Especialista Laura Ferreira Cortes defende a elaboração coletiva de políticas públicas para reverter agravos dos últimos anos
Durante a pandemia de Covid-19, os números de violência contra mulheres tiveram um aumento significativo no Rio Grande do Sul. Um relatório feito pela Defensoria Pública do Estado apontou que houve um crescimento de 70% na procura por atendimento de casos de violência doméstica no RS, no período de outubro de 2020 a setembro de 2021. Os registros passaram de 10 mil para 17 mil.
Mesmo passado o período crítico da pandemia, a problemática da violência de gênero segue presente. Em 2023, mais de 22 mil medidas protetivas foram concedidas para mulheres vítimas de violência doméstica – uma média de cerca de 520 a cada dia. Os dados indicam a gravidade da situação e a necessidade de políticas públicas adequadas para o enfrentamento da violência.
Ainda em 2021, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, declarou: “A violência contra as mulheres é endêmica em todos os países e culturas, causando danos a milhões de mulheres e suas famílias, e foi agravada pela pandemia de Covid-19. Mas, ao contrário da Covid-19, a violência contra as mulheres não pode ser interrompida com uma vacina.”
Para falar sobre o tema, o Eixo Jornalismo conversou com Laura Ferreira Cortes, professora no Colégio Politécnico da UFSM, coordenadora do Fórum de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres de Santa Maria e ativista pelos direitos e saúde das mulheres.
A especialista atribui como fatores potencializadores ao cenário de violência de gênero principalmente ao machismo e desigualdades de gênero, às dificuldades de articulação dos de serviços de atendimento, ausência de metas concretas e políticas públicas de prevenção, à crise econômica causada pela pandemia e também ao aumento do conservadorismo no país e no mundo.
Eixo - Como a pandemia influenciou no agravamento do cenário de violência contra as mulheres?
Laura - Durante a pandemia, a violência doméstica esteve com aumento acirrado. Os feminicídios aqui no Rio Grande do Sul aumentaram em mais de 20%. A violência contra crianças e adolescentes, especialmente abusos sexuais também aumentou.
Alguns fatores contribuíram para esse contexto: um deles foi a dificuldade das mulheres acessarem serviços de apoio, pela redução inicial no atendimento desses serviços, principalmente de saúde, que estavam focados na pandemia de Covid-19 porque era uma emergência global de saúde pública. E também alguns serviços de justiça e segurança pública que restringiram alguns atendimentos em dado momento. Além do contexto econômico de perda de emprego, de dificuldade financeira para acessar transportes, por exemplo, sair de casa e conseguir fazer alguma denúncia ou buscar ajuda para romper com a situação. O cenário de desemprego também contribuiu para que os agressores estivessem mais presentes em casa e retomassem o poder e o domínio no lar, o que acirrou comportamentos machistas, acirrando também as tensões, o que favoreceu os atos violentos. O aumento do alcoolismo dentro de casa também foi uma consequência desse cenário. Vivemos uma onda conservadora nos últimos anos, de misoginia, apoio ao armamento, discursos machistas e de ódio. Isso também contribuiu com o aumento do número de feminicídios e de casos de violência. Essas pessoas se identificaram nas falas que incitam atos violentos e se autorizaram a cometer esses crimes.
Eixo - Quais foram os principais fatores?
Laura - Os fatores foram o machismo, o patriarcado, o poder do homem sobre as mulheres, as desigualdades sociais de gênero acirradas na pandemia. Além de abusos financeiros às mulheres, que, por exemplo, ganhavam benefícios sociais, mas muitas vezes, eram exploradas pelos companheiros ou ex-companheiros; a retomada desse poder em casa; a dificuldade das próprias instituições e as escassas políticas públicas para o enfrentamento desse problema no Brasil.
Eixo - Quais as marcas deixadas pela pandemia que precisam ser olhadas com atenção?
