O assessor jurídico de organização indígena do povo Guarani falou ao Eixo Jornalismo sobre as implicações da aprovação do Marco Temporal
Verá Yapua Rodrigo, mestrando em Direito na Universidade de Brasília (UNB) e assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa, organização indígena que congrega coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra, falou ao Eixo Jornalismo sobre as implicações da aprovação do Marco Temporal.
A tese do Marco Temporal, discutida no âmbito dos poderes Judiciário e Legislativo, coloca em cheque o reconhecimento de um direito fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há dois argumentos principais que estão em disputa, de um lado, o chamado “direito originário”, que reconhece a garantia dos povos indígenas sobre suas terras – direito que antecede o próprio Estado brasileiro, e que está assegurado textualmente na Constituição de 1988. Do outro lado, há uma proposta restritiva, pela bancada ruralista, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado Marco Temporal. A discussão, que acontece desde 2021 no Supremo Tribunal Federal (STF), vai definir se a tese do Marco Temporal tem validade ou não e o que for decidido valerá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estejam sendo discutidos na Justiça.
Eixo Jornalismo - Caso aprovado, o que o Marco Temporal representa para o país?
Verá Yapua Rodrigo - A palavra que vem na mente é retrocesso. Porque a consolidação dessa tese no âmbito do Judiciário, pelo STF, afronta diretamente o que está disposto na Constituição que foi promulgada em 1988. Estabelecer essa tese como um critério para as demarcações seria retroagir no tempo. Isso viola os direitos dos povos indígenas do Brasil e contribui para continuidade desse genocídio velado que presenciamos hoje, que muitas vezes é legislado também. Seria uma brecha para que isso continuasse se perpetuando no nosso país.
Eixo - Onde e como surgiu a discussão a respeito do Marco Temporal?
Verá Yapua Rodrigo - É importante destacar que a tese do Marco Temporal já vem sendo ventilada desde os anos 2000. Logo após a promulgação da Constituição, já havia questionamentos sobre o caráter originário do direito dos povos indígenas aos seus territórios. Esses questionamentos nunca haviam ganhado tanta força até o julgamento do caso Raposa Serra do Sol envolvendo indígenas de Roraima, em 2009. Esse julgamento também se deu no âmbito do STF quando, na época, se estabeleceu condicionantes para a demarcação daquela terra indígena em específico. E dentre essas condicionantes se consolidou um entendimento para aquele caso específico que é essa tese do Marco Temporal, ou seja, as terras que os indígenas não estariam ocupando no dia 5 de outubro de 1988 naquele território específico, não seriam passíveis de demarcação. Então, desde 2009 até a atualidade, percebemos que o judiciário tem adotado essa tese como um argumento válido para questionar demarcações – algumas finalizadas e outras ainda em processo de tramitação na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). E vemos que muitas terras indígenas vêm sofrendo com a aplicação dessa tese, no âmbito do Judiciário.
Eixo - Enquanto profissional da área do Direito, você poderia explicar a diferença e o que há de comum entre o julgamento da tese do Marco Temporal que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Poder Legislativo?
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral em um Recurso Extraordinário, o Recurso 1.017.365, que envolve a comunidade Xokleng e o estado de Santa Catarina. Nesse caso, o estado de Santa Catarina pede reintegração de posse contra os povos indígenas, os Xokleng e os Guarani, que habitam a região, pois os limites de demarcação incidiram sobre uma área de preservação que é de administração do Estado. Esse caso foi tramitando na justiça até chegar ao Supremo Tribunal Federal. O Supremo, então, dá esse status de repercussão geral. Ou seja, o Supremo entendeu que a partir do julgamento desse caso se terá um entendimento sobre o que deve prevalecer em todos os processos de demarcação. Se é o entendimento do caráter do direito originário, esse direito congênito dos povos indígenas a seus territórios, ou a tese do Marco temporal, que é um elemento que o estado de Santa Catarina usa para questionar a tradicionalidade da ocupação dos povos indígenas daquela região. Enquanto isso, no legislativo há a tramitação de Projeto de Lei (PL), e acho que a principal que a gente sempre tem atacado e têm questionado, enquanto movimento indígena, é o PL 490 – chamado assim na época em que estava na Câmara dos Deputados, e que agora se tornou o PL 2903 no Senado. Esse PL, assim como o julgamento deste recurso extraordinário no STF, traz outras temáticas, outras inovações legislativas referentes aos territórios indígenas e aos povos indígenas em geral. Um dos pontos que esse PL trata é justamente a aplicabilidade dessa tese do Marco Temporal, mas por via legislativa. Então, são dois campos em que temos tentado disputar, tanto no sentido político, narrativo, mas também com incidências mais jurídicas, com pareceres, com notas técnicas, analisando os pontos que estão sendo discutidos tanto no judiciário, quanto no legislativo.
Eixo - Em que situação se encontra a pauta atualmente no STF?
No STF, desde 2021 até o momento, temos três votos no âmbito desse Recurso Extraordinário que discute a tese do Marco temporal. O relator Edson Fachin votou pela derrubada da tese do Marco Temporal. O segundo voto, do Cássio Nunes, defende que precisa haver um marco histórico, um limite temporal para o reconhecimento das terras indígenas. E o terceiro voto, que saiu no dia 7 de junho de 2023, do Ministro Alexandre de Moraes, também presenciamos o voto dele contrário a consolidação do uso dessa tese como um critério para as demarcações. Após isso, o ministro André Mendonça pede vistas do processo, ou seja, ele guarda para si o processo para uma análise mais aprofundada e estamos com perspectivas de que esse recurso extraordinário volte a ser votado, volte para o plenário do STF em meados de setembro, ou até antes.
Eixo - Em seu Trabalho de Conclusão de Curso defendido em 2019 na UFSM, você apresentou a pesquisa intitulada “Violações aos direitos constitucionais dos povos indígenas: impasses e perspectivas”, pode explicar o trabalho desenvolvido?
Verá Yapua Rodrigo - No meu TCC eu tentei trabalhar, fazer uma análise do tratamento que os indígenas receberam nas legislações, tanto na época da coroa, época de República, e até na atualidade. Tenho datado, desde 1680, esse tratamento que os indígenas recebem pela legislação brasileira e esse reconhecimento do direito ao território. Na primeira constituição da República não tivemos menção aos povos indígenas, somente em 1934 é que os direitos dos povos indígenas aos seus territórios foi trazido no texto constitucional. Sempre nesse caráter de reconhecimento. Então ele não é uma criação, não é uma constituição de direitos, é um reconhecimento. E na Constituição de 1988, de novo esse reconhecimento do caráter originário do direito dos povos indígenas, ou seja, o indígena quando nasce já é detentor desse direito. Então, a tese do Marco temporal tenta inverter essa lógica. Tenta dar um entendimento de que a Constituição foi a criadora desse direito, quando na verdade ela vem reconhecer um direito que já é posto, já é reconhecido. Nesse sentido, eu realizei a análise justamente fazendo o fechamento nesse impasse que nos encontramos atualmente, que é o julgamento deste recurso extraordinário no âmbito do STF. E aí eu tentei fazer uma comparação com a época da mobilização dos povos indígenas em torno da Constituinte, que garantiu esse capítulo específico para os povos indígenas na Constituição atual. E que, esse momento de julgamento no Supremo Tribunal Federal, não difere, porque é justamente, o texto da Constituição da forma que foi colocada que está sendo “revisada”, ou seja, está sendo consolidado um entendimento que prevalecