O Desconhecido e os Problemas Psíquicos
Camille Flammarion
Traduzido do Francês
Camille Flammarion - L'Inconnu et les problèmes psychiques (1917)
Manifestações de moribundos. Aparições. Telepatia. Comunicações psíquicas. Sugestão mental. Vista a distância. O mundo dos sonhos. A predição do futuro.
Camille Flammarion foi um renomado astrônomo francês que durante décadas reuniu e classificou mais de 4.000 narrações sobre os fenômenos considerados sobrenaturais.
A presente obra é um repositório de inúmeros fatos surpreendentes, analisados cientificamente pelo autor com o objetivo de demonstrar a existência da alma como elemento real e independente do corpo físico, e que sobrevive à destruição deste último.
São expostos, conforme as palavras do autor, na conclusão da obra, “442 fenômenos de ordem psíquica que indicam a existência de forças ainda desconhecidas agindo entre os seres pensantes e pondo-os em comunicação latente uns com os outros”
Flammarion narra e comenta casos de diversas categorias de fenômenos psíquicos, entre eles: as manifestações telepáticas de moribundos, aparições, comunicações psíquicas, sugestão mental, vista a distância, sonhos e predições do futuro.
Por fim, convida-nos ao estudo e ao trabalho na busca do conhecimento desse mundo invisível e das forças ainda desconhecidas que nele operam.
As constantes e universais aspirações da humanidade pensante, a lembrança e o respeito dos mortos, a ideia inata de uma justiça imanente, o sentimento de nossa consciência e de nossas faculdades intelectuais, a miserável incoerência dos destinos terrestres, comparada à ordem matemática que rege o Universo, a imensa vertigem do infinito e da eternidade que nos vem das alturas da noite constelada e, no fundo de todas as nossas concepções, a identidade permanente do nosso eu, apesar das variações e das transformações perpétuas da substância cerebral — tudo concorre para nos dar a convicção da existência de nossa alma como entidade individual, da sua sobrevivência à destruição do nosso organismo corporal e da sua imortalidade.
A demonstração científica, entretanto, não está ainda feita, e os fisiologistas ensinam, ao contrário, que o pensamento é uma função do cérebro, que sem este não há pensamento e que tudo em nós se extingue com a morte do corpo. Há flagrante contradição entre as superiores aspirações da humanidade e as conclusões da chamada ciência positiva.
Por outro lado, não se pode saber, nem se pode afirmar, senão aquilo que se conseguiu aprender, e ninguém saberá jamais senão o que lhe for dado aprender. Somente a ciência progride na história atual da humanidade. Ainda que bem raramente se lhe faça a justiça e se lhe testemunhe o reconhecimento a que faz jus, a verdade é que a Ciência transformou o mundo. Estão firmados sobre ela, na época presente, os alicerces da nossa vida intelectual e mesmo da nossa vida material. Somente a ciência nos pode esclarecer e conduzir.
Esta obra é um ensaio de análise científica de fatos considerados, geralmente, como estranhos à ciência e até mesmo como incertos, fabulosos e mais ou menos imaginários.
Mostrarei que tais fatos existem.
Tentarei aplicar os métodos das ciências de observação à constatação e à análise de fenômenos relegados até agora, em regra, ao domínio dos contos, do maravilhoso ou do sobrenatural e procurarei demonstrar que eles são produzidos por forças ainda desconhecidas e pertencentes a um mundo invisível, natural, diferente do que é abrangido pelos nossos sentidos.
É racional esse tentame? É lógico? Poderá conduzir-nos a resultados apreciáveis? Ignoro-o. Contudo, não há negar que seja ele interessante.
E se puder indicar-nos o caminho a seguir para chegarmos ao conhecimento da natureza da alma humana e à demonstração científica da sua sobrevivência, conduzirá certamente a humanidade a um progresso superior a todos os que lhe têm sido trazidos, até aqui, pela evolução gradual de todas as outras ciências reunidas.
A razão humana não pode admitir como certo senão o que se acha demonstrado. Mas, por outro lado, não temos o direito de negar coisa alguma a priori, pois que o testemunho dos nossos sentidos é incompleto.
É nosso dever encetarmos o estudo de qualquer questão, sem nenhuma ideia preconcebida, e nos dispormos a admitir o que ficar provado, negando-nos, pelo contrário, a admitir o que não tiver essa comprovação necessária.
Geralmente, em todas as questões que se referem à telepatia, às aparições, à vista a distância, à sugestão mental, aos sonhos premonitórios, ao magnetismo, às manifestações psíquicas, ao hipnotismo, ao Espiritismo e a certas crenças religiosas, o que surpreende é o descaso que se tem feito do senso crítico no exame dos assuntos em discussão, em contraste com a profusão incoerente de tolices que se tem acolhido como verdades.
É aplicável, porém, o método de observação científica a todas essas pesquisas? Eis o que nos cumpre desde logo apreciar, através mesmo dessas pesquisas.
Em princípio, não devemos dar crédito a coisa alguma sem provas. Dois métodos apenas existem, nesse terreno: o da antiga escolástica, que afirmava certas verdades a priori, às quais deviam os fatos adaptar-se, e o da ciência moderna, proposto por Bacon, que parte da observação dos fatos e somente estabelece a teoria mediante a sua constatação.
Escusado seria acrescentar que o segundo desses métodos é o aplicado nestes estudos.
O programa da presente obra é essencialmente científico. Deixarei de lado, por princípio, as coisas que não me parecem estar confirmadas, seja pela observação, seja pela experiência.
Muitos há que objetam: “Que adianta pesquisar? Nada podereis encontrar nesse domínio, pois aí se acham segredos cujo conhecimento Deus a si próprio reserva.” Sempre existiram pessoas que preferem a ignorância ao saber. Com esta maneira de raciocinar e de agir, jamais se chegaria a saber coisa alguma, e mais de uma vez foi ela aplicada também às pesquisas astronômicas. É o modo de raciocinar dos que têm o hábito de não pensar por si mesmos e que entregam a pretensos mentores o cuidado de conservar em paz suas consciências, confiadas sempre à direção de outrem.
Fingem outros objetar que esses capítulos das ciências ocultas fazem recuar o nosso saber para a Idade Média, em lugar de o impelir para o futuro luminoso, preparado pelo progresso moderno.
Ora, o estudo raciocinado desses fatos tem tanto poder para levar-nos aos tempos dos sortilégios, como o estudo dos fenômenos astronômicos e de conduzir-nos ao tempo da Astrologia.
