O entendimento de Gestalt e o

“Dom” da criatividade.


O texto “A percepção da forma e sua relação com o fenômeno artístico. O problema visto através de Gestalt” (Caetano Fraccaroli) explica a Teoria da Forma e suas leis ao longo de grande parte de seu conteúdo. Entretanto, ao final do texto há a demonstração de ideais pensados por alguns teóricos acerca da capacidade de um indivíduo de comunicar-se com a arte, chegando à esta conclusão:


Não indo tão longe, poderíamos dizer que esse privilégio existe, mas em termos de uma capacidade de lidar, mais ou menos artisticamente, com a vida. [...] O artista poderia ser explicado como o indivíduo que, pelo apuro da própria sensibilidade, originária de funções nervosas privilegiadas, seria menos acessível às influências extrínsecas à natureza da arte, ou dito de outra maneira, seria capaz de perceber a propriedade das relações formais, apesar dessa influência. (FRACCAROLI, 1952, p.32).


Tal assunção de que o artista nasce com essa capacidade de percepção da arte, e consequentemente consegue compreender mais facilmente a psicologia de Gestalt, me incomoda por lembrar da, aparentemente infinita, discussão sobre a criatividade ser um “dom” e fator místico inato de indivíduos específicos (o qual Fraccaroli tenta explicar de forma científica porém ainda há seu misticismo), ou ser uma capacidade treinável inerente a toda e qualquer pessoa. Este texto tem como intuito promover uma reflexão acerca dessa dualidade de conceitos, a partir de questionamentos sobre a afirmação de Fraccaroli, porém de forma alguma determinando o que é verdade absoluta, visto que é sob a perspectiva de uma mera estudante de bacharelado em Design.

Antes de irmos para a discussão principal é interessante lembrar o significado da palavra “criatividade” uma vez que ela será bastante discutida aqui.


1- Criatividade

substantivo feminino

1. Qualidade da pessoa criativa, de que tem capacidade, inteligência e talento para criar, inventar ou fazer inovações na área em que atua; originalidade.

2. Essa capacidade de inventar, de criar, de compor a partir da imaginação.

(CRIATIVIDADE, 2021).


A ideia de que criatividade trata-se de desenvolver coisas novas é praticamente unânime para a sociedade, mas para alguns autores ela pode ser dividida em duas categorias, onde a primeira trata-se de habilidades que todos os seres humanos possuem, como experimentar, criar ideias, identificar, etc. enquanto a segunda são as que aparentam ser privilégios de pessoas específicas que dependem da área de trabalho, o resultado, regras e etc. Para estas divisões o psicólogo Stev Vygotsky deu os nomes criatividade cotidiana e alta criatividade, respectivamente. Assumindo que de fato existam esses dois tipos, o que determina um indivíduo como mais criativo em relação aos demais, levando em conta que o conceito geral da criatividade é bem abrangente e não existe um “medidor” 100% seguro?

Um estudo realizado em 2005 por Sara Bahia e Sara Ibérico Nogueira propõe entender se existem diferenciações entre a criatividade dos estudantes universitários, de acordo com a área de conhecimento em que eles estão inseridos, e no que consistem essas diferenças. Durante a pesquisa os participantes deveriam responder o que eles interpretavam como objeto criativo e uma das respostas dos estudantes de Humanas me chamou a atenção:


Curiosamente apenas os estudantes de Humanidades referem que a criatividade é algo comum a todos nós, reafirmando o conceito de Criatividade Quotidiana, em oposição à Alta Criatividade. Este mesmo grupo também salienta a necessidade de aceitação e de reconhecimento do trabalho criativo, como Csikszentmihalyi (1988) refere ao afirmar que a tónica não deve ser colocada na resposta à questão “O que é a criatividade?”, mas antes à questão “Onde está a criatividade?”

(BAHIA e NOGUEIRA, 2005, p. 20).


