Na vida real, a máquina pode julgar?

O cinema é um dos responsáveis pela construção do imaginário popular sobre a Inteligência Artificial, já que para muitos essa é a única forma de contato com o assunto. Esses filmes criam situações em que a máquina assume o controle da sociedade. Apesar da ficção explorar distopias sociais, a IA Generativa pode ser utilizada em diversas áreas. A relação entre IA e sistema judiciário tem sido cada vez mais discutida e pode trazer benefícios significativos para a justiça. Para o mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mateus Rech Graciano, o ser humano não pode ter fobia das IA já que ela existe e está inserida no arranjo social contemporâneo. Ele explica que em sua pesquisa de dissertação já encontrou e investigou pelo menos 45 modelos, em diferentes fases, de IAs no poder judiciário ao redor do mundo.

“Buscamos questionar o seu uso para não tratá-las como a solução dos problemas da jurisdição. Então é justamente isso, não tendo fobia, mas também não caindo no ‘endeusamento’ nós estudamos para descobrir se ela pode ser usada como ferramenta para melhorar o processo”, explica o pesquisador.

Um dos mais famosos sistemas de IA no Brasil é o Projeto Robô Victor do Supremo Tribunal Federal (STF), utilizado para decidir quais recursos preenchem requisitos autorizadores para chegar até o STF. Lançado em 2017, o projeto é considerado um dos primeiros no país e, segundo o próprio STF, tem o potencial de “resolver ou mitigar os desafios pertinentes a uma maior eficiência e celeridade processuais”. 

Apesar do pioneirismo, o Robô Victor não é considerado uma Inteligência Artificial Generativa já que a função primária é identificar informações relevantes a partir de um conjunto de dados pré-definidos, isto é, ele não utiliza algoritmos de aprendizado para gerar novos dados. Mesmo assim, a IA Generativa vem auxiliando em tarefas como análise de contratos e até mesmo na redação de petições. Com isso, os advogados podem analisar documentos com mais rapidez, além de gerar novas ideias com base em dados existentes.

Mesmo que já se tenha exemplos de IA Generativa sendo utilizadas, nenhuma delas está relacionada à parte decisória dos processos judiciais. Para Graciano, utilizar inteligências artificiais para tomada de decisões subjetivas seria um erro pela falta de transparência sobre código fonte e origem das informações. “A máquina pode replicar preconceitos implícitos e inerentes. Quando não temos acesso aos dados que compõem a decisão dela, chegamos à opacidade”, afirma.

Graciano, que também atua como advogado do direito público, explica que, no senso comum, o poder judiciário no Brasil é visto como moroso, ou seja, que não apresenta soluções rápidas à população. Por isso, a possibilidade de uso da IA é vista como uma solução para a desburocratização. 

Dados registrados em 31 de março pela Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelam que mais de 80 milhões de processos estão à espera de julgamento no país. O número representa um aumento em relação aos anos anteriores: em 2021 cerca de 72 milhões de processos estavam em aberto, já em 2020 a soma registrada foi de aproximadamente 70 milhões. O mesmo levantamento aponta que o tempo médio de espera por uma decisão foi de 11 meses em 2021, enquanto a espera pela execução da sentença foi de em média de seis anos e meio. .

”As pessoas vêem uma oportunidade de julgar mais em menos tempo e [pensam] que não terão mais erros e incertezas da decisão humana. Mas como vamos confiar nestas decisões? Qual é a qualidade desta decisão? Teremos acesso aos dados da máquina? Essa é a problematização que precisamos fazer, não podemos deixar que a ânsia por resultados apague direitos que são assegurados”, afirma o especialista. 

O advogado argumenta que a IA Generativa pode ser utilizada como uma ferramenta de auxílio para profissionais da área, mas não pode ser substituta do humano, pois não tem a capacidade de compreender e interpretar, ela somente replica os fatos já postos em um processo. Diferente da máquina, o cérebro humano percebe diferentes situações antes de fazer uma conclusão. Ao exemplo do Chat GPT, quanto mais informações você gerar para a plataforma, melhor vai ficar a conclusão. Contudo, ela só vai perceber o que você inserir de informação. Segundo o médico psiquiatra Maurício Scopel Hoffmann, o ser humano leva em conta uma série de coisas inconscientes: “É um monte de informação que entra ao mesmo tempo, como o humor da pessoa, o contexto da situação, o que vai muito além do questionamento proposto”.

Além disso, as informações recebidas estão inseridas em um contexto social, também como quem a está pensando, assim discute o linguista e psicólogo canadense Steven Pinker. Segundo ele, cada indivíduo, além da biologia e natureza humana, sofre influências culturais, como por exemplo: a língua. Sua estrutura varia de contexto conforme o que aquela população tem de representação da realidade. Hoffmann também explica que há o certo e errado inato e o aprendido ao longo da vida, o ser humano não é uma “folha em branco” que só aprende quando nasce e cresce. E que diferente das máquinas, o humano capta inúmeras informações, linguagens ditas e não ditas. Nos códigos, é possível entender e ressignificar apenas o que já foi computado anteriormente.


“Bola na mão” ou “mão na bola?”

O processo de julgamento é uma situação que ocorre inconscientemente no cérebro humano. Em fração de segundos, somos capazes de analisar um fato e fazer juízo de valor. Assim como no judiciário, a tomada de decisões, a partir da ação humana, é fundamental em qualquer esporte regido por regras, como no futebol. 

Por isso, o que move legiões de torcedores, tem um caráter político-social de extrema relevância, é também passível de erro humano. Contudo, é possível imaginar o esporte só com interferência de máquinas? Segundo o árbitro da Federação Internacional de Associações de Futebol (FIFA) Anderson Daronco, é inconcebível imaginar o futebol sem a figura do árbitro humano, justamente por questões interpretativas de jogo. “Não há dinâmica, quebraria a fluidez dele”, explica.

Apesar de erros de interpretação, já há tecnologias que auxiliam na paralisação e análise da partida. Introduzido nas Leis do Jogo da FIFA a partir de 2018, a tecnologia hoje utilizada é a do Árbitro Assistente de Vídeo (VAR). Nela, em três situações (gol, pênalti e casos para cartões), com a ajuda do vídeo, o árbitro de campo pode ser chamado pelos auxiliares da cabine do VAR composta por outros árbitros para que revise a decisão tomada em campo. A tecnologia tem o objetivo de reduzir erros e julgamentos equivocados. No entanto, a última decisão ainda é do árbitro de campo. 

Uma das questões mais confusas e polêmicas do futebol, por exemplo, é o lance tradicionalmente conhecido como “mão na bola” ou “bola na mão”. Apesar de diversos tópicos que categorizam a infração, a regra é alvo de constante discussão. Isso porque ainda dá espaço para a interpretação dos árbitros e assistentes que julgam a intenção do jogador ao tocar a mão na bola - o que no futebol é considerada uma infração.  O mesmo acontece com outros lances passíveis de interpretação e que nem sempre mantêm os mesmos critérios na hora de assinalar as faltas. 

Conforme explica Daronco, com a dinâmica e velocidade atual da partida é difícil o acompanhamento em todos os lances. Por isso, o esporte televisionado como é hoje, ajuda a identificar os erros, mas também a destacá-los. “A todo momento são produzidos ataques e contra ataques com extrema velocidade, e com um maior número de tomada de decisões, aumenta também a probabilidade de erro”, completa. Apesar das problemáticas de cada interpretação, o que representa também uma partida de futebol é o sentimento, algo inerente ao ser humano e possivelmente insubstituível, seja em campo, na arquibancada ou no sistema judiciário.