Fotoquadrinhos?
Por Luhan Dias - Professor da Escola de Design – UEMG
Sim, você não leu errado: estou falando de quadrinhos feitos com fotografias, ou, pelo menos, que utilizam fotografias como base principal para a representação visual. Embora não seja incomum ver fotografias em memes combinadas com elementos dos quadrinhos, como quadros e balões, a ideia de quadrinhos fotográficos pode parecer um pouco estranha à primeira vista. Esse estranhamento é compreensível, já que estamos acostumados com uma longa tradição de quadrinhos baseados em outra matriz visual, o desenho. No entanto, quadrinhos fotográficos não são tão raros nem tão excepcionais quanto podem parecer atualmente.
Esse tipo de produção remonta às primeiras publicações que mesclavam fotografia e texto nos jornais no início do século XX. Garcia (2014) aponta que, no início do século XX, com o sucesso das obras cinematográficas, surgiram na França e na Itália resumos impressos dos filmes. Esses resumos consistiam em fotogramas dos filmes dispostos lado a lado, com sinopses das cenas descritas abaixo. Essas obras serviam tanto como paliativo para quem não tinha acesso aos cinemas quanto para ajudar a rememorar as experiências vividas na tela grande.
Com o grande sucesso desse tipo de produção, surgiu a demanda por materiais fotográficos sequenciais que não fossem ancorados em obras pré-existentes — obras originais. A linguagem dos quadrinhos se mostrou apropriada para isso. Ainda segundo Garcia (2014), a ideia de quadrinhos fotográficos propriamente ditos surgiu da intuição de Domenico Del Duca, proprietário de uma pequena editora em Milão e escritor de romances populares sentimentais. Del Duca, que já possuía experiência de sucesso com romances, roteirizou uma história em quadrinhos desenhada e obteve grande êxito comercial. Após essa experiência, Del Duca intuiu que uma forma híbrida entre quadrinhos tradicionais e fotografias poderia ser bem aceita. Ele não poderia estar mais certo.
Os quadrinhos fotográficos ganharam força na Itália na década de 1950, com a produção em massa dos chamados fotoromanzi, ou, como ficaram conhecidas nos países hispano-falantes da América Latina e no Brasil, fotonovelas.
Se considerarmos o termo fotoromanzi, ou seja, romances fotográficos, e que a palavra "romance" em inglês é "novel", podemos especular que o termo "fotonovela" seja uma adaptação do inglês photonovel. Essa tradução direta do italiano para o inglês teria sido erroneamente adaptada ao espanhol e ao português como "fotonovela", sem refletir adequadamente a diferença entre os gêneros textuais — a estrutura das histórias fechadas dos romances e a narrativa contínua das novelas.
Tematicamente, as primeiras fotonovelas tinham como foco principal interações românticas, especialmente aventuras amorosas melodramáticas voltadas para mulheres, o público-alvo dessas obras.
No entanto, não se deve subestimar a variedade de temas e públicos que esse tipo de produção alcançou. Com o passar dos anos, surgiram diversas editoras italianas especializadas em fotonovelas, criando um mercado robusto, onde atores e atrizes eram muito bem pagos e considerados estrelas, comparáveis aos artistas de rock italianos (que, curiosamente, influenciaram a Jovem Guarda brasileira). Formou-se uma espécie de "Hollywood de papel", devido ao caráter pujante e massificado da produção dessas obras. Com o tempo, as editoras passaram a criar histórias que se comunicavam com diversos grupos demográficos, abordando temas como espionagem, investigação policial, aventura, ficção científica, ação, adaptações de histórias clássicas, épicos, além das tradicionais histórias românticas.
Em termos formais, essas obras eram histórias em quadrinhos compostas por um conjunto de fotografias dispostas lado a lado, mas com mais variações de layout do que poderíamos imaginar a princípio, seguindo a tendência da maioria dos quadrinhos da época. Os textos apareciam como legendas que contextualizavam ou explicavam os quadrinhos, enquanto os balões de fala normalmente tinham formato quadrado com pontas arredondadas, mas isso poderia variar de acordo com o gênero da obra.
Nas obras mais populares, não havia grandes preocupações estéticas em relação à tipografia ou ao espaço ocupado pelo texto. Isso pode surpreender o leitor de quadrinhos atual, mas o resultado era que o texto, por não ser expressivo, acabava "invisibilizado", permitindo que as fotografias assumissem o protagonismo das obras.
Uma característica interessante dessas produções é que os créditos eram dados apenas ao diretor e aos atores, enquanto outros profissionais envolvidos na produção não eram creditados no corpo do quadrinho. Isso é semelhante ao que ocorre no cinema, onde normalmente os nomes mais importantes, aqueles que atraem o público, são os da direção e dos atores.
