A matéria do pensamento é a matéria da experiência

Leonardo Fernandino

Nosso estudo (Fernandino et al., 2022) abordou a questão de como os conteúdos do pensamento – conceitos, ideias, crenças – estão relacionados ao mundo físico que vivenciamos por meio de nossos sentidos. Este é o assunto de um longo debate em ciência cognitiva e filosofia, cujas origens podem ser traçadas até os escritos de Platão e Aristóteles no século IV A.C. De acordo com Platão, as pessoas já nascem com “idéias inatas”, que são modelos mentais para todos os tipos de coisas que podemos nomear ou reconhecer. Idéias inatas seriam a memória que a alma traz de sua existência anterior no “mundo ideal”. Platão argumentou que, uma vez que dois objetos – digamos, duas árvores – não geram exatamente a mesma experiência perceptiva, seria impossível para alguém que se depara com uma determinada árvore pela primeira vez ser capaz de reconhecê-la como o mesmo tipo de coisa que outras árvores que já vira antes, a menos que tenha uma idéia abstrata do conceito "árvore". Se os sentidos fossem a única fonte de conhecimento, qualquer novo objeto seria percebido como completamente único, não como membro de uma categoria. Ideias inatas seriam os modelos abstratos que permitiriam que experiências sensoriais distintas fossem agrupadas em categorias. Na concepção de Platão, quando uma criança interage com o mundo e se depara com coisas diferentes, como pessoas, cachorros, ou árvores, ela reconheceria cada uma delas com base em seu modelo inato e idealizado para cada tipo de coisa. Uma visão semelhante foi posteriormente proposta pelo filósofo Renée Descartes, que defendeu uma distinção qualitativa entre o corpo sensível mortal e a alma pensante imortal.

Aristóteles, por outro lado, argumentou que representações mentais para categorias naturais não estariam presentes desde o nascimento, mas que seriam aprendidas através da experiência. Segundo ele, à medida que encontramos árvores diferentes, aprendemos gradualmente o que é comum a todas elas (por exemplo, certas formas, cores, tamanhos, texturas, cheiros), e essas semelhanças, uma vez abstraídas da experiência imediata, forneceriam a base do conceito “árvore”. Essa posição foi também defendida no século XVII pelo filósofo inglês John Locke, que ficou famosamente associado à ideia de que a mente humana vem ao mundo como uma folha em branco (tabula rasa), e que todo o conhecimento é nela escrito pela experiência.

Pesquisadores atuais continuam divididos em relação a essa questão. É claro que nenhum neurocientista cognitivo acredita seriamente na versão de Platão das ideias inatas ou na noção de tabula rasa de Locke, mas uma versão desse debate ainda persiste. Alguns pesquisadores argumentam que certas categorias universais, como “animais”, “plantas” ou “ferramentas”, foram codificados em nosso genoma por meio da seleção natural ao longo da evolução humana, e que essas categorias fornecem a base para aprender novas conceitos. Eles acreditam que os conceitos são representados no cérebro de forma “simbólica”, ou seja, a representação do conceito em si não contém informações sobre as experiências sensoriais pelas quais eles foram aprendidos. Assim como os computadores representam informações sobre imagens, sons ou teclas usando um código digital simbólico (ou seja, os 0s e 1s no código binário do computador), os conceitos representam informações sobre o mundo usando um código simbólico que não contém informações sobre experiências visuais, táteis, auditivas ou outras modalidades sensoriais. Percepções distintas de diferentes árvores estariam todas associadas ao mesmo símbolo conceitual no cérebro, permitindo assim que cada uma delas seja reconhecida como um exemplo da categoria “árvore”; no entanto, o símbolo conceitual para “árvore” não conteria informações sobre as propriedades sensoriais dessas experiências. Como essas representações codificariam principalmente informação sobre definições de categorias, nós as chamamos de representações “taxonômicas”.

Essa idéia é contestada por pesquisadores que argumentam que conceitos são formados através de um processo gradual de generalização das experiências sensoriais, e que eles simplesmente codificam informações sobre quais características da experiência (por exemplo, cores, formas, texturas, tamanhos, sons, locais, cheiros etc.) devem ser reativados quando o conceito for lembrado. Essa teoria, conhecida como cognição “incorporada” ou “situada”, afirma que um conceito nada mais é do que um registro condensado e abstrato das experiências perceptivas e emocionais que levaram à sua formação. Se isso for verdade, então pensar no conceito “maçã” significa reativar as representações sensoriais e afetivas que aprendemos a associar a essa palavra, como sua forma típica, sua cor típica, seu sabor, seu peso, e quaisquer emoções que tenhamos associado a ela. Não haveria um código simbólico para a representação de conceitos dissociado da informação sensorial e emocional; o código neural para a representação de conceitos seria derivado dos códigos neurais usados para representação de experiências sensoriais e emocionais.

