CIDADE

Legado histórico de São Paulo luta contra invisibilidade no pós-pandemia

Avanço da especulação imobiliária ameaça paisagem em diversos pontos da cidade

por Beatriz Quintas | 23.07.2022

Revisão: Guy Almeida e Ronald Sclavi

Se precisassem definir em uma só palavra a cidade de São Paulo, muitos diriam “transformação” e, de fato, ela está mudando. Após atingir uma alta de 716% nos Alvarás de Execução de Demolição no início da pandemia, naturalmente novos empreendimentos imobiliários se multiplicaram, por vezes tomando o lugar de construções simbólicas para a população local.

De acordo com registros da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), somente em 2021 foram mais de 600 emissões do documento. Entre os principais bairros atingidos, estão os que acompanharam o crescimento da metrópole: Vila Mariana, Pinheiros e Ipiranga.

Testemunhas do desenvolvimento paulistano, cidadãos já não reconhecem mais as paisagens de suas memórias (Foto: Reprodução/ Pexels/ Berkant Akyüz)

“Não só o visual mudou, como também o perfil de quem vive aqui. Apesar do aspecto positivo que foi o rejuvenescimento, perdemos casas, edifícios e até mesmo pequenas vilas. Às vezes, pagamos um preço alto para ir em frente, sem necessariamente progredir”, relata Antônio Demilvar, morador da Vila Mariana há 46 anos.

Protegido pelo Decreto-Lei no. 25 de 1937, o patrimônio nacional é caracterizado pela vinculação a fatos memoráveis, seja por seu valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico. Ainda assim, ao seguir a tendência de modernização do espaço urbano, corre-se o risco de perder componentes essenciais à identidade cultural.

No entanto, a impossibilidade de interferência nesses depende exclusivamente de seu tombamento e de políticas públicas de catalogação. Como explica a arquiteta Amanda Lira, “a questão vai além de tombar um bem material, é preciso propor um uso para ele. Acredito que, durante esses dois anos de isolamento, a negligência quanto a isso tenha se intensificado, devido a outras pautas sociais terem ganhado destaque.”

Quartel do Segundo Batalhão de Guardas, no distrito da Sé, é exemplo de abandono e falta de manutenção (Foto: Douglas Nascimento/São Paulo Antiga)

Assim, casos similares ao do Quartel do Tabatingueira - como é popularmente conhecido o Segundo Batalhão de Guardas - passam a ser comuns na cidade. Tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) desde 1981, o prédio que fica no Parque Dom Pedro II se encontra abandonado e já teve muitos de seus materiais furtados.

A principal perda, por outro lado, foi a do reconhecimento de sua relevância. Hoje invisível aos olhos dos transeuntes, a obra que serviu de sede para a Chácara do Fonseca segue desconhecida e inutilizada, bem como os elementos originais de 1850 que pouco a pouco são corrompidos pelo tempo em seu interior.

Revisão do Plano Diretor Estratégico

Aprovado em 2014, PDE prevê a preservação de bens de interesse histórico e paisagístico da cidade (Vídeo: Reprodução/ Unloop Filmes)

Responsável por orientar o crescimento e desenvolvimento do município, o Plano Diretor Estratégico (PDE) em vigor deveria ser revisado no último ano, a fim de realinhar os instrumentos previstos por lei, tornando-os mais efetivos e adequados à realidade atual. No entanto, a pandemia fez com que o prazo fosse prorrogado para o segundo semestre de 2022.

Entre os temas tratados pelo PDE, está também a preservação do patrimônio paulistano, enquadrando-se imóveis de interesse histórico e paisagístico para a população. Seguindo esse intuito, a proposta inicial previa quatro classificações de Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPEC), de acordo com suas características e potencialidades de usufruto.

Estratégias deveriam integrar subprefeituras e demais órgãos municipais, a fim de identificar as necessidades de cada região (Infográfico: Reprodução/ Prefeitura de São Paulo)

Apesar de inovador à época, o texto original é alvo de críticas de especialistas em urbanismo e sociologia por não englobar as extremidades da capital. Logo, questões como representatividade e invisibilização das periferias na implementação de políticas públicas têm sido pauta recorrente nas discussões sobre a revisão, ficando à cargo de coletivos e associações da sociedade civil o incentivo à manutenção de espaços culturais nesses territórios.