A produção italiana se internacionalizou, sendo publicada em diversos países da Europa e das Américas, incluindo o Brasil. Especialmente o Brasil.
Em terras tupiniquins, esses materiais eram publicados em revistas de grande circulação e acompanhados por conteúdos voltados à demografia específica a que eram destinados. Em revistas "femininas", cujo público-alvo eram jovens mulheres, encontravam-se contos românticos em prosa, horóscopos, poemas, dicas de moda, entrevistas com as estrelas/modelos das fotografias, dicas de relacionamento e comportamento, receitas, relatos das leitoras com comentários dos editores, além de publicidades de artigos do lar, roupas, perfumes, cursos de costura e secretariado, e compra de livros por correspondência. No caso de obras voltadas para o público masculino, além de contos em prosa nos gêneros específicos da revista (terror, ação, aventura), havia publicidade de academias, cursos a distância de detetive particular, eletricista, mecânico de automóveis, torneiro mecânico, desenho de projetos, entre outros.
Fotonovela, aliás, é a forma como esses quadrinhos fotográficos se popularizaram entre os leitores brasileiros e hispano-falantes. Nas próprias publicações, havia um esforço para diferenciar as histórias pelos gêneros, com termos como fotocrime para quadrinhos de histórias criminais, fotociência para ficções científicas, fotowest para histórias do velho oeste, e assim por diante. No entanto, foi o termo "fotonovela" que se consolidou, e é como chamaremos toda essa diversa produção desse período.
Segundo Sampaio (2008), as fotonovelas eram tão consumidas no Brasil que, no segundo semestre de 1970, ocupavam o segundo lugar em tiragens e circulação entre todas as revistas da época. A autora aponta que as tiragens somadas das revistas de fotonovelas ultrapassavam um milhão de exemplares.
O consumo de fotonovelas italianas pelo público brasileiro gerava uma sensação mista. Por um lado, havia uma familiaridade com o aspecto mundano e "realista" das fotografias; por outro, o caráter idealizado da vida urbana italiana representada era inegável, causando grande impacto na população brasileira, recém-urbanizada. É importante lembrar que a televisão só se popularizou no Brasil a partir dos anos 1970, e grande parte da demanda por histórias e narrativas nas décadas de 60, 70 e 80 foi suprida pelas fotonovelas. Com o tempo, no entanto, as fotonovelas foram perdendo popularidade à medida que a televisão e as telenovelas passaram a dominar esse tipo de narrativa.
Mesmo sendo mais barato importar as fotonovelas italianas do que produzir edições totalmente brasileiras, uma produção nacional se desenvolveu, abrangendo diversos gêneros, como ficção científica, histórias de ação, paródias, pornografia e material underground. Além disso, existiam versões brasileiras de fotonovelas baseadas na captura de quadros de filmes, novelas e séries de televisão. Em muitos casos, essas produções reafirmavam a estética e os temas das fotonovelas italianas, como as feitas com os astros da Jovem Guarda. Em outros, buscavam problematizá-los, como nos quadrinhos underground que utilizavam a estética fotográfica para chocar. De uma forma ou de outra, todos esses trabalhos dialogaram com o formato e a popularidade das fotonovelas.
Devido ao caráter massificado e pueril das narrativas, esse tipo de produção editorial foi considerado material de pouca sofisticação e baixo valor cultural, destinado, portanto, a pessoas de pouca cultura e idiotizadas. Segundo Joanilho e Joanilho (2008), a fotonovela era vista como "a prima pobre dos subgêneros literários", sendo mencionada apenas ocasionalmente, muitas vezes como um contraexemplo:
“uma não literatura, ou meramente um produto da cultura de massa, que não tem outro objetivo além de caçar níqueis nas carteiras de consumidores desavisados ou não suficientemente educados para evitar produto tão enganoso. Ainda tem um lado mais perverso: funcionar como anestésico da consciência popular” (Joanilho; Joanilho, 2008, p. 531).
Assim como diversas outras manifestações artísticas que ocupavam o espaço da produção para as massas, as fotonovelas foram inicialmente desconsideradas como arte legítima, relegadas a lixo cultural e, por fim, esquecidas.
Ou será que não? Na internet, é possível encontrar fóruns e perfis de redes sociais que abordam esse tipo de produção de forma nostálgica, com pessoas relembrando as histórias e exaltando nominalmente os atores, modelos e títulos das revistas. Além disso, boa parte da memória das fotonovelas foi preservada por esse público nostálgico, que se dedicou a compartilhar, divulgar e discutir essas publicações na internet. Aliás, muito do que conheço sobre esse tipo de publicação se deve a esses entusiastas que bravamente mantiveram viva a memória dessas obras e desse período.