Laura - É preciso cada vez mais reconstruir essa cultura para que ela seja menos desigual para as mulheres, menos misógina e também a necessidade de criar políticas públicas que vão contribuir no enfrentamento à cultura machista, valorizando assim as mulheres. Ficou evidente, por exemplo, a necessidade criação de políticas de habitação, que cada vez mais incluam mulheres. O Estado do Rio Grande do Sul proveu, em muitas cidades, vagas para custeio de aluguel para mulheres poderem sair de casa. Além disso, o aumento de algumas vagas em casas abrigo para acolher essas mulheres. É preciso garantir essa continuidade. Além de de um olhar das próprias empresas para que discutam situações de violência no contexto de trabalho.
Em Santa Maria, teve a criação de um serviço emergencial para atender as mulheres. Também tivemos o Disque Covid UFSM – Acolhe Mulheres que foi um projeto de extensão criado a partir do nosso Fórum para acolher e orientar mulheres, por telefone e whatsapp. Um trabalho voluntário e interdisciplinar que contou com advogadas, enfermeiras, psicólogas e assistentes sociais e mostrou o quanto é importante também que as centrais de atendimento telefônico possam trazer articulações maiores entre os serviços de atendimento. Então, eu penso que a própria rede do enfrentamento precisa ser fortalecida para que a gente consiga atender melhor essas mulheres, crianças, meninas e adolescentes que sofrem violências. Quando a gente tem uma falha, uma dificuldade no setor de saúde, por exemplo, a gente vê o quanto essas situações fizeram as mulheres se calarem mais e não conseguirem acessar os serviços. Então, é preciso uma organização dos atendimentos de saúde e segurança para responder a esse tipo de situação emergencial. O que fazer com esse problema que se acirra nesses períodos?
Eixo - Quais são os aprendizados da pandemia que podem ser implementados de forma permanente no enfrentamento à violência contra às mulheres?
Laura - Algumas estratégias importantes foram criadas. Por exemplo, abertura de acesso às mulheres nas farmácias por meio de máscaras ou alguma outra estratégia que elas pudessem sinalizar para chegar até a denúncia, pedir ajuda; criação de canais online de denúncia e comunicação; aluguéis sociais para mulheres. Há necessidade de criação de protocolos de atuação em Santa Maria e estamos no suporte da gestão municipal para para desenvolver esse protocolo e implantar o fluxograma de atendimento. É necessário amarrar os fluxos, os vínculos, os contatos entre os serviços de atendimento, porque a rede é muito incipiente, a conexão dos pontos, que são os serviços e outras redes de suporte, precisa ocorrer. Ao mesmo tempo, precisa-se flexibilizar para não ser um protocolo tão duro que fecha a porta para as mulheres. É necessário investimento em políticas de trabalho, geração de renda, cursos de formação e profissionalizantes para desenvolver autonomia econômica e financeira dessas mulheres; mais creches para as crianças, para as mulheres protegerem seus filhos e também poderem trabalhar. Além do que eu já falei anteriormente, a questão da ampliação das vagas nas casas abrigo e de passagem para que as mulheres possam recorrer quando estiverem em situação de risco.
Eixo - O Brasil aprovou em março de 2020 o Auxílio Emergencial, que fornecia benefícios mensais aos trabalhadores informais. As mães solo recebiam o dobro do benefício. Esse tipo de política contribui para a diminuição dos índices de violência?
Laura - Os auxílios para mães solo, para mulheres em situação de violência, como aluguel social ou programas habitacionais que priorizam as mulheres, fortalecem a questão econômica e financeira, e isso contribui para uma melhora de acesso a bens e a produtos. Isso acaba fortalecendo tanto na autoestima dessa mulher, como também oferecendo condições para que ela ofereça uma vida melhor para os seus filhos e tenha a possibilidade de romper com situações de abuso. Muitas delas acabam não rompendo, principalmente, pensando nos filhos porque o agressor é o provedor da família e isso acaba sendo um conflito para a mulher. Essas políticas públicas vêm justamente para contribuir no empoderamento. Mas, não é só por meio de acesso à políticas econômicas e sociais, é preciso um trabalho de empoderamento coletivo, um trabalho diário de fortalecimento da autoestima dessas mulheres que acontece em serviços de saúde, em grupos, no acompanhamento psicológico, no auxílio frequente com esse serviços, que também pode ser do judiciário e da segurança pública
Eixo - Além da atuação dos agentes de segurança pública e da saúde, como outras áreas podem trabalhar de forma conjunta para diminuir os índices de violência?