Ao começar esta obra, os meus olhos acabam de passar sobre o prefácio do livro do Conde Agenor de Gasparin sobre As mesas girantes e de ler nele o que se segue:
“Há uma expressão, pesada e agressiva, que importa ser esclarecida: “o objetivo de meu trabalho não é sério”. Em outros termos, não queremos saber se tendes ou não tendes razão; basta-nos saber que a verdade, cuja defesa pretendeis tomar, não se acha em o número das verdades catalogadas e autorizadas, dessas de que a gente pode tratar sem comprometer-se, verdades confessáveis, verdades sérias. Existem verdades ridículas; tanto pior para elas! Sua oportunidade chegará talvez e então as pessoas que se respeitam dignar-se-ão tomá-las sob a sua proteção; mas, esperando essa oportunidade, por todo o tempo em que existam pessoas que pisquem os olhos ao ouvir falar de tais verdades ou que a respeito delas haja murmúrios de zombaria nos salões, será de mau gosto afrontar o clamor da opinião assentada. Não nos faleis da verdade! Trata-se de guardar as conveniências, de ter compostura, de não se afastar da trilha por onde marcham enfileirados os homens sérios.”
Estas palavras, escritas há quase meio século, são sempre verdadeiras. A nossa pobre espécie humana, tão ignorante de tudo, para a qual as horas se passam, em geral, tão estupidamente, compreende em suas fileiras indivíduos que têm por si mesmos uma admiração muito séria, e se consideram, por isso, capazes de julgar os homens e as coisas. Só há um partido a tomar quando se estuda uma questão qualquer: não se preocupar com esses indivíduos, nem com as suas opiniões públicas ou particulares e ir direito, à frente deles, na pesquisa da verdade. Três quartas partes da humanidade são constituídas de seres ainda incapazes de compreender essa pesquisa e que vivem sem pensar por si mesmos. Deixemo-los com os seus julgamentos superficiais e desprovidos de valor real.
Há muito tempo que me ocupo destas questões, nas horas de lazer, que me restam dos meus trabalhos astronômicos. Meu antigo diploma de “associado livre da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas”, assinado por Allan Kardec, acaba de passar sob os meus olhos: é datado de 15 de novembro de 1861 (eu tinha então 19 anos e já estava há três anos como aluno-astrônomo no Observatório de Paris). Há mais de um terço de século tenho estado ao corrente da maior parte dos fenômenos observados no conjunto do nosso globo terrestre e tenho examinado a maior parte dos médiuns. Sempre me pareceu que esses fenômenos mereciam estudados com um critério de livre exame e acreditei, em várias circunstâncias, que devia insistir neste ponto. 1 É, sem dúvida alguma, por causa desta longa experiência pessoal, que tão insistentemente se me tem reclamado a redação desta obra.
Do mesmo modo a prática habitual dos métodos experimentais e das ciências de observação assegura um controle mais digno de confiança do que as vagas aproximações com que nos satisfazemos habitualmente na vida ordinária.
Eu, porém, continuava hesitante. Terá, realmente, chegado o tempo de ser esse estudo iniciado? Estaremos suficientemente preparados para isso? Terá chegado o fruto à maturidade?
Pode-se, entretanto, começar (e assim se procede razoavelmente). Os séculos se encarregarão de desenvolver o gérmen lançado à terra.
É este, pois, um livro de estudos, concebido e executado com o exclusivo propósito de conhecer a realidade, sem preocupação das ideias geralmente admitidas até este momento, com a mais completa independência de espírito e o mais absoluto desinteresse para a opinião pública.
Necessário é, por outro lado, confessar que se este trabalho é interessante e por si mesmo pode ele apaixonar, do ponto de vista da pesquisa de verdades ainda não conhecidas, bastante ingrato é ele sob o ponto de vista da opinião pública.
Todo mundo, ou, pelo menos, quase todo mundo, desaprova os que lhe consagram algum tempo.
Pensam os homens de ciência que não constitui ele um assunto científico e que é sempre lamentável perder uma pessoa o seu tempo. Os que, pelo contrário, creem cegamente nas comunicações espíritas, nos sonhos, nos pressentimentos, nas aparições, acham que é inútil introduzir nesses estudos um espírito crítico de análise e de exame.
Não podemos, de modo algum, desconhecer que o assunto permanece impreciso e obscuro e que teremos muita dificuldade em esclarecê-lo convenientemente.
Não servisse, porém, este trabalho senão para levar uma pequena pedra ao edifício dos conhecimentos humanos, e eu já me considerava feliz em havê-lo empreendido.
O mais difícil para o homem é, quer me parecer, conservar-se absolutamente independente e livre de toda ambição pessoal; dizer o que pensa, o que sabe, sem receio algum da opinião que possam fazer a seu respeito, permanecendo alheio a tudo isso. Pôr em prática a divisa de Jean Jacques é acarretar inimigos sem conta. A humanidade é, antes de tudo, uma raça egoísta, grosseira, bárbara, ignorante, covarde e hipócrita. Os seres que vivem pelo espírito e pelo coração constituem exceção.
O mais curioso, talvez, é que a livre pesquisa da verdade desagrada a todo mundo, isso porque cada cérebro tem seus pequenos prejuízos, de que não se quer desapegar.
Se eu disser, por exemplo, que a imortalidade da alma, já ensinada pela Filosofia, será brevemente demonstrada experimentalmente pelas ciências psíquicas, mais de um céptico rirá da minha afirmativa.
Se, pelo contrário, eu afirmar que o espírita que evoca Sócrates ou Newton, Arquimedes ou Santo Agostinho, por meio da sua mesa, e que supõe conversar com eles, é vítima de uma ilusão, eis que todo um partido lançará mão de enormes pedras para lapidar-me.
Mas, ainda uma vez, não nos preocupemos com essas diversas opiniões.
É comum perguntar-se-nos: “A que podem conduzir esses estudos sobre os problemas psíquicos?”
E à pergunta responderemos: — A mostrar que a alma existe e que não são quimeras as esperanças de imortalidade.
O materialismo é uma hipótese que não pode mais ser sustentada, desde que melhor conhecemos a matéria. Esta não oferece mais o sólido ponto de apoio que se lhe atribui. Os corpos são constituídos de milhares de átomos invisíveis, móveis, que não se tocam e se acham em perpétuo movimento uns ao redor dos outros; esses átomos, infinitamente pequenos, são presentemente considerados em si mesmos como centros de força. Onde está a matéria? Ela desaparece sob o influxo do dinamismo.
Uma lei intelectual rege o Universo, no organismo do qual o nosso planeta não é mais do que humilde órgão: é a lei do progresso. Mostrei em minha obra O Mundo Antes da Criação do Homem que o transformismo de Lamarck e de Darwin é apenas uma constatação de fatos e não uma causa (o produto não pode ser jamais superior à sua fonte produtora), e em minha obra O Fim do Mundo, que nada pode acabar, pois que, desde toda a eternidade, tudo o que existiu existe ainda.
