspondi com um aluno me pedia uma opinião sobre como ele deveria tocar num teste para uma vaga na orquestra, qual seria a sonoridade ideal, etc. Existe esta eterna discussão sobre as diferenças entre o flautista solista e aquele que toca na orquestra. Aproveitei o que escrevi para ele e elaborei um pouco mais sobre o assunto: 

Obviamente que existem diferenças, cada um pode se dedicar ou se especializar numa ou outra categoria, mas esta história deflautista solista versus flautista de orquestra não é bem como muitos pensam. 

Algumas pessoas costumam associar um som grande como sendo mais adequado ao solista, e um som menor com o de um flautista de orquestra, mas não é nada disto! Um bom músico (flautista ou qualquer que seja o instrumento) deve ser capaz de tocar de qualquer maneira que lhe é pedido, e deve saber mudar e ajustar seu som tanto em volume quanto em timbre, cor, vibrato, para obter o melhor resultado em cada situação. Quanto melhor instrumentista ele for e quanto melhor dominar seu instrumento, melhor ele será, tanto na frente ou no meio da orquestra. 

É verdade que algumas características podem ser mais importantes e úteis para aquele que toca na orquestra, como a capacidade de conseguir, em certas situações a “fusão” (“blend”) do seu som com os outros instrumentos da orquestra, praticamente “se escondendo”, enquanto o solista deverá atrair a atenção do público o tempo todo, e mesmo nas passagens mais delicadas deverá se fazer ouvir e raramente irá “se esconder”. 

A afinação é igualmente importante para ambos, mas para o flautista da orquestra ela será sempre mais crítica, pois ele estará tocando numa tessitura mais fechada que aquele que estaria solando, onde praticamente sua linha melódica é exclusiva. 

Para tocar bem na orquestra, é necessária muita flexibilidade no volume do som, nas cores do som e, sobretudo na afinação. O instrumentista de orquestra muitas vezes também tem solos, e nestes momentos tem que saber agir como um solista, com mais independência e com um som que se destaque e se sobreponha à orquestra, enquanto em outros momentos ele poderá ser um mero coadjuvante, e seu som deverá ser discreto. Saber se adaptar a cada situação exige muita flexibilidade e jogo de cintura, talvez mais do que para ser um solista. Por outro lado, um bom solista também precisa dominar todos os recursos de sonoridade de seu instrumento para poder extrair o máximo da partitura e manter a atenção do público o tempo todo. 

Sobre o volume de som: 

Quando tocamos numa orquestra sinfônica grande (muitas vezes com mais de cem pessoas!), num repertório “pesado”, em alguns momentos vamos precisar de muita projetação de som e para isso é necessário que os flautistas saibam como conseguir isso. “Projetar” o som não é a mesma coisa que “tocar forte”! A projeção depende de várias características e qualidades do som, como o equilíbrio e a distribuição dos harmônicos, uma coluna de ar livre e com boa velocidade, correta afinação, e talvez o mais importante: a necessidade de se tocar no centro de cada nota. A correta maneira de assoprar, a velocidade da coluna de ar e uma embocadura adequada podem ter uma grande influência em tudo isso. Alguns flautistas cobrem muito o bocal para tocar, e isso prejudica muito a projeção do som, por exemplo. 

Após vários anos de experiência na orquestra e tendo tocado com diversos colegas, posso dizer que é surpreendente como alguns instrumentistas projetam seu som melhor que outros. Igualmente interessante é observar como muitas vezes um som, aparentemente “forte” quando próximo, pode se tornar “fraco” e “difuso”, à distância. Muitas vezes nos enganamos sobre como nosso som está se propagando, e podemos ter uma falsa impressão, pois não temos como nos ouvir de longe. Podemos aprender muito observando como os grandes artistas fazem isso, se possível freqüentando concertos e assistindo de perto e de longe.