Mais recentemente, alguns pesquisadores vêm propondo que, no caso de conceitos lexicais (ou seja, conceitos que correspondem ao significado de uma palavra, como “cachorro”, “telefone” ou “infinito”), uma maneira pela qual o cérebro poderia representá-los é mantendo um registro da frequência com que palavras específicas aparecem juntas durante o uso normal da linguagem. A palavra “aniversário”, por exemplo, costuma ocorrer próxima às palavras “anos”, “idade”, “festa”, “bolo”, etc., em conversa ou em texto. Se o cérebro mantiver um registro da frequência com que uma palavra coocorre com cada uma das outras palavras, ele poderia, em princípio, usar essa informação para representar seu significado. É assim que aplicativos de computador como Google ou Alexa representam o significado das palavras para se comunicar com o usuário. Eles podem dizer, por exemplo, que “lobo” é mais parecido com “cachorro” do que com “gato”, e que “descascar” combina com “laranja”, mas não com “melancia”. Esse tipo de informação é chamado de “distribucional”, pois se baseia em como uma palavra é “distribuída” entre as demais em bases de dados contendo milhões de textos.

Em nosso estudo, tentamos descobrir o quanto de cada tipo de informação (taxonômica, experiencial e distribucional) está codificado nas representações neurais de conceitos lexicais. Nossa abordagem experimental baseia-se no fato de que conceitos podem ser mais ou menos relacionados entre si (por exemplo, “maçã” está mais relacionado com “laranja” do que com “futebol”). No entanto, o grau em que dois conceitos estão relacionados depende do tipo de informação usada para definir o relacionamento. Por exemplo, com base apenas na informação perceptiva, “prato” tem mais em comum com “frisbee” do que com “xícara”, embora “prato” e “xícara” sejam normalmente considerados como “utensílios de mesa”, e “frisbee” como um brinquedo. E com base apenas em informação sobre co-ocorrência, “prato” está mais relacionado com “mesa” do que com “xícara” ou com “frisbee”. Se pudermos determinar quão relacionados, ou quão semelhantes, esses conceitos são entre si de acordo com o cérebro, poderemos determinar quais tipos de informação são codificados em suas representações neurais. Portanto, eu e meus colegas realizamos dois experimentos para medir os padrões de ativação cerebral correspondente a diferentes conceitos e então determinar sua “estrutura de semelhança”, ou seja, quão semelhante cada padrão é a cada um dos outros.

Nós usamos uma técnica de neuroimagem conhecida como ressonância magnética funcional (fMRI) para medir a atividade neural em todo o cérebro enquanto os participantes liam cada palavra apresentada na tela. Fizemos isso para 524 conceitos de várias categorias, incluindo animais, plantas, ferramentas, veículos, lugares, ocupações humanas, eventos sociais, eventos naturais e conceitos abstratos. Esta figura ilustra como usamos os padrões de ativação cerebral induzidos pelas palavras para determinar a estrutura de semelhança desses conceitos no cérebro:

A. Para cada palavra apresentada, registramos o nível de ativação neural em cada ponto do cérebro. Cada palavra induz um padrão único de ativação no córtex cerebral.

B. Calculamos a semelhança entre os padrões de ativação gerados por palavras diferentes para todos os pares de palavras. Esta é a “estrutura de semelhança neural” dos conceitos.

C. Para cada tipo de informação, calculamos a estrutura de semelhança prevista por cada um para os conceitos apresentados no estudo. (Na verdade, usamos dois modelos diferentes para cada tipo de informação, o que resultou em seis estruturas de semelhança previstas.)

D. Em seguida, avaliamos o quanto a estrutura de semelhança neural corresponde a cada estrutura de semelhança prevista.

A correlação (ou seja, correspondência) entre cada estrutura de semelhança prevista e a estrutura de semelhança neural é mostrada no gráfico de barras:

As estrelas (***) em cada barra mostram que todas as estruturas de semelhança previstas corresponderam à estrutura de semelhança neural muito acima do nível de acaso (p < 0,0001), o que indica que os três tipos de informação parecem estar codificados na representação neural de conceitos de palavras. As linhas horizontais acima das barras indicam diferenças estatisticamente significativas entre elas, mostrando que a estrutura de semelhança neural dos conceitos foi mais parecida com a estrutura de semelhança prevista por ambos os modelos experienciais do que com a estrutura prevista pelos outros modelos. Isso mostra que a informação experiencial é mais importante que a informação taxonômica ou distribucional para a representação de conceitos no cérebro.