O estudo do Universo faz-nos entrever a existência de um plano e de um fim, que não têm por objeto especial o habitante do nosso planeta e que são, aliás, indevassáveis pela nossa pequenez.
A lei do progresso, que rege a vida, a organização física dessa mesma vida, a atração dos sexos, a inconsciente previdência das plantas, dos insetos, das aves, etc., para se assegurarem a sua progenitura; o exame dos principais fatos da História Natural estabeleceu, como escreveu Oersted, que há um princípio espiritual na Natureza. 2
Os atos da vida habitual não nos mostram o pensamento senão no cérebro do homem e dos animais. Dessa observação concluíram os fisiologistas que o pensamento é uma propriedade, um produto do cérebro. Afirma-se, dizemos nós, que não há pensamento sem cérebro.
Ora, nada nos autoriza a admitir que a esfera de nossas observações seja universal, que ela compreenda todas as possibilidades da Natureza, em todos os mundos.
Ninguém tem o direito de afirmar que sem cérebro não possa existir pensamento.
Se um ou outro dos milhões de micróbios que habitam nosso corpo procurasse generalizar suas impressões, poderia conjeturar, navegando no sangue de nossas artérias ou de nossas veias, devorando nossos músculos, furando-nos os ossos, viajando pelos diversos órgãos do nosso corpo, desde a cabeça até os pés, que este corpo, como o seu, é regido por uma unidade orgânica?
Estamos precisamente no mesmo caso relativamente ao Universo astral.
O Sol, coração gigantesco do seu sistema, fonte de vida, resplandece no centro das órbitas planetárias, gravitando, por sua vez, em um organismo sideral mais vasto ainda. Não temos o direito de negar que uma ideia possa residir no espaço e dirigir seus movimentos como nós dirigimos os movimentos de nossos braços ou de nossas pernas.
A potência instintiva que rege os seres vivos, as forças que entretêm as pulsações de nossos corações, a circulação de nosso sangue, a respiração de nossos pulmões, o funcionamento de nossos órgãos, têm uma existência tão positiva, como outras, no universo material, que regem condições de existência incomparavelmente mais importantes do que as de um ser humano, pois que, por exemplo, se o Sol se extinguisse ou se o movimento da Terra fosse deslocado, não seria apenas um ente humano que viria a morrer, mas a população inteira do globo, sem falar dos outros planetas.
Existe no cosmos um elemento dinâmico, invisível e imponderável, espalhado através do Universo, independente da matéria visível e ponderável e que age sobre ela. E nesse elemento dinâmico há uma inteligência superior à nossa. 3
Sim, sem dúvida alguma, nós pensamos pelo cérebro, do mesmo modo que vemos pelos olhos e ouvimos pelo sentido do ouvido; mas não é o nosso cérebro que pensa, da mesma forma que não são os nossos olhos que veem. Que se diria de alguém que felicitasse uma luneta por ver nitidamente os canais de Marte? O olho é um órgão, como igualmente o é o cérebro.
Os problemas psíquicos não são, como parece por vezes, tão estranhos assim aos problemas astronômicos. Se a alma é imortal, se o céu é a sua futura pátria, o conhecimento da alma não pode permanecer estranho ao conhecimento do céu. O espaço infinito não é o domínio da eternidade? Que há, portanto, de estranhável em que astrônomos tenham sido pensadores, pesquisadores, ansiosos de se esclarecerem sobre a natureza real do homem, como a da Criação? Não exprobremos a Schiaparelli, diretor do Observatório de Milão, observador assíduo do planeta Marte; ao professor Zöllner, do Observatório de Leipzig, autor de pesquisas importantes sobre os planetas; a Crookes, que foi astrônomo antes de ser químico; ao astrônomo-físico Huggins e a tantos outros sábios como o professor Richet, Wallace, Lombroso, etc., o terem procurado saber o que há de verdade em tais manifestações. A verdade é uma só e tudo se contém na Natureza.
Eu ousaria mesmo acrescentar que não haveria grande interesse para nós em estudarmos o universo sideral, se estivéssemos certos de que ele nos é e nos ficará eternamente estranho, se jamais pudéssemos em coisa alguma conhecê-lo pessoalmente. A imortalidade através das esferas siderais parece-me ser o complemento lógico da Astronomia.
Em que nos pode o céu interessar, se não vivemos mais do que um dia sobre a Terra?
As ciências psíquicas acham-se muito retardadas relativamente às ciências físicas.
A astronomia teve seu Newton, a Biologia tem apenas o seu Copérnico, a Psicologia ainda dispõe somente dos seus Hipparchos e dos seus Ptolomeus. Tudo o que podemos fazer atualmente é recolher observações, coordená-las e ajudar o desenvolvimento da nova ciência.
Pressente-se e pode-se prever que a religião do futuro será científica, será fundada no conhecimento dos fatos psíquicos. Esta religião da ciência terá sobre todas as outras anteriores uma vantagem considerável: a unidade. Hoje, um judeu ou um protestante não admite o culto da virgem e dos santos, um muçulmano abomina “o cão do cristão”, um budista repudia os dogmas do ocidente. Nenhuma dessas divisões poderia existir em uma religião fundada sobre a solução científica geral dos problemas psíquicos.
Estamos, porém, longe de chegar às questões de teorias ou de dogmas. O que importa, antes de tudo, é saber se em verdade os fenômenos de que se trata existem e de se evitar a perda de tempo e o ridículo de procurar a causa do que não existe! Constatemos desde logo os fatos. 4 As teorias virão mais tarde. Esta obra será sobretudo composta de observações, de exemplos, de constatações, de testemunhos. O mínimo de frases possível.
Trata-se de acumular provas de tal sorte que a certeza resulte do seu acúmulo.
Ensaiaremos uma classificação metódica dos fenômenos, reunindo em grupos aqueles que entre si oferecem maior analogia e procurando em seguida explicá-los.
Este livro não é um romance, mas um repositório de documentos, uma tese de estudo científico. Desejei, na sua confecção, seguir a máxima do astrônomo Laplace: “Estamos tão longe de conhecer todos os agentes da Natureza — escrevia ele, precisamente a propósito do magnetismo humano —, que não seria próprio de um filósofo negar os fenômenos unicamente porque são eles inexplicáveis no estado atual de nossos conhecimentos. O que nos cumpre, apenas, é examiná-los com uma atenção escrupulosa e determinar até que ponto é preciso multiplicar as observações ou as experiências, a fim de obter uma probabilidade superior às razões que se pode invocar, por outro lado, para não admiti-las.”
Está conhecido o nosso programa: Aqueles que estiverem dispostos a seguir-nos verão que, se este trabalho tem um mérito, é o da sinceridade. Desejamos saber se se pode chegar à afirmativa de que os fenômenos misteriosos de que a humanidade parece ter sido testemunha, desde a mais remota antiguidade, existem realmente. Não temos outro objetivo senão a pesquisa da verdade.