 

Para projetar nosso som devemos pensar em produzir um som "grande" e centrado, e não um som “forte” e “espalhado”. Forte lembra força, e não é bem força que precisamos. Som grande não é som forçado, é um som que projeta e enche a sala. Tive o privilégio de ouvir alguns dos grandes flautistas tocando ao vivo (muitas vezes em salas bem grandes, como o Carnegie Hall, por exemplo) e o que ouvi foi sempre um som com grande projeção e sem uso de qualquer tipo de "força". Julius Baker, por exemplo, tocava de uma forma tão relaxada e natural, sem nenhum “esforço” aparente e seu som passava por cima da orquestra sem a menor dificuldade. 

Qual o segredo? Ar...velocidade de ar, som centrado e concentrado, timbre e equilíbrio de harmônicos. Pense no som como um facho de luz, se ele está aberto irá se espalhar e iluminar uma área maior, mas com pouca intensidade. Mas se usar uma lente para “focar” esta luz, ela será mais concentrada e intensa. 

Um som grande pode ser obtido com um grande relaxamento! Um pianista, para tocar “forte”, combina os movimentos dos seus braços com um grande relaxamento dos ombros e braços e aproveita ao máximo o peso destes para que a gravidade o ajude a percutir o teclado fazendo o mínimo de força (caso contrário o som fica forte, mas ao mesmo tempo “duro e estridente”). Devemos fazer o mesmo, movimentar a coluna de ar usando o “peso” das costelas e dos músculos do nosso corpo sem, no entanto pressioná-los demasiadamente. Isso ajudará a produzir um som mais intenso e forte com maior projeção. 

Quando tocamos em dinâmicas mais suaves ou numa ópera (acompanhando vozes muito delicadas, por exemplo) precisamos tocar de maneira mais "leve" e nosso som deve “flutuar”, mas ainda mantendo suas qualidades, como projeção, centro, clareza, afinação, expressividade, vibrato, etc. 

Sobre timbre: 

Talvez aqui esteja a parte mais complicada e difícil de aprender e desenvolver. Podemos pensar no timbre como sendo as cores do som. Em muitos momentos na orquestra devemos procurar fazer com que nosso som se combine, se mescle com o dos outros instrumentos, pois muitas vezes a flauta faz parte de um acorde e quanto mais homogêneo este acorde, melhor será o resultado. Lembre-se que os compositores até o final do século 19 escreveram pensando no som das flautas de madeira, e até mesmo aqueles da primeira metade do século 20 ainda tinham um tipo de som na cabeça, que não era exatamente como é hoje o som das flautas modernas, que ficaram mais brilhantes. Um bom flautista de orquestra sabe, por experiência, ajustar seu som não só em termos de volume, mas principalmente em termos de timbre para cada momento. Para cada caso um som: quando tocamos com o clarinete, com o oboé, com as cordas, com os metais, etc. Quando tocamos um trecho “solo” podemos usar outro timbre e talvez outro tipo de vibrato. 

Tocar com o timbre “certo” não só produz um resultado mais bonito e agradável, mas também ajuda na afinação. Uma vez, coordenando um ensaio só com as flautas da minha orquestra, verifiquei que os flautistas que estavam tocando a 1ª e 2ª flauta estavam tendo grande dificuldade para afinar uma passagem em uníssono na 3ª oitava, mesmo depois de muitas tentativas e usando um afinador eletrônico. Fizemos então um teste: eu toquei a parte da 2ª flauta no lugar de um deles e o resultado foi bem melhor, mais afinado. Depois eu toquei a parte da 1ª flauta com o outro e também ficou bom! Mas quando os dois voltaram a tocar juntos... Por que? Porque eu procurei tocar com um timbre mais “neutro” facilitando a afinação e minimizando os choques dos harmônicos, enquanto eles tocavam com um timbre mais “brilhante” e com um som menos “centrado”, o que causava mais problemas e dificultava a afinação. 

Como aprender isto? Prática e experiência, não só de orquestra, mas música de Câmera também. Outra coisa: ouvir muito! Ouvir repertório de orquestra, não apenas solos de flauta, por exemplo, e assistir muitos concertos com boas orquestras, etc. 

Quando ouvir uma gravação de algum flautista e gostar de um determinado timbre, de um determinado vibrato, procure imitar e reproduzir aquele som até conseguir fazer com que se incorpore a sua palheta de cores, pois um dia poderá ser muito útil.

Marcos Kiehl

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