É importante ressaltar que, embora a estrutura de semelhança prevista por cada modelo seja única, as previsões de modelos diferentes são parecidas. Portanto, para poder determinar quais tipos de informação são realmente codificados na representação neural de conceitos, precisamos avaliar quão bem cada modelo prediz a estrutura de semelhança neural após subtrair sua semelhança com cada um dos outros modelos. Os resultados são mostrados no gráfico abaixo, onde as barras azuis maiores mostram quão bem o modelo vencedor (Exp48) previu a estrutura de semelhança neural dos conceitos após subtrairmos o efeito de cada um dos outros modelos. As barras menores mostram o desempenho de cada um dos outros modelos após subtrairmos o efeito do modelo Exp48.

Esses resultados mostram que, quando as semelhanças entre os modelos são levadas em conta, apenas o modelo experiencial Exp48 prevê a estrutura de semelhança dos conceitos acima do nível do acaso. Os outros modelos apenas previam a estrutura de semelhança neural dos conceitos na medida em que suas previsões correspondiam às previsões do Exp48. Esta é uma forte indicação de que a representação cerebral de conceitos depende principalmente de informações experienciais, e que nem informações taxonômicas nem distributivas, por si só, contribuem muito. Concluímos que os padrões de atividade neural que representam o conhecimento conceitual no cérebro codificam informações sensório-motoras e afetivas sobre cada conceito, contrariando a ideia de que representações conceituais são independentes da experiência sensório-motora e afetiva. Em outras palavras, no que diz respeito à relação entre o pensamento conceitual e os sentidos, Aristóteles e Locke estavam no caminho certo, enquanto Platão e Descartes estavam completamente na contramão.

Essa descoberta contribui para a compreensão dos mecanismos neurais subjacentes ao aprendizado da linguagem, à compreensão da linguagem, e às deficiências semânticas da linguagem causadas por acidente vascular cerebral e doenças neurodegenerativas. Ela também abre caminho para novas pesquisas destinadas a decodificar o pensamento consciente através da atividade cerebral, o que permitiria que pacientes com distúrbios fonológicos de linguagem (que não podem falar nem escrever) ou síndrome de encarceramento (que estão completamente paralisados) se expressem através de computadores que se comunicam diretamente com o cérebro.

O estudo foi realizado em coautoria com Jia-Qing Tong, Colin Humphries, Lisa Conant e Jeffrey Binder, com generoso apoio do Departamento de Neurologia do Medical College of Wisconsin, dos National Institutes of Health dos E.U.A. e da Fundação Advancing a Healthier Wisconsin. Agradecemos a Lizzie Awe, Jed Mathis e aos participantes do estudo por sua ajuda.

Esses resultados mostram que, quando as semelhanças entre os modelos são levadas em conta, apenas o modelo experiencial Exp48 prevê a estrutura de semelhança dos conceitos acima do nível do acaso. Os outros modelos apenas previam a estrutura de semelhança neural dos conceitos na medida em que suas previsões correspondiam às previsões do Exp48. Esta é uma forte indicação de que a representação cerebral de conceitos depende principalmente de informações experienciais, e que nem informações taxonômicas nem distributivas, por si só, contribuem muito. Concluímos que os padrões de atividade neural que representam o conhecimento conceitual no cérebro codificam informações sensório-motoras e afetivas sobre cada conceito, contrariando a ideia de que representações conceituais são independentes da experiência sensório-motora e afetiva. Em outras palavras, no que diz respeito à relação entre o pensamento conceitual e os sentidos, Aristóteles e Locke estavam no caminho certo, enquanto Platão e Descartes estavam completamente na contramão.

Essa descoberta contribui para a compreensão dos mecanismos neurais subjacentes ao aprendizado da linguagem, à compreensão da linguagem, e às deficiências semânticas da linguagem causadas por acidente vascular cerebral e doenças neurodegenerativas. Ela também abre caminho para novas pesquisas destinadas a decodificar o pensamento consciente através da atividade cerebral, o que permitiria que pacientes com distúrbios fonológicos de linguagem (que não podem falar nem escrever) ou síndrome de encarceramento (que estão completamente paralisados) se expressem através de computadores que se comunicam diretamente com o cérebro.

O estudo foi realizado em coautoria com Jia-Qing Tong, Colin Humphries, Lisa Conant e Jeffrey Binder, com generoso apoio do Departamento de Neurologia do Medical College of Wisconsin, dos National Institutes of Health dos E.U.A. e da Fundação Advancing a Healthier Wisconsin. Agradecemos a Lizzie Awe, Jed Mathis e aos participantes do estudo por sua ajuda.

Referência:

Fernandino, L., Tong, J.-Q., Conant, L. L., Humphries, C. J., and Binder, J. R. (2022). Decoding the information structure underlying the neural representation of concepts. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 119(6), e2108091119. https://doi.org/10.1073/pnas.2108091119