Paris, março de 1900.
Crer que tudo se sabe é um erro profundo: O horizonte tomar por limites do mundo. Lemierre.
Um grande número de homens sofrem de verdadeira miopia intelectual e, segundo a imagem precisa de Lemierre, tomam o seu horizonte pelos limites do mundo. Os fatos novos, as ideias novas os ofuscam, os horripilam. Não querem ver mudança alguma na marcha costumeira das coisas. A história do progresso dos conhecimentos humanos é para eles letra morta.
A audácia dos pesquisadores, dos inventores, dos revolucionários, parece-lhes criminosa. Afigura-se-lhes, aos seus olhos, que a humanidade tenha sido sempre o que é hoje, e eles não se lembram nem da idade da pedra, nem da invenção do fogo ou das casas, das carruagens e dos caminhos de ferro, nem das conquistas do espírito, nem das descobertas da Ciência. Neles ainda se encontram alguns traços da herança dos peixes e quiçá dos moluscos.
Comodamente assentados, de resto, em suas largas poltronas, esses admiráveis burgueses se conservam imperturbavelmente satisfeitos. São absolutamente incapazes de admitir o que não compreendem e nem sequer desconfiam de que nem tudo compreendem.
Ignoram que no fundo da explicação de todos os fenômenos da natureza está o desconhecido e contentam-se com simples mudanças de palavras. Por que razão cai uma pedra? “Porque a Terra a atrai.” Uma resposta assim tão clara basta à sua ambição. Acreditam eles compreender. Uma fraseologia clássica os seduz, como no tempo de Molière: “ossabandus, nequeis, nequer, potarinum quipsa milus... eis aí justamente o que faz que vossa filha seja muda”, dizia Sganarelo.
Em todos os séculos, quaisquer que sejam os graus de civilização, encontram-se desses homens simples, tranquilos, nem sempre desprovidos de vaidade, que negam candidamente as coisas inexplicáveis e que pretendem julgar a insondável organização do Universo. Tais como duas formigas, em um jardim, entretendo-se a trocar ideias sobre a história da França ou sobre a distância a que nos encontramos do Sol.
Percorramos a História e edifiquemo-nos com alguns desses exemplos.
A escola de Pitágoras, libertando-se das ideias comuns sobre a natureza, elevara-se até à noção do movimento diurno do nosso planeta, que poupa ao céu imenso e sem limites a obrigação absurda de girar em vinte e quatro horas em torno de um ponto insignificante. Que o sufrágio universal se revolte contra esta ideia genial, ainda se tolera: não se pode pedir a um elefante que voe até o ninho das águias. Mas a força dos prejuízos vulgares é tal que, mesmo espíritos superiores como o próprio Platão e Arquimedes, essas duas brilhantes inteligências, sentiram-se na impossibilidade de elevar-se a esta concepção, recusada até pelos astrônomos Hipparcho e Ptolomeu. Este não pôde conter-se de rir a bandeiras despregadas de uma tal chocarrice. Qualifica ele a teoria do movimento da Terra de “completamente ridícula”. A expressão é sobremodo pitoresca. Como que se vê o ventre de um bom monge, a sacudir-se e rebolar-se todo, diante de um gracejo desta força, panu guéloïotaton! Deus do céu, como isso é divertido! A Terra a girar! Estão doidos os pitagóricos: a cabeça deles é que gira.
Sócrates bebe a cicuta por se ter libertado das superstições de seu tempo. Anaxágoras é perseguido por ter ousado ensinar que o Sol é maior que o Peloponeso. Dois mil anos mais tarde, Galileu é perseguido, a seu turno, por afirmar a grandeza do sistema do mundo e a insignificância do nosso planeta.
A passos lentos avança a pesquisa da verdade, mas as paixões humanas e os cegos interesses dominadores permanecem inalteráveis.
E a dúvida ainda perdura, apesar das provas acumuladas por toda a moderna astronomia. Não possuímos nós, em nossas bibliotecas, uma obra publicada em 1806, expressamente contra o movimento da Terra e na qual seu autor declara que jamais poderá admitir esteja ela a girar como um capão assado ao espeto?
Esse intrépido capão era um homem, aliás, de bastante espírito (o que não exclui a ignorância); era um membro do Instituto, ostentando o nome de Mercier, mais conhecido por seu Tableau de Paris e que se poderia supor dotado de um critério mais elevado e mais firme.
Assistia eu, certo dia, a uma sessão da Academia das Ciências, dia esse de hilariante recordação, em que o físico du Mon-cel apresentou o fonógrafo de Édison à douta assembleia. Feita a apresentação, pôs-se o aparelho docilmente a recitar a frase registrada em seu respectivo cilindro. Viu-se então um acadêmico de idade madura, de espírito penetrado, saturado mesmo das tradições de sua cultura clássica, nobremente revoltar-se contra a audácia do inovador, precipitar-se sobre o representante de Édison e agarrá-lo pelo pescoço, gritando: “Miserável! nós não seremos ludibriados por um ventríloquo!” Senhor Bouillaud chamava-se este membro do Instituto. Foi isso a 11 de março de 1878. Mais curioso ainda é que seis meses após, a 30 de setembro, em uma sessão análoga, sentiu-se ele muito satisfeito em declarar que, após maduro exame, não constatara no caso mais do que simples ventriloquia, mesmo porque “não se pode admitir que um vil metal possa substituir o nobre aparelho da fonação humana”. Segundo esse acadêmico, o fonógrafo não era mais do que uma “ilusão de acústica”.
Quando Lavoisier procedeu à análise do ar e descobriu que o mesmo se compõe principalmente de dois gases, o oxigênio e o azoto, essa descoberta desconcertou mais de um espírito positivo e equilibrado.
Um membro da Academia das Ciências, o químico Baumé (inventor do areômetro), acreditando firmemente nos quatro elementos da ciência antiga, escrevia em tom doutoral: “Os elementos ou princípios dos corpos têm sido reconhecidos e confirmados pelos físicos de todos os séculos e de todas as nações. Não é presumível que esses elementos, considerados como tais durante um lapso de dois mil anos, sejam postos, em nossos dias, em o número das substâncias compostas, e que se possa dar como certos tais processos para decompor a água e o ar e tais raciocínios absurdos, para não dizer coisa pior, com que se pretende negar a existência do fogo e da terra.
As propriedades reconhecidas nos elementos correspondem a todos os conhecimentos físicos e químicos adquiridos até o presente; têm elas servido de base a uma infinidade de descobertas e de teorias, cada qual mais luminosa, às quais seria preciso retirar toda confiança, se o fogo, o ar, a água e a terra não fossem mais reconhecidos como elementos.