“Nesse ponto, entramos num campo de políticas de esquecimento, que incitam o não direito à memória, com a descaracterização de bairros e monumentos. Infelizmente, vemos somente o mercado imobiliário ganhando força. É aí que grupos fora da instância municipal surgem, resistindo e promovendo a conscientização”, detalha a urbanista Thaline Nunes Rocha.

Retomado no início do mês, após suspensão por ordem judicial emitida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o processo de revisão se encontra em fase de consultas públicas virtuais pelo portal Participe+. A interrupção ocorreu por ter sido identificada a falta de recursos de acessibilidade oferecidos a pessoas com deficiência e idosos, impedindo sua ampla participação no debate.

Com isso, a Câmara de Vereadores aprovou uma nova data para que a Prefeitura encaminhe um projeto de lei, incluindo as mudanças avaliadas: 31 de dezembro.

Resgate da memória urbana

À medida que os protocolos sanitários de combate à Covid-19 são flexibilizados, São Paulo volta a ser ocupada por turistas e cidadãos interessados em redescobrir suas múltiplas possibilidades culturais. Dentre elas, ganham força as visitas guiadas em locais históricos.

Realizadas por iniciativas individuais e instituições privadas, as atividades têm como objetivo ampliar o conhecimento sobre o processo de construção da capital paulista, além de apurar o olhar sobre detalhes que fogem à percepção de muitos no dia a dia.

Arquitetura da cidade e história de monumentos é abordada durante passeios no Vale do Anhangabaú (Foto: Beatriz Quintas)

Um desses projetos é o Passeio Modernista, desenvolvido na região central há três anos pelo jornalista Marcelo Rainho. Com saídas agendadas aos sábados, às 10h e 15h, o roteiro é repleto de referências à Semana de Arte Moderna de 1922, que este ano completa seu centenário.

“Trata-se de uma análise conjunta do espaço e sua relação com esse período histórico”, afirma o organizador. “Quando recebi alguns arquitetos, por exemplo, fui questionado sobre uma das construções da Rua Quinze de Novembro. Ao pesquisar mais informações sobre o edifício, descobri que ele foi projetado pelo tio da pintora Anita Malfatti, o arquiteto Jorge Krug, que foi muito influente no início de sua carreira artística. Certamente, era algo que eu nem imaginava.”

Ao longo do percurso, importantes pontos turísticos são visitados, como o Vale do Anhangabaú e o Theatro Municipal. Ainda é possível explorar outras vias, como as ruas São Bento e Líbero Badaró, importantes pontos de encontro para artistas ao início do século XIX.

Iniciativa da Linha da Cultura traz olhar artístico sobre a ocupação territorial e o transporte coletivo (Foto: Reprodução/Redes sociais)

Já no subterrâneo da cidade, a atração ganha forma com as Caminhadas Fotográficas do Metrô de São Paulo. Mensalmente, os encontros percorrem diferentes trechos do meio de transporte, convidando os participantes a uma imersão nos aspectos urbanísticos e sociais das estações. Confira aqui alguns registros de edições anteriores.

Promovidas pela Linha da Cultura, departamento do sistema metroviário, elas trazem a temática “Olhar para a cidade com gentileza”. Pontos de encontro e datas de realização podem ser conferidos no site e nas redes sociais da companhia.

Para Giulio Zoiro, estudante de Jornalismo e assíduo participante do projeto, é vital que ele tenha continuidade. “Atravessamos a cidade em nossos caminhos diários, mas não observamos os lugares por onde passamos ou sequer pensamos em quanta história eles carregam. É algo que precisa ser preservado. Graças a essa ideia de caminhar e fotografar, sempre com explicações em forma de conversa, começamos a reconhecer os detalhes e as tantas nuances dos trajetos que fazemos”, ressalta.