Outro ponto que contribuiu para o não esquecimento desse formato de contar histórias no Brasil é que, apesar do declínio das fotonovelas em quase todos os gêneros, as obras eróticas e pornográficas continuaram a ser produzidas e consumidas. Elas se mantiveram populares até o declínio da produção impressa de revistas no final da década de 2000, e o gênero persiste em produções para a internet, em grande parte a partir de quadros de filmes pornográficos (ironicamente uma volta completa às origens das fotonovelas).
Agora você deve estar se perguntando: curiosidade interessante sobre o passado, mas e daí?
Esse legado das fotonovelas estigmatizou de tal forma as produções de quadrinhos fotográficos que, até mesmo aqueles que nunca ouviram falar dessas publicações, encaram a ideia de criar quadrinhos fotográficos com estranheza. Não é raro ouvir de leitores habituados a quadrinhos tradicionais a desqualificação de obras que utilizam fotografias como base, referindo-se a elas pejorativamente como "fotonovelas," como se o uso de fotos e a semelhança com essas produções fossem um demérito. A meu ver, essa atitude reduz a diversidade nas produções de quadrinhos, especialmente considerando que a fotografia é, hoje em dia, uma das formas mais acessíveis de produção de imagens, muito mais barata do que na época das fotonovelas.
Claro que existem exemplos de fotoquadrinhos na "era digital". No final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, com a facilidade de manipulação de imagens digitais, surgiram iniciativas tímidas que utilizaram fotografias em produções de quadrinhos, tanto em elementos isolados, como cenários, quanto em obras majoritariamente baseadas em fotografias.
Um exemplo de uso de fotografias como matriz principal é a série de quadrinhos iniciada em 2014 Star Trek: New Visions, criada pela lenda dos quadrinhos de super-heróis John Byrne e publicada pela editora IDW. Nessa produção, o autor utilizou imagens originais da série de televisão manipuladas digitalmente, adicionando cenários 3D realistas e criou “episódios novos” da série. Ele aliou sua experiência no mercado de quadrinhos tradicional para criar layouts que promovem um fluxo narrativo dinâmico e moderno.
Outra produção marcante é a graphic novel O Espinafre de Yukiko, de 2005, criada por Frédéric Boilet, um francês radicado no Japão. Boilet utilizou fotografias (posteriormente contornadas) para desenvolver a obra. Além disso, ele foi responsável por um movimento artístico nos quadrinhos japoneses chamado "La Nouvelle Manga". O título do movimento artístico faz referência direta à Nouvelle Vague e procura combinar mangás adultos que abordam o cotidiano com o estilo artístico dos quadrinhos franco-belgas. Infelizmente, o estilo de mescla entre fotografias e desenhos está presente apenas em sua obra.
De um outro ponto de vista, em um espectro diferente de produção, temos a utilização das fotonovelas em ambientes acadêmicos e educacionais. Podemos citar a criação de fotonovelas em sala de aula na educação básica como uma estratégia de engajar os alunos com conteúdos específicos e promover a potencialização do aprendizado. Exemplos incluem os relatos de Silveira (2014), que descreve o uso de fotonovelas no ensino de língua inglesa, e de Azevedo (2023), que aborda o uso pedagógico dos fotoquadrinhos no ensino de ciências. Essas abordagens estimulam os alunos a produzir obras que trabalham temas relevantes no contexto escolar e que dialogam com os conteúdos das disciplinas.
No contexto da Escola de Design da UEMG, existem algumas iniciativas que tangenciam o tema. Como o projeto de pesquisa Fotografia como Narrativa Ficcional do professor Rogério de Souza e Silva. Esse projeto busca investigar as possibilidades da fotografia como suporte para narrativas de ficção, combinando metodologias de design e elementos da linguagem visual do cinema. O professor desenvolve um trabalho conceitual que remonta a uma época específica, criando sequências fotográficas que emulam as limitações tecnológicas da época e exploram a narrativa de forma inovadora. O projeto resultou em artigos escritos e séries fotográficas que ampliam a compreensão e aplicação da fotografia na construção de histórias fictícias.
Outra iniciativa na Escola de Design, desenvolvida por mim nas disciplinas de Quadrinhos (para o curso de Arte Visuais Licenciatura) e Práticas em Narrativas Gráficas (optativa), é a incorporação da produção de fotoquadrinhos. Nessas disciplinas, são oferecidas atividades específicas para a criação de fotoquadrinhos e a possibilidade de utilizar essa técnica nos trabalhos finais. Essa abordagem tem resultado em obras muito interessantes e permitiu que alunos que não possuem perfil de desenhistas pudessem se expressar através dos quadrinhos de maneira criativa e eficaz.