Todo o mundo sabe hoje em dia que esses quatro elementos, tão religiosamente defendidos, não existem e que a razão está do lado dos químicos modernos que conseguiram decompor o ar e a água. Quanto ao fogo ou flogístico que, segundo Baumé e seus contemporâneos, era o deus ex machina da natureza e da vida, ele jamais existiu senão na imaginação dos professores.
O próprio Lavoisier, esse grande químico, não está indene da mesma acusação contra os que “supõem tudo descoberto”, pois que dirigiu um sábio relatório à Academia para demonstrar que não podem cair pedras do céu. Ora, a queda de aerólitos, a propósito da qual ele escreveu esse relatório oficial, tinha sido observada em todos os seus detalhes: tinha-se visto e ouvido o bólido explodir, bem como o aerólito cair, tendo sido levantado do chão ainda ardente, para ser em seguida submetido ao exame da Academia. E esta declarou, pelo órgão do seu relator, que a coisa era inacreditável e inadmissível. Assinalemos também que há milhares de anos caem pedras do céu diante de centenas de testemunhas, que tem sido apanhado grande número dessas pedras, tendo sido conservadas diversas nas igrejas, nos museus, nas coleções. Mas faltava ainda, no fim do último século, um homem independente para afirmar que de fato caem essas pedras do céu: tal homem foi Chladui.
Não atiro pedras em Lavoisier nem noutra qualquer pessoa, entenda-se bem, mas na tirania dos prejuízos. Não se acreditava, não se queria acreditar que pudessem cair pedras do céu. Isso parecia contrário ao bom senso. Por exemplo, Gassendi é um dos espíritos mais independentes e mais esclarecidos do século XVII. Um aerólito que pesava trinta quilogramas caiu na Provença, em 1627, em um dia de sol muito claro: Gassendi viu-o, tocou-o, examinou-o — e o atribuiu a qualquer erupção vulcânica terrestre desconhecida.
Os professores peripatéticos do tempo de Galileu afirmaram de forma doutoral que o Sol não podia ter manchas.
O espectro de Brocken, a fata Morgana, a miragem foram negados por grande número de pessoas sensatas, enquanto não puderam ser explicados.
Não há muito tempo ainda (1890) que a faísca elétrica era posta em dúvida em plena Academia das Ciências de Paris, por aquele mesmo dos membros do Instituto, que melhor devia conhecê-la.
A história dos progressos da Ciência mostra-nos, a cada instante, que de observações simples e quase vulgares podem provir grandes e fecundos resultados.
No domínio do estudo científico não se deve desdenhar de coisa alguma. Que maravilhosa transformação da vida moderna foi produzida pela eletricidade! Telégrafo, telefone, luz elétrica, motores ligeiros e rápidos, etc. Sem a eletricidade, as nações, as cidades, os costumes seriam bem outros. Sem ela, por exemplo, a locomotiva a vapor não teria experimentado tantos melhoramentos, porque se as estações não pudessem comunicar-se instantaneamente umas com as outras, os trens não poderiam circular com segurança em suas linhas. Ora, o berço dessa admirável fada está humildemente velado nos primeiros albores, apenas sensíveis, da nascente aurora. Não se distinguem aí mais do que elementos muito vagos, que olhares perspicazes tiveram a glória de assinalar e de apontar à atenção do mundo.
É digno de rememoração o caldo de rãs de Mme. Galvani, em 1791. Galvani desposara a encantadora filha de seu antigo professor, Lúcia Galeózzi e amava-a enternecidamente. Estava ela doente dos pulmões em Boulogne. O médico recomendara um caldo de rãs, alimento aliás excelente. O próprio Galvani se dispôs a prepará-lo.
Assentado na varanda de sua casa, conta-se, esfolara ele um certo número desses pequenos animais, pendurando os membros inferiores, separados do tronco, no gradil de ferro, por meio de pequenos grampos de cobre que serviam às suas experiências, quando notou, com admiração justificada pela estranheza do fenômeno, que as pernas das rãs agitavam-se convulsivamente, todas as vezes que tocavam acidentalmente o ferro do gradil. Galvani, que era professor de física na universidade de Bolonha, estudou o fato com rara sagacidade e descobriu logo as condições necessárias para reproduzi-lo.
Tomemos os membros inferiores de uma rã esfolada; observemos os nervos lombares, os filamentos brancos. Se tomarmos esses nervos e os envolvermos em uma folha de estanho e se colocarmos as pernas, em estado de flexão, sobre uma lâmina de cobre, então, fazendo a pequena lâmina de estanho tocar a lâmina de cobre, veremos imediatamente os músculos contraírem-se, sendo repelido com bastante força qualquer pequeno obstáculo contra o qual esteja apoiada a extremidade das patas da rã. Tal a experiência a que Galvani foi conduzido fortuitamente; deve-se a ele a descoberta que tem o seu nome: o galvanômetro, que deu origem, logo em seguida, à pilha de Volta, à galvanoplastia e a tantas outras aplicações da eletricidade.
A observação do físico de Bolonha foi recebida com imensa explosão de riso, à exceção de alguns sábios circunspectos que lhe deram a merecida atenção. Entristeceu-se muito com isso o pobre inventor. “Sou atacado — escrevia ele em 1792 — por duas seitas perfeitamente opostas: a dos sábios e a dos ignorantes. Uns e outros riem-se de mim e me chamam mestre de dança das rãs. Entretanto eu sei que descobri uma das forças da Natureza.”
Não fora, pela mesma época, em absoluto negado o magnetismo humano, em Paris, pela Academia das Ciências e pela Faculdade de Medicina? Esperou-se para o acreditar (e demos graças a Deus!) que Jules Cloquet operasse de um câncer no seio, sem dor, uma mulher previamente magnetizada. 5
O mesmo aconteceu com a descoberta da circulação do sangue: Guy-Patin e a Faculdade não acicataram Harvey com os seus sarcasmos?
Conheci em Turim, em 1873, um descendente, muito pobre, do marquês de Jouffroy, meu compatriota do Alto-Marne, inventor dos barcos a vapor, em 1776. Sabe-se que este engenheiro inventor esgotara todos os seus recursos em demonstrar a possibilidade de aplicar o vapor à navegação. Um primeiro barco deslizou sobre o rio Doubs, em Baume-les-Dames. Um outro subiu o Saôna, em Lião, até à ilha de Barbe. Para a exploração do seu invento, Jouffroy tentou fundar uma companhia: tornava-se-lhe necessário, porém, um privilégio. Submetida pelo governo a questão à Academia das Ciências, esta, sob a inspiração de Perier (o autor da bomba de incêndio de Chaillot), respondeu com um parecer desfavorável. Todo o mundo, ainda por cima, assediava o pobre marquês com zombarias por causa de sua pretensão de “querer conciliar o fogo com a água” e saudavam-no com o apelido de “Jouffroy da Bomba”. O infeliz inventor acabou por perder a coragem, emigrando em seguida por ocasião da Revolução, para retornar à França durante o Consulado, constatando então que Fulton, por sua vez, não era mais feliz com o primeiro cônsul do que ele mesmo tinha sido com o antigo regime. Por outro lado, Fulton não pôde convencer, de forma alguma, a Inglaterra, em 1804, e foi somente em 1807 que seu primeiro barco a vapor pôde ser lançado vitoriosamente no Hudson, em sua própria pátria que acabou por lhe fazer justiça, um pouco tardiamente.