Tal resposta faz todo sentido para nossa realidade enquanto indivíduos, pois as nossas definições de “novo” e “original” sofrem grandes modificações entre si devido a fatores como localização, cultura, classe social, etnia, área de conhecimento (como evidenciado no estudo) entre vários outros. Apesar da globalização e miscigenação serem agentes que contribuem significativamente para a redução dessas diferenças, ainda assim não são suficientes para formar uma hegemonia global, na prática, inúmeras tecnologias, artes e outros conhecimentos de brasileiros serão totalmente novos para muitos japoneses e vice-versa, mas como mencionado anteriormente, essas questões não se restringem apenas a países. Questões socioeconômicas também influenciam na definição de criatividade, pois pessoas que vivem em situação de miséria dificilmente conseguem ter as mesmas oportunidades e experiências de pessoas que se encontram na classe alta da sociedade, por mais que ocupem o mesmo país, o mesmo estado, ou até a mesma cidade.

A influência desses fatores impacta não somente na definição do que é ou não criativo e a medição de criatividade, mas também compromete o entendimento da teoria de Gestalt. Isso porque, como os princípios dessas leis giram em torno de questões majoritariamente naturais e biológicas, as questões socioculturais e econômicas de cada indivíduo traz uma diferente resposta para cada aspecto da teoria. Alguns conseguem assimilar rapidamente, outros demoram um pouco, porém conseguem entender (ou ao menos entendem a maior parte), e também há pessoas que sentem muita dificuldade para compreender as leis. Essas configurações inclusive são mencionadas no texto do próprio Fraccaroli:


Em consequência de preocupações de ordem cultural, ou seja, de preconceitos intelectuais, morais e religiosos, o sujeito se desvia da percepção espontânea e puramente formal do objeto. Há uma cortina de bagagem cultural que lhe impede esse contacto direto com os valores reais de uma obra de arte. (FRACCAROLI, 1952, p.30).


É interessante observar a disparidade de ideias presentes no texto de Fraccaroli. Em uma página ele utiliza as falas de Koffka e Keppes para expor a realidade da influência de questões não-biológicas no entendimento da Psicologia da Forma, porém duas páginas depois discorre sobre a ideia da existência de funções nervosas privilegiadas inatas do artista. Se a arte é uma atividade que o ser humano tem capacidade de aprender, um artista que teve dificuldades para compreender Gestalt é biologicamente “menos artista” em relação ao outro que compreendeu mais rápido?

Em minha opinião, ambos são artistas independentemente do tempo que levam para compreender teorias psicológicas, filosóficas, ou qualquer outra. Afinal, todos estão criando artes, gerando ideias, desfrutando da criatividade, porém em ritmos diferentes, assim como tomam seu próprio tempo para se desprender dos preconceitos e estereótipos impregnados pelos fatores socioeconômicos e culturais do ambiente em que vivem.

Embora eu particularmente não concorde com uma pequena parte do texto sobre psicologia da forma, de Caetano Fraccaroli, a sua contribuição como um todo foi de extrema importância para a introdução do estudo de Gestalt no Brasil e para transformar o ensino de vários cursos como design, psicologia, artes e muitos outros, no que conhecemos hoje em dia. Não é possível desmerecer a obra completa baseado somente nessas citações, mesmo porque, como mencionado no início deste texto, o principal objetivo é apenas promover a reflexão acerca dos conceitos apresentados, não necessariamente definindo se há certo ou errado para esta questão.


Bibliografia:

  1. FRACCAROLI, Caetano. A percepção da forma e sua relação com o fenômeno artístico: o problema visto através da Gestalt (Psicologia da Forma). São Paulo: FAU, 1952.

  2. CRIATIVIDADE. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/criatividade/. Acesso em: 27/04/2021.

  3. BAHIA, S.; NOGUEIRA, S. I.; A criatividade dos estudantes universitários: como difere com a área de conhecimento. Lisboa: Editora: Federación Española de Asociaciones de Psicología, 2005.


Texto desenvolvido por Sarah Nobre para a disciplina Introdução ao Estudo do Design - Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Departamento de Design - Abril de 2021. O texto colabora com o projeto de extensão “Blog Estudos sobre Design”, coordenado pelo Prof. Rodrigo Boufleur (http://estudossobredesign.blogspot.com).