Democracia e mérito nas universidades públicas

Por que sou contra as escolhas paritárias de reitores nas universidades públicas?


[Escrevi esse texto em outubro de 2013, em razão das disputas eleitorais que testemunhei na Universidade Federal de Santa Maria, na qual fui professor de 2009 a 2016. Hoje me sinto distante dessas discussões e acho o texto meio ingênuo e chatinho. Mas, se me perguntam hoje o que penso do assunto, ainda não tenho nada muito melhor a dizer... Então, aqui vai, por enquanto...]


As formas democráticas de governo consolidaram-se de tal maneira em nossa cultura que hoje é difícil entender como alguém poderia questioná-las. A democracia é um método pacífico de resolução de disputas políticas. Há, evidentemente, os métodos violentos, que são indesejáveis em todos os casos. Outros métodos, como o recurso à autoridade ou à tradição, são também indesejáveis em sociedades heterogêneas e complexas como a nossa, em que autoridades e tradições morais diversas coexistem e mostram-se seguidamente incompatíveis entre si. Portanto, no que diz respeito às disputas políticas, a democracia se impôs como a alternativa mais razoável. Disso não se segue que ela seja adequada também para a resolução de disputas não políticas. Em divergências de ordem técnica, científica ou filosófica, a opinião da maioria não é um indício seguro da verdade ou da razoabilidade; não se decidem esses tipos de conflitos pelo voto. A democracia encontra sua razão de ser no domínio propriamente político, isto é, naquele domínio onde se trata de resolver conflitos que dizem respeito às vontades das pessoas, mas perde sua razão de ser quando se trata de conflitos sobre o que é verdadeiro ou falso.

Se não estou enganado, essa distinção remonta ao pensamento grego antigo. A “oração fúnebre” de Péricles (em Tucídides, História da Guerra do Peloponeso <http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/0041.pdf>, p. 109) distingue explicitamente as questões com relação às quais todos são iguais (as questões políticas, regidas pela lei) das questões com relação às quais alguns sabem mais que outros ou têm mais mérito: “enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos...”. No que diz respeito às questões técnicas (como construir uma ponte, qual a melhor maneira de cultivar o campo, quando ocorrerá o próximo eclipse etc.), algumas pessoas têm mais autoridade que as demais. Já em questões políticas, ninguém pode decidir por mim o que eu quero para o país em que vivo. Um general pode ser especialista em estratégias de guerra, mas não tem mais autoridade do que qualquer outra pessoa para decidir se devemos, como nação, buscar a guerra ou a paz. Ele pode fornecer informações relevantes sobre o que se seguiria a uma declaração de guerra ou paz. Mas depois de feitos esses esclarecimentos, a questão seguinte – ir à guerra ou evitá-la – é política e não técnica, e sobre isso todos têm a mesma autoridade. Do mesmo modo, se queremos ou não desenvolver essa ou aquela disciplina acadêmica (digamos, a engenharia petrolífera, por oposição à medicina; ou a agricultura em vez da astrofísica) essa pode ser uma questão de política, de estratégia de desenvolvimento de um país. São opções estratégicas de desenvolvimento tendo em vista o que se quer para o futuro do país. Governos distintos fizeram e fazem opções distintas a esse respeito. No entanto, as questões sobre como implementar essas políticas, o ensino e a pesquisa propriamente ditos, fogem ao domínio próprio da democracia. São questões sobre as quais alguns grupos de pessoas sabem mais do que outros (porque se especializaram nisso), e é natural que se delegue a eles maior autoridade para resolvê-las. Essa delegação de autoridade precisa naturalmente ser regrada e constrangida, para evitar abusos, mas isso vale para o exercício de qualquer cargo, seja ele técnico ou político.

Esse assunto mostra-se espinhoso quando aplicado à escolha de reitores universitários. Nas últimas décadas, buscou-se implementar em diversas universidades públicas brasileiras formas democráticas de escolha de reitores e diretores. No entanto, embora esses cargos tenham uma dimensão política inevitável -- como, aliás, qualquer cargo de autoridade, inclusive o de professor -- são primariamente técnicos. Um indicador disso é o fato de que são via de regra exercidos por professores, isto é, subentende-se que certas qualificações técnicas são essenciais ao cargo. Esse tipo de restrição não se faz para a eleição de prefeitos, parlamentares ou presidentes: qualquer adulto alfabetizado pode se candidatar. Diferentemente dos cargos primariamente políticos, em que se decidem metas gerais para a cidade, estado ou país, as metas gerais da universidade não são decididas por seus gestores. Algumas metas são fixas: a pesquisa, o ensino e a extensão. Não compete a reitores mudar isso. Outras metas variam conforme a política educacional, e tampouco compete aos reitores decidir sobre elas. No caso das universidades federais, cabe ao governo federal, que é eleito para esse e outros propósitos. Com certeza, reitores e diretores podem se fazer influentes nas esferas políticas, mas isso não é prerrogativa deles. Qualquer um pode se tornar influente, como convém a uma democracia. Na gestão de universidades públicas, portanto, busca-se primariamente a decisão por mérito, e não a democracia. A universidade não tem como objetivo resolver problemas sociais, mas educar indivíduos e realizar pesquisas que poderão, posteriormente indiretamente afetar os destinos da sociedade. Muitas pesquisas realizadas na universidade serão completamente alheias aos interesses e problemas sociais. É necessário que assim seja. Sem isso, a pesquisa acadêmica não tem como funcionar.