Quase todos os inventores têm sido assim tratados. Um outro de meus compatriotas do Alto-Marne, Philippe Lebon, que inventou a iluminação a gás em 1797, morreu em 1804 (assassinado, segundo se diz, nos Campos Elíseos, em Paris) no dia da cerimônia do coroamento do imperador, sem ter visto sua ideia adotada pela pátria. Sobretudo objetava-se que uma lâmpada sem mecha não podia acender-se! A iluminação a gás foi aplicada em 1805 pela Inglaterra, em Birmingham; em 1813 em Londres; em 1818 em Paris.
Na época da criação dos trens de ferro houve engenheiros que demonstraram que esses trens não caminhariam e que as rodas das locomotivas rodariam sempre sobre o mesmo lugar.
Na Câmara dos Deputados, em 1838, Arago arrefeceu o entusiasmo dos partidários da nova invenção, falando da inércia da matéria, da tenacidade dos metais e da resistência do ar. “As velocidades, dizia ele, serão grandes, muito grandes, mas não tanto quanto se tinha esperado. Não nos percamos em palavras. Fala-se do acréscimo do trânsito. Em 1836 o montante total das despesas de transportes, em França, elevou-se a 2.803.000 francos. Se todos os caminhos de ferro projetados fossem construídos, se todo o trânsito se efetuasse pelos trilhos e pelas locomotivas, essa cifra se reduziria a 1.052.000. Importaria isso em uma diminuição anual de 1.751.000 francos. Perderia, portanto, o país cerca de dois terços do custo total do transporte pelas estradas de rodagem. Precatemo-nos da imaginação, essa loucura do conhecimento. Dois trilhos de ferro paralelos não darão uma fase nova aos brejos da Gasconha.” E todo o discurso continua nesse tom! Bem se vê que, quando se trata de ideias novas, podem os maiores espíritos enganar-se.
E o Sr. Thiers dizia: “Admito que os caminhos de ferro apresentarão algumas vantagens para o transporte dos viajantes, se o respectivo uso for limitado a algumas linhas muito curtas, terminando em grandes cidades como Paris. Não se deve pensar em grandes linhas.”
E Proudhon: “É uma opinião banal e ridícula essa de pretender que os caminhos de ferro podem servir à circulação das ideias.”
Na Baviéra, o Colégio Real de Medicina, consultado, declarou que os caminhos de ferro causariam, se fossem construídos, os mais graves danos à saúde pública, porque um movimento, assim tão rápido, provocaria nos viajantes abalos cerebrais e vertigens no público exterior; em consequência recomendou o encerramento das linhas entre duas cercas de madeira à altura dos vagões.
Quando foi proposto, em 1853, o estabelecimento de um cabo submarino entre a Europa e a América, uma de nossas grandes autoridades em física, Babinet, do Instituto, examinador na Escola Politécnica, escreveu na Revue des Deux Mondes: “Não posso considerar como sérias essas ideias; a teoria das correntes poderia dar provas insofismáveis da impossibilidade de uma tal transmissão, ainda mesmo que não se tivesse em conta as correntes que por si mesmas se estabelecem em um longo fio elétrico e que são muito sensíveis no pequeno trajeto de Douvres a Calais. O único meio de ligar o antigo ao novo mundo é franquear o estreito de Béring, a menos que se tome a resolução de passar pelas ilhas Féroe, pela Islândia, pela Groenlândia e pelo Labrador.” (!!)
O geólogo Élie de Beaumont, secretário perpétuo da Academia das Ciências, morto em 1874, jamais cessou de negar, em toda a sua vida, a existência do homem fóssil.
Pode-se ler nos relatórios (Comptes Rendus) da Academia das Ciências, com a data de 13 de julho de 1873, que, tendo o Instituto de nomear um correspondente, Darwin foi recusado, para dar lugar a um senhor Loven.
Na Inglaterra, a Sociedade Real recusou em 1841 a inserção, em seus Anais, da mais importante memória do célebre Joule, fundador, em Mayer, da termodinâmica; e Thomas Young, fundador, com Fresnel, da teoria ondulatória da luz, foi ridicularizado por lorde Broughan.
Por outro lado, vendo Mayer, na Alemanha, o cepticismo astuto com que sua imortal descoberta era acolhida pelos sábios oficiais, começou a duvidar de si mesmo e precipitou-se de uma janela abaixo! Um pouco mais tarde as academias estendiam-lhe os braços. O grande eletricista Ohm foi tratado como louco por seus compatriotas alemães.
Quando Franklin comunicou à Sociedade Real de Londres as suas experiências sobre o poder condutor das hastes de ferro para a eletricidade atmosférica, não obteve mais do que uma explosão de hilaridade, e a ilustre companhia recusou terminantemente imprimir seu memorial.
E como deixar de recordar-nos do que sucedeu por ocasião do invento do óculo de alcance! Ninguém lhe compreendeu a importância, e meio século mais tarde o eminente astrônomo Hévélius recusou-se a adaptar vidros aos seus instrumentos para seu Catálogo de estrelas, porque supunha que eles prejudicariam a precisão das determinações de posição.
Exemplos como estes poderiam ser multiplicados até o fim do mundo... São eles suficientes para edificar-nos a respeito de um dos aspectos do espírito humano e de uma das características que não devem ficar à margem da nossa pesquisa da verdade.
Um amigo de trinta anos de afetuosa camaradagem e de doce afinidade intelectual, Eugène Nus, escreveu em uma de suas obras, Choses de l’Autre Monde:
Aos manes dos sábios,
Brevetados, patenteados,
Enfeitados, condecorados e enterrados,
Que repeliram
A rotação da terra,
Os meteoritos,
O galvanismo,
A circulação do sangue,
A vacina,
A ondulação da luz,
O para-raios,
A daguerreotipia,
O vapor,
A hélice,
Os paquetes,
Os caminhos de ferro,
A iluminação a gás,
O magnetismo,
E o resto;
Aos que, vivos e por nascer, fazem o mesmo, No presente
E o mesmo no futuro hão de fazer.