Laura - Setor da Justiça, o Ministério Público, os Juizados do Enfrentamento à Violência são mecanismos judiciais de coibição e de aplicação da Lei Maria da Penha. Além disso, a assistência social contribui com políticas sociais para aumentar o empoderamento feminino. Junto com o acesso à cultura, à informação, à habitação. A mídia pode contribuir com campanhas de prevenção da violência e de igualdade de gênero. O setor privado também pode ajudar muito na coibição do assédio em bares, por exemplo. Também as empresas ampliando as políticas de inclusão para esse público, considerando as necessidades das mulheres relativas à maternidade e a amamentação nesses espaços de trabalho.
E a sociedade como um todo pode contribuir. As igrejas e outras instituições que são, muitas vezes, permeadas pelo machismo e podem se abrir para mudar essas questões. As universidades podem contribuir mais com projetos de extensão voltados para a temática e para a questão da desigualdade de gênero e masculinidades tóxicas.
Eixo - Se o mundo enfrentasse outra pandemia hoje, as instituições envolvidas nesta luta estariam melhor preparadas para lidar com os casos de violência?
Laura - Com certeza, penso que a pandemia foi um aprendizado global. Ainda assim, há a necessidade de institucionalizar os protocolos de atendimento, adaptar melhor os horários para que as mulheres possam acessar o atendimento via WhatsApp e via telefone, que foi uma estratégia também utilizada pela Polícia Civil nas delegacias. A institucionalização de políticas deve ser feita em todo o território brasileiro porque não adianta, por exemplo, o Rio Grande do Sul criar o Aluguel Social, e aí ficar focado nas grandes cidades, é necessário uma expansão dessas políticas nos municípios. Então, acredito que sim, os municípios estão mais preparados porque tiveram alguma resposta mínima para essas situações, até porque os dados foram muito divulgados, impactaram e trouxeram respostas. Mas é necessário ampliar ainda mais, porque a gente teve muitas iniciativas de deputados e deputadas, mas como é que as instituições responderam? Tais mudanças são imprescindíveis porque em um possível caso de necessidade de isolamento e de emergência global de saúde pública, a gente possa ter serviços mais preparados, mas especialmente porque vivemos uma pandemia sem fim de casos de violências. São mulheres perdendo suas vidas, são filhos e famílias perdendo suas mães, suas filhas.
Eixo - Na sua visão, como especialista no assunto, quais são as principais medidas que devem ser adotadas para reverter os altos índices de violência?
Laura - Precisamos superar o contexto de crise política, econômica e social deixados por esse período triste da nossa história. Houve um avanço do conservadorismo, misoginia e machismo. Como dizia Simone de Beauvoir, “Basta uma crise política e econômica para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Nós precisamos estar sempre vigilantes na luta para que esses direitos não se acabem, não sejam negados e questionados. É preciso cada vez mais uma mobilização dos movimentos feministas, seja pelas redes sociais ou fisicamente nas ruas. E também o fortalecimento das instâncias de controle social, os conselhos de direitos, uma retomada nas conferências de saúde das mulheres, conferências de políticas públicas para as mulheres que nós não tivemos nesses últimos anos. Nós precisamos avançar muito em políticas públicas para superar essa lacuna dos últimos seis anos que trouxe muitos prejuízos, como o fechamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres. É preciso que os governos municipais e estaduais lidem melhor com enfrentamento a partir dos dados que nós temos de violência, e possam então trazer respostas e ações mais concretas para o enfrentamento e prevenção do problema.
Reportagem: Caroline Souza e Luis Gustavo Santos