O que poderá abalar a imagem do “mito” diante de seus seguidores?

(ou, a espera de um tiro num cachorrinho...)


Tem um filme alemão, uma comédia de 2015, que é bem pertinente ao momento em que vivemos. Em português recebeu o título de “Ele está de volta” (dirigido por David Wnendt), e está disponível em várias plataformas. A história é inusitada: Hitler ressurge das cinzas nos dias atuais, no local onde ficava o seu bunker e onde supostamente teve seu fim. Inicialmente Hitler fica bem confuso. Porém, quando ele percebe que está no futuro, entende que o destino lhe reservou uma segunda chance.

Os alemães o veem como um personagem bizarro, engraçado, que imita com perfeição o personagem histórico. Claro que ninguém poderia imaginar que se tratava do próprio Hitler ressuscitado. Carismático, rapidamente se torna uma atração na TV, em programas que lembram os brasileiros Super-Pop e Pânico na TV.

Este Hitler ressuscitado fica fascinado pela Internet, aprende a usá-la, e logo se torna um fenômeno nas redes. Apesar de personificar um ser abjeto, a maioria não se incomoda com isso, o vê como uma sátira inofensiva e hilária. E assim logo se torna um sucesso de audiência nos meios de comunicação e redes sociais.

A popularidade desse Hitler renascido das cinzas só desaba quando vaza um pequeno vídeo em que ele mata sem dó um pequeno cãozinho que o atacava. Pronto: matar um cãozinho indefeso não seria perdoável. Pregações nazistas, fanfarronices, boçalidades das mais diversas: nada disso abalou sua imagem pública. Nem mesmo a associação da sua imagem a um dos maiores genocídios da humanidade. Mas sacrificar um pequeno animal indefeso foi considerado inadmissível.

Essa alegoria é reveladora do comportamento de grande parte da população diante de lideranças neofascistas. Não conseguem enxergar o anúncio de barbárie que elas trazem. Ouso afirmar que somente a execução de um “cãozinho” poderá despertar parte da nossa população para a tragédia em curso. Não será pelo assassinato cotidiano da juventude negra nas periferias das nossas grandes cidades; não será pelos feminicídios, pela destruição das nossas florestas e pelos crimes ambientais; não será pelo assassinato de indígenas e lideranças do campo; nada disso. Não será pela violação de nenhum dos direitos humanos assegurados na nossa Constituição. Como não foi pela gestão genocida da pandemia da COVID-19.

O maltrato a um animal geralmente causa mais comoção que o maltrato a uma criança negra e pobre, ou mesmo assassinada numa incursão policial numa favela.

Mas qual razão deste amor dos seres humanos pelos pets? Bem, raramente as mascotes nos são hostis. Elas se submetem a nossa dominação quase sempre de forma servil, nos dão o afeto que muitos humanos nos negam frequentemente. Exceto quando são vítimas de maus tratos recorrentes, não guardam ressentimentos. São gratos a quem lhes dá comida, teto e carinho. Se ficarem incômodos, podem ser castrados ou amputados. Não é necessário negociar nada com eles; após um tempo de adestramento, não há nada mais com que se preocupar.

Um pet pode ser moldado as nossas conveniências; não totalmente, claro. Mas as suas “travessuras” são facilmente aceitas de bom grado por nós. Já um ser humano não é assim, ele pode fugir ao nosso domínio. A lealdade tem que ser duramente conquistada, dia após dia, e nunca é perene. O bicho de estimação não tem a alternativa de se rebelar.

Creio que muitos dos seres humanos gostariam que todos a sua volta fossem pets.

Tempos atrás um cantor e compositor Eduardo Dussek, ironizou essa relação dos seres humanos com os seus bichinhos de estimação: troque seu cachorro por uma criança pobre. A música fez sucesso à época, mas a ideia não. Recentemente soubemos de uma celebridade que devolveu uma criança adotada, como quem devolve um produto por mal funcionamento.

Então é isso: para que um “cidadão de bem” fique indignado com a barbárie, será preciso que um pet seja maltratado. Porque se alguém é capaz de fazer uma maldade a um inocente e servil cãozinho, o que não fará com o seu devoto semelhante? Só assim este cidadão se sentirá ameaçado.

Mas não nos enganemos. É pouco provável que o nosso Hitler dos trópicos cometa algo assim. Não literalmente. Mas em algum momento ele agredirá algo que será muito caro aos seus apoiadores. A besta não se contém.

Qual será o “cãozinho” que o capitão executará nós ainda não sabemos. Mas não será nada que se assemelhe as inúmeras barbaridades que ele vomita cotidianamente. Nada que rebaixe ou desrespeite o ser humano. Isso não causa indignação entre seus apoiadores. Assassinato, estupro, tortura e o que for, desde que o atingido seja classificado como “inimigo”, recebe até aplausos. Até um caso de pedofilia poderá ser relativizado, caso seja com o filho(a) de um “comunista”. O típico “cidadão de bem” é assim.

Enfim: qual será o “cãozinho” que será executado pelo Bozo? Façam suas apostas.

PS: Nada contra os bichos de estimação, que fique claro. Mas rechaço aves em gaiolas ou com asas cortadas; cães e gatos obrigados a viver em apartamentos exíguos, castrados para não incomodar os vizinhos com a sua algazarra; peixes confinados para nos servir de objeto de decoração. Embora saibamos que esta é a “vida” de 95% dos pets.

José de Souza

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