Eu acho que seria muita irreverência de minha parte imitá-lo e por isso me absterei de escrever a mesma dedicatória no alto deste livro. Lembro-a, entretanto, e a faço imprimir, porque não deixa ela de ter seu valor filosófico e acrescentarei, com um historiador desses fenômenos, que tais retardatários, por toda parte encontrados, nas ciências, nas artes, na indústria, na política, na administração, etc., têm sua utilidade: “Passados ao estado de marcos, balizam a estrada do progresso.”
Augusto Comte e Littré como que traçaram à Ciência seus rumos definitivos, seus rumos “positivos”. Não admitir senão o que se vê, o que se toca, o que se ouve, o que fica subordinado ao testemunho direto dos sentidos, e não procurar conhecer o incognoscível — eis, há meio século, a regra de conduta da Ciência.
Vejamos, porém. Analisando os testemunhos de nossos sentidos, verificamos que eles nos enganam de um modo absoluto.
Vemos o Sol, a Lua e as estrelas girarem em torno de nós: é falso. Sentimos a terra imóvel: é falso. Vemos o Sol levantar-se acima do horizonte: ele está abaixo do horizonte. Tocamos corpos sólidos: não há corpos sólidos. Ouvimos sons harmoniosos: o ar não transporta mais do que ondas em si mesmas silenciosas. Admiramos os efeitos da luz e das cores que fazem viver aos nossos olhos o esplêndido espetáculo da natureza: em realidade não há nem luz, nem cores, mas somente movimentos etéreos obscuros que, influenciando nosso nervo ótico, dão-nos as sensações luminosas. Queimamos o nosso pé ao fogo: é, sem o sabermos, em nosso cérebro somente que reside a sensação da queimadura. Falamos de calor e de frio: não há no Universo nem calor nem frio, mas somente movimento. Como se vê, os nossos sentidos nos enganam a respeito da realidade. Sensação e realidade são coisas distintas.
Não é tudo. Além disso nossos pobres cinco sentidos são insuficientes. Não nos deixam eles sentir mais do que pequeno número dos movimentos que constituem a vida do Universo. Para dar uma ideia do que afirmo, repetirei aqui o que escrevia em Lúmen, há um terço de século: “Desde a última sensação acústica percebida por nosso ouvido, resultante de 36.850 vibrações por segundo, até a primeira sensação ótica percebida por nossos olhos e que é devida a 400.000.000.000.000 de vibrações na mesma unidade de tempo, nada mais podemos perceber. Existe entre esses dois extremos um intervalo enorme, com o qual nenhum de nossos sentidos se põe em relação. Se tivéssemos outras cordas em nossa lira, dez, cem, mil, a harmonia da natureza se traduziria mais completamente, fazendo-as entrar em vibração.” De um lado, somos enganados pelos sentidos; de outro, incompleto é o seu testemunho.
Não há, portanto, motivo para sermos tão orgulhosos de nossos sentidos, nem para erigirmos em princípio uma pretensa filosofia positiva.
Sem dúvida, é necessário utilizarmo-nos do que possuímos. A fé religiosa diz à razão: “Amiguinha, não tens mais do que um candeeiro para te conduzir: apaga-o e deixa-te guiar por mim.” Não é assim que pensamos. Não temos senão um candeeiro, e mesmo assim um mau candeeiro; mas apagá-lo seria o cúmulo da cegueira. Reconhecemos, pelo contrário, em princípio, que a razão, ou, se preferem, o raciocínio, deve sempre e em tudo ser o nosso guia. Fora disso nada mais existe. Mas não circunscrevamos a ciência em um círculo estreito. Volto ainda a Augusto Comte, porque é ele o fundador da escola moderna e representa um dos maiores espíritos do nosso século. Limita ele a esfera da astronomia ao que era conhecido em seu tempo. É simplesmente absurdo. “Concebemos — diz ele — a possibilidade de estudar a forma dos astros, suas distâncias, seus movimentos, ao passo que jamais poderemos estudar, qualquer que seja o meio posto em prática, sua composição química.” Este célebre filósofo morreu em 1857. Cinco anos mais tarde, a análise espectral fazia precisamente conhecer a composição química dos astros e classificava as estrelas segundo a ordem de sua natureza química.
Tal qual como os astrônomos do século XVII, que afirmavam não poderem existir mais do que sete planetas.
O desconhecido de ontem é a verdade de amanhã.
Estaríamos em erro, entretanto, supondo que os sábios (certos sábios) e os homens mencionados sejam os únicos responsáveis por esses atos de inércia. Dá-se o mesmo com a maioria da humanidade e o grande público está no mesmo caso. A massa do cérebro humano é pouco mais ou menos a mesma, tanto no sábio, como no literato, no artista, no magistrado, no político, no operário, no agricultor, como igualmente no ocioso.
As censuras que podem ser feitas aos homens cujo espírito é fechado às novas concepções; a esses que, como Napoleão, por exemplo (a quem a invenção teria assegurado a ruína de sua mais poderosa inimiga, a Inglaterra), não compreenderam a invenção do vapor, aplicam-se por assim dizer a todo o mundo. Um homem, aliás, pode ser muito superior com relação a certas faculdades e muito inferior quanto a outras. Os deploráveis exemplos que precedem não levam, pois, à condenação dos sábios em particular e ainda menos à da Ciência. Somente o que se desejaria era não ver os espíritos esclarecidos caírem na falência comum da vulgaridade, e é por causa da estima que eles nos inspiram, que mais assinalamos as suas fraquezas.
É justo lembrarmo-nos, entretanto, que há uma escusa a essas obstruções, a esses obstáculos, a essas resistências. Em geral, ninguém está seguro da realidade nem do valor das coisas novas. Os primeiros barcos a vapor caminhavam mal e não valiam os navios a vela. Os primeiros bicos de gás iluminavam pouco e exalavam mau cheiro. A Terra, na verdade, parece bem fixa e bem estável. A água e o ar parecem, de fato, elementos primários da natureza. Não parece natural que caiam pedras do céu. As primeiras manifestações da eletricidade eram incoerentes. Os caminhos de ferro desarranjavam tudo. 6
E depois, se o gênio se avantaja à vulgaridade, uma nova descoberta também se adianta ao seu tempo. É, portanto, natural que haja retardatários e incapazes de compreender certas coisas.
Muito frequentemente, além disso, os fatos novos, pouco conhecidos, inexplicados, são vagos, complicados, de análise difícil, mal esclarecidos pelos que os apresentam. Quantas dificuldades não teve o magnetismo humano a atravessar, antes de atingir o estado de experimentação científica em que se acha atualmente sob outros nomes! E quanto não foi ele explorado por charlatães que abusavam da credulidade pública! E, nos fenômenos magnéticos, do mesmo modo que nos do Espiritismo, quantas fraudes, superstições, infames mentiras, sem contar as pessoas estúpidas que enganam “para se divertirem!” E de que maravilhosas habilidades não são capazes os prestidigitadores! Pode-se, pois, em parte, desculpar as reservas dos homens de ciência.
