MEIO AMBIENTE

Seguindo tendência sustentável, upcycling ganha força entre paulistanos

Técnica de customização prolonga vida de roupas e objetos

por Tamyres Sbrile | 23.07.2022

Edição: Beatriz Quintas

Podcasts: Lívia Gennari

Presente na passarela da São Paulo Fashion Week 2022, realizada de 31 de maio a 4 de junho, a grife À La Garçonne ganhou a atenção do público com uma técnica pouco conhecida: o upcycling. Baseado no reaproveitamento de materiais já existentes, ele propõe a transformação de peças inutilizadas em itens únicos, com baixo custo e sem agredir a natureza.

Lançado no último ano pela plataforma Modefica, o relatório “Fios da Moda: uma Perspectiva Sistêmica para Sustentabilidade” analisou os impactos socioambientais causados pela indústria têxtil. Segundo o documento, somente a região do Brás - maior polo produtor de roupas na capital paulista - gera a cada dia um montante de resíduos têxteis equivalente a 16 caminhões de lixo, destinados diretamente a aterros sanitários.

Com origem no garimpo de artigos de vestuário, marca personaliza peças de brechó e faz reuso de sobras de tecido (Foto: Divulgação/ SPFW/ Zé Takahashi)

Dados divulgados pela Fundação Ellen MacArthur revelam que, se o número de descarte irregular de resíduos têxteis não mudar até 2025, o setor já terá utilizado ¼ do carbono mundial. Deste modo, o upcycling segue a contramão do consumismo frenético estimulado pelo fast-fashion, aumentando o ciclo de vida dos produtos e dando um novo propósito a materiais que seriam descartados ou que possuem algum “defeito”. Mas a técnica não se limita ao universo das roupas e tem conquistado cada vez mais adeptos.

Conforme o site Ecycle, o termo ganhou notoriedade por intermédio do alemão Rainer Pilz em 1994. Oito anos depois, se popularizou com o livro “Cradle to cradle: rethinking the way we make thing”, publicado pelo arquiteto William McDonough e pelo químico Michael Braungart. Na tradução livre, a obra pode ser encontrada com o título “Cradle to cradle: criar e recriar ilimitadamente".

Diferente de outros processos de reúso, o upcycling tem como princípio o total reaproveitamento de propriedades originais, não podendo haver intervenções químicas. Com a reciclagem ocorre o contrário, pois é feita a junção dos mesmos materiais para a criação de um produto de valor inferior, como as garrafas pet.

Novos hábitos de consumo

Ressignificar, recriar, reutilizar e reinventar. Essas são algumas das etapas do upcycling, processo criativo que está ganhando espaço mundialmente. Países europeus como França, Holanda e Alemanha estão a anos luz do Brasil no que diz respeito ao uso do método. 

Maior produtora de lixo no estado, a cidade de São Paulo registrou um aumento considerável no montante de resíduos gerados durante a pandemia, com a popularização dos serviços de delivery e a alta demanda por equipamentos de proteção individual descartáveis.

Somente em 2021 foram aproximadamente 3,5 toneladas de materiais recolhidos, sendo apenas 72 mil provenientes da coleta seletiva. Os dados são do Siscor (Sistema de Controle de Resíduos Sólidos Urbanos), ferramenta da Prefeitura Municipal.

Apesar da constatação, o período de isolamento também fortaleceu hábitos de consumo mais sustentáveis. Segundo levantamento realizado pela EY, empresa de consultoria e transações, em fevereiro deste ano 32% dos entrevistados apontaram estar em busca de experiências que priorizam o planeta, índice 11% maior que no ano anterior.

Assim, iniciativas que combatem o desperdício e prezam pela preservação ambiental começam a ganhar força, a exemplo da ciclou. Criada em 2020, no meio da pandemia, a marca é fruto do desejo de Amanda Martins, 31, de lutar pelo que acredita.  A engenheira deixou o emprego em uma multinacional e fundou a marca. 

“Ao conhecer o upcycling e as alternativas que existiam, automaticamente comecei a procurar artesãos que pudessem dar um novo ciclo de vida para o que eu tinha em casa, e percebi que essa curadoria poderia se tornar um negócio, ajudando mais e mais pessoas a fazerem essas transformações”, relata.

Aos trancos e barrancos, a startup conseguiu os primeiros clientes e as transformações começaram a surgir. Após a redução das restrições impostas pela covid-19, a marca pôde participar de eventos presenciais, como o Encontro Lixo Zero, que aconteceu entre os dias 9 e 10 de junho no Sumaré (Zona Oeste paulistana). 

Hoje, graças a uma base de 20 parceiros vinculados, a ciclou conta com serviços de reforma, customização e criação de peças e produtos a pronta entrega. “Eu acredito muito num meio de consumo mais sustentável para todos e quero criar essa rede para realmente facilitar essas encomendas e comercialização”. 

O limite das possibilidades é a imaginação do cliente, potes de vidro se tornam velas ecológicas sustentáveis, peças de roupa velhas ganham a forma de mochilas afetivas e até mesmo uma garrafa de vinho pode virar abajur. 