Em razão disso, sou contrário às propostas de escolhas paritárias de reitores e diretores universitários, em que estudantes e servidores técnico-administrativos contribuem com peso igual ao dos professores. Se os professores são os especialistas em ensino e pesquisa, não é natural que caiba a eles peso maior nessas decisões? O sistema paritário nas consultas à comunidade universitária parece ter tido um papel importante em décadas passadas, sobretudo na década de 1980, quando o Brasil saía de uma ditadura e redescobria a democracia. O fato de nas universidades implementarem-se esses tipos de organização enviava um recado ao país como um todo, parecido ao papel que teve por exemplo, a "democracia corintiana" no futebol. Esse papel de protesto, hoje, está fora de lugar. Hoje o sistema paritário de escolhas e gestores politiza descabidamente decisões que são primariamente técnicas. As escolhas e decisões mais importantes que um reitor efetivamente toma dependem mais de avaliações de mérito acadêmico do que de qualquer avaliação política. Com um colégio eleitoral divido em três segmentos -- estudantes, professores e servidores técnico-administrativos --, há uma tendência natural de as discussões se voltarem para os interesses corporativos de cada um dos segmentos, e não para o que mais importa para a universidade: pesquisa, ensino e extensão. A participação de estudantes e servidores técnico-administrativos nessas escolhas é importante, pois torna o processo mais transparente e controla abusos e desvios. Mas a função de dirigir e decidir as questões técnicas do ensino e da pesquisa, a meu ver, é melhor realizada por quem tem a formação técnica apropriada para isso: os professores. A maior parte dos técnicos administrativos nunca fez pesquisa nem se habilitou para lecionar. Os estudantes estão aprendendo esses ofícios, mas enquanto ainda são estudantes em geral ainda têm pouco domínio dessas funções. (Em algumas universidades estrangeiras -- como a Universidad de la República, em Montevidéu -- a escolha de diretores têm a participação de ex-alunos, em vez de servidores técnicos-administrativos, o que me parece fazer mais sentido.)

É verdade que quando mais alto é o cargo na hierarquia acadêmica, mais político ele tende a ser. O exercício do cargo de reitor certamente envolve mais decisões políticas do que o de professor. Contudo, uma vez que as metas gerais da universidade são pré-fixadas e que as políticas de ensino são estabelecidas pelo Ministério da Educação, há bem pouco que um reitor pode fazer para efetivamente resolver disputas de interesses propriamente políticos. Ele pode administrar bem ou mal a universidade, ser mais transparente ou menos transparente, ser mais sensato ou mais dogmático. Essa variação nas atitudes, contudo, pouco afeta o que efetivamente se faz na universidade -- o ensino, a pesquisa e a extensão. Tampouco afeta as políticas educacionais, que, numa democracia, devem ser decididas não pela minoria que atualmente trabalha ou estuda nas universidades públicas, mas pela sociedade como um todo, do qual saem os recursos que sustentam essas universidades. Nos últimos anos, por exemplo, a principal mudança ocorrida nas universidades federais foi a implementação do plano Reuni. O orçamento da UFSM em 2009 era de aproximadamente R$ 400 milhões anuais. Hoje, é de aproximadamente R$ 1 bilhão. Houve uma multiplicação de obras, cursos, vagas, e contratações sem precedentes ao longo dos últimos quatro anos. Mas isso nada teve a ver com a escolha de reitores. Foi um plano decidido pelo governo federal. Coube aos reitores das universidades implementar -- com maior ou menor eficiência -- as políticas federais. Essa implementação de políticas não foi ela própria primariamente política, e sim técnica. Os cursos que foram beneficiados pelo plano Reuni foram aqueles que submeteram projetos minimamente adequados. E isso me parece confirmar que as funções de reitores e diretores acadêmicos são primariamente técnicas e não políticas. Consequentemente, acho que é inadequado buscar formas igualitárias ou paritárias na escolha dos ocupantes desses cargos: como em qualquer questão técnica, algumas pessoas estão em melhores condições de decidir -- o que, é claro, não implica que sejam boas as suas decisões.

Compreendo que essa minha opinião soe antipática, especialmente a estudantes e servidores técnico-administrativos. Mas antipatia não é argumento. Então, pergunto: descontados os desafetos, alguém tem algo razoável para dizer em favor da paridade nas consultas para escolha de gestores universitários?