Páginas da HQ Paulinho e a Mosca, de Phillipe Augusto Campos Reis. A HQ foi o trabalho final da disciplina Práticas em Narrativas Gráficas do ano de 2023. Fonte: acervo do autor.
Outros dois exemplos são a HQ "Manequim" e a HQ "Quando as flores de ipê desabrocham".
A primeira, criada pelo grupo Abiderlan Carvalho, André Diniz Faria, Bárbara de O. Sousa e Helder Maia Boaventura Leite Júnior, é uma história de terror produzida como um trabalho específico de fotoquadrinho na disciplina Práticas em Narrativas Gráficas, em 2022.
A segunda, "Quando as Flores de Ipê Desabrocham", desenvolvida por Ivan Rabelo, Jade Greco, Luiz Damilton e Victória Oliveira, na disciplina Quadrinhos, em 2023, narra um romance inusitado entre dois personagens que são, de fato, carteiras escolares. Essa obra oferece uma abordagem criativa e sensível, explorando como o uso da fotografia pode ampliar o potencial narrativo e visual dos quadrinhos, utilizando objetos cotidianos como personagens.
Como resultado do esforço em demonstrar que o uso da fotografia não apenas é viável, mas também um caminho interessante para a expressão artística, temos o exemplo de Mariana Tanure, ex-aluna da Escola de Design e da disciplina de Quadrinhos, que se tornou quadrinista e se especializou em fotoquadrinhos de bonecos. Mariana cria quadrinhos utilizando fotografias de bonecas, especialmente bonecas Barbie. Além de manipular as bonecas, ela também confecciona artesanalmente as roupas e cenários. Sua arte revisita tematicamente as narrativas das fotonovelas, porém sob uma ótica feminina desestereotipada.
Durante seu curso de Artes Visuais Licenciatura, Mariana desenvolveu um trabalho de conclusão que dialoga diretamente com esse tema, propondo o uso de quadrinhos fotográficos de bonecos como recurso pedagógico nas escolas. Esse projeto reforça o potencial dos fotoquadrinhos como uma ferramenta expressiva e educativa, capaz de engajar os alunos de maneira criativa.
Podemos concluir que os fotoquadrinhos têm uma história rica e um potencial artístico que ainda está sendo (re)descoberto. Olhar para as fotonovelas e o impacto que elas tiveram mostra como essa maneira de contar histórias com fotos evoluiu e fez um grande sucesso, conquistando o público de forma massiva. Apesar de terem sido estigmatizados por um tempo, eles continuam a influenciar a arte dos quadrinhos e podem ser ressignificados com novas abordagens (como os memes já fazem), tanto na academia quanto no mundo da arte. Das novas criações acadêmicas às experimentações digitais e educativas, fica claro que os fotoquadrinhos são uma ferramenta expressiva e versátil para contar histórias. Explorar e usar fotoquadrinhos nos ajuda a repensar o valor e o potencial das narrativas visuais com fotografia, ampliando a diversidade artística e quebrando preconceitos antigos. Assim, estamos não só redefinindo o papel da fotografia nos quadrinhos, mas também descobrindo como misturar diferentes mídias para enriquecer a narrativa visual moderna.
AZEVEDO, Ana Katarina N. Utilizando fotonovelas no ensino de ciências. In: Educação e Conhecimento – Volume 2/ Organização: Maria Célia da Silva Gonçalves; Daniela Cristina Freitas Garcia Pimenta. Belo Horizonte: Editora Poisson, 2023. Disponível em: https://poisson.com.br/2018/produto/educacao-e-conhecimento-volume-2/
GARCIA, Angelo Mazzuchelli. Fotonovela e fotorreportagem: a relação texto/imagem e a ideia de narratividade. Blucher Arts Proceedings, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 252-274, 2014.
JOANILHO, André Luiz; JOANILHO, Mariângela Peccioli Galli. Sombras literárias: a fotonovela e a produção cultural. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 28, nº 56, p. 529-548 – 2008
MACHADO, Mariana Tanure et al. Criação de histórias em quadrinhos usando a fotografia de bonecos: contribuições para as aulas de Arte. Monografia (licenciatura em Artes Visuais) – UEMG – Belo Horizonte, 2023.
SAMPAIO, Isabel Silva. Para uma memória da leitura: a fotonovela e seus leitores. Tese (Doutorado) – Unicamp – Campinas, 2008.
SILVEIRA, Deise da Fonseca Schneider da. A Fotonovela como meio de produção textual no contexto escolar. In: Os Desafios da Escola Pública Paraense Cadernos PDE. Volume 1, 2014. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoes_pde/2014/2014_unespar-paranagua_lem_artigo_deise_da_fonseca_schneider_da_silveira.pdf