Afetividade, a raiz do upcycle

Um dos diferenciais do upcycling, no entanto, é o resgate do lado afetivo de cada item, trazendo lembranças e carinho para aqueles que o procuram. A própria Amanda começou a testar algumas opções no início e conseguiu transformar um brinquedo de infância que dona Isabel - mãe dela - guardava, em um abajur decorativo. Antes, um objeto parado e sem utilidade, depois, um abajur único e especial.

Em abril deste ano, a founder idealizou um projeto para coletar máscaras de tecido por algumas regiões de São Paulo, com o objetivo de dar um destino mais sustentável para essas peças. O resultado foi a coleção “ressignificando a pandemia”, que trouxe chaveiros, broche de tampinha e até uma mala de viagem.  “Hoje, temos algumas coleções feitas de materiais que buscamos com histórias, para criarmos produtos diferenciados e o cliente saber de onde vem aquele material, e se conectar com a história dele”, completou. 

Chaveiros feitos de máscaras de tecido recolhidas pela cidade de São Paulo (Foto: Reprodução/ Divulgação)

Do lixo ao luxo

Outra empreendedora do ramo é Noemi Mau, 65, que faz reúso de objetos e materiais que seriam descartados para a confecção das jóias artesanais comercializadas pela ReNo. Apesar de não nomeá-lo, o upcycling faz parte de sua vida desde a adolescência, afinal a artesã sempre teve o hobby de recriar acessórios como relógios e chaveiros. “Na minha adolescência eu desmontava relógios e chaveiros e os fazia da maneira que queria. Mas na época não tinha um nome, então o upcycling não é novo na minha vida”.

Modelos criados pela artesã aos 16 anos (Foto: Reprodução/ Instagram)

Com uma carreira bem-sucedida, a aposentada trabalhou por mais de 30 anos em multinacionais. Mesmo gostando de trabalhos manuais, ela sabia que não podia abandonar o emprego formal. “Eu sempre quis ir por esse lado, só não fui antes porque não dá pra viver disso, não é o ganha pão, mas também fui muito feliz na área que atuei”, relatou. 

Noemi já se planejava para poder viver do artesanato após a aposentadoria, pois desejava muito poder trabalhar com a parte criativa. Por ser expatriada, viveu por alguns anos na Bélgica, mas durante uma viagem pela Holanda, algo despertou sua atenção nas feiras de artesanato: bijuterias feitas de câmaras de bicicleta. 

As filhas da artesã moram atualmente em Israel, em determinado período do ano ela vai para lá passar uma temporada com a família. Noemi aproveita essa viagem e também vende os produtos da ReNo por lá, pois percebeu uma maior valorização de seu trabalho. “É um país mais rico, as pessoas têm mais consciência dessa questão de reutilização e sabem valorizar os trabalhos manuais. No Brasil o pessoal ainda vai muito atrás do que é modinha”, acrescentou a bióloga por formação.

Noemi Mau posa com as peças da ReNo, feitas com câmaras de bicicleta (Reprodução/ Instagram)

Apontado como um dos aspectos negativos de ser artesão no Brasil, além da desvalorização dos próprios consumidores, os preços que as feirinhas desse setor cobram de quem deseja participar costumam ser altos. A organização pede pelo espaço, uma porcentagem de lucro nas vendas também. 

“Isso ainda contribui para que a pessoa que faz trabalho manual ganhe pouco. Por isso eles tentam vender sozinhos pelo instagram, diretamente com o cliente, sendo mais justo com quem está vendendo”, explicou Noemi.

A empreendedora deixa claro que os produtos que faz são jóias e peças únicas, incomparáveis a produtos fabricados em escala. “Não é porque é feito de ouro, lindo e maravilhoso, que se chama jóia. E não é porque é de pneu, madeira ou algum material que tem menos valor que se trata de uma mera bijuteria. Eu sempre preferi alguma coisa bonita e criativa a uma pulseirinha de ourinho que tem quinhentas iguais”, enfatiza.

Um ato de esperança

Na cidade de São Paulo, a coleta de resíduos sólidos foi concedida a duas empresas por meio de licitação: EcoUrbis e Loga. Além delas, 25 cooperativas de reciclagem são habilitadas no Programa Socioambiental de Coleta Seletiva, gerando renda para 940 trabalhadores. 

Todavia, a correta destinação do que é descartado ainda enfrenta obstáculos, bem como a adequação aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, estipulados pela ONU (Organização das Nações Unidas) e adotados como diretrizes de políticas públicas em 2018.

É neste ínterim que o upcycle surge como alternativa. Tratando-se de uma ação que pode ser desenvolvida a nível individual, inserida na rotina ela garante maior durabilidade para bens de consumo e menor geração de lixo.

De acordo com Francisca Dantas Mendes, coordenadora do NAP-SUSTEXMODA na Universidade de São Paulo (USP), é algo mais simples que parece. "No caso dos vestuários, renovando peças com pequenas alterações, como encurtar comprimentos ou fazer pequenos bordados, já é possível fazer nossa parte. Assim, prolongamos seu uso e reduzimos o número de peças descartadas nos aterros sanitários."

Inúmeras opções também são encontradas facilmente em redes sociais e blogs, como as Do It Yourself (DIY), onde são oferecidos até mesmo cursos. Basta um simples e rápido toque no celular.