A recente descoberta dos raios Roentgen, tão estranha e inacreditável em sua origem, deveria esclarecer-nos sobre a exiguidade do campo de nossas observações habituais. Ver através dos objetos opacos! no interior de um cofre fechado! distinguir a ossatura de um braço, de uma perna, de um corpo, através da carne e da vestimenta! Uma tal descoberta é, sem contradição, inteiramente contrária às nossas habituais certezas. Este exemplo é seguramente um dos mais eloquentes em favor do axioma: é anticientífico afirmar que as realidades detêm-se no limite dos nossos conhecimentos e das nossas observações.
E que dizer do telefone, que transmite a palavra, não por meio de ondas sonoras, mas por um movimento elétrico! Se pudéssemos falar, com o auxílio de um tubo, entre Paris e Marselha, nossa voz empregaria três minutos e meio para chegar a seu destino e passar-se-ia o mesmo com a do nosso interlocutor, de sorte que a resposta a uma palavra emitida: “Alô! alô!” não nos chegaria senão ao cabo de sete minutos.
Ninguém pensa nisso; entretanto, o telefone é tão absurdo como os raios X, sob o ponto de vista da nossa concepção das coisas anteriores a estas descobertas.
Falamos das cinco portas dos nossos conhecimentos: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. Estas cinco portas dão-nos ainda pouco acesso ao mundo exterior, sobretudo as três últimas. O olho e o ouvido vão bem mais longe, mas, de fato, é quase somente a luz que põe o nosso espírito em comunicação com o Universo. Ora, que é a luz? Uma modalidade de vibração do éter excessivamente rápida. A sensação de luz é produzida sobre a nossa retina por vibrações que se prolongam desde 400 trilhões por segundo (extremidade vermelha do espectro luminoso) até 756 trilhões (extremidade violeta). Há muito tempo que foram essas vibrações medidas com precisão. Tanto abaixo como acima desses números, há outras vibrações do éter, não perceptíveis pelos nossos olhos. Para lá do vermelho estão vibrações caloríficas obscuras. Depois do violeta acham-se vibrações químicas actínicas, suscetíveis de serem fotografadas, igualmente obscuras. Muitas outras existem que permanecem para nós desconhecidas. A estas observações acrescentarei hoje, modificando-as e desenvolvendo-as, uma comparação feita recentemente por sir William Crookes, a propósito da conexão provável dos fenômenos do Universo e das lacunas que a nossa organização terrestre apresenta em meio dessa conexão de fenômenos. Tomemos um pêndulo que oscile no ar de segundo em segundo. Dobrando as oscilações desse pêndulo obteremos a série seguinte:
No quinto tempo depois da unidade, a 32 vibrações por segundo, entramos na região em que a vibração da atmosfera nos é revelada sob a forma de som. Aí encontramos a nota musical mais baixa. Se, entre os sons musicais, procurarmos um muito grave, por exemplo, a oitava inferior do órgão, perceberemos que as sensações elementares, ainda que formando um todo contínuo, o que é necessário para que o som seja musical, permanecem não obstante distintas, até um certo grau. Quanto mais baixo é o som, diz Helmholtz, tanto melhor distingue nele o ouvido as ondulações sucessivas do ar.
Nos dez graus seguintes, as vibrações por segundo elevam-se de 32 a 32.768; cada duplicação reproduz a mesma nota, em sua oitava superior. O diapasão normal que reproduz a nota lá vibra 435 vezes por segundo, ou sejam, 870 vibrações duplas. O som mais agudo é produzido por cerca de 36.000 vibrações e aí termina a região do som para um ouvido humano comum. Provavelmente, porém, certos animais a esse respeito mais bem dotados que nós, percebem sons demasiado agudos para os nossos órgãos, isto é, sons cuja rapidez de vibrações passa além desse limite.
Em seguida chegamos a uma região em que a rapidez das vibrações aumenta celeremente, e o meio vibratório não é mais a grosseira atmosfera, mas um meio infinitamente sutil, “um ar mais divino”, chamado éter. Produzem-se aí vibrações de natureza desconhecida.
Continuando a elevação das vibrações, penetramos na esfera das irradiações elétricas. 8
A seguir vem a região que se estende do 35º ao 45º grau, de 34.359 milhões a 35.184 bilhões de vibrações por segundo. Ela nos é desconhecida: ignoramos as funções dessas vibrações, mas que elas existam e se achem em ação no Universo é difícil não admitir-se.
Aproximamo-nos agora da região da luz onde se encontram as velocidades compreendidas entre a 48ª e 50ª ordem. A sensação de luz, isto é, as vibrações que transmitem impressões visíveis, está compreendida entre os estreitos limites de cerca de 400 trilhões (luz vermelha) a 756 trilhões (luz violeta), o que não chega a completar um grau.
Os fenômenos da Natureza que se passam constantemente ao nosso redor realizam-se, ao demais, sob a ação de forças invisíveis. O vapor d’água, cuja ação é assaz considerável na climatologia, é invisível. O calor é invisível. A eletricidade é invisível. Os raios químicos são invisíveis. O espectro solar, representando o conjunto dos raios luminosos sensíveis à retina humana (os raios visíveis) é hoje conhecido de todo o mundo. Se fizermos passar um raio de Sol através de um prisma, obteremos à saída deste último uma faixa colorida estendendo-se do vermelho ao violeta. Um grande número de raias o atravessam, sendo as principais indicadas pelas letras de A a H; são linhas de absorção produzidas pelas substâncias que ardem na atmosfera solar e pelo vapor d’água da atmosfera terrestre. Conhecem-se atualmente milhares dessas raias.
Se se faz passar um termômetro à esquerda do espectro visível, para lá do vermelho, vê-se que ele sobe, constatando-se, portanto, que existem aí raios caloríficos invisíveis para nós.
Se se coloca uma placa fotográfica à direita do espectro, para além do violeta, vê-se que ela é impressionada, o que demonstra a existência de raios químicos muito ativos, invisíveis para nós. Observação importante: certos corpos invisíveis podem tornar-se visíveis; assim o urânio e o sulfato de quinina tornam-se visíveis na obscuridade sob as radiações ultravioletas.
Classificam-se hoje todos esses raios pelo seu comprimento de onda: um determinado raio é o espaço percorrido pela onda durante determinado período vibratório. Ainda que os comprimentos de onda das radiações sejam de extrema pequenez, chega-se, graças ao emprego dos crivos de difração, a determiná-los com uma grande precisão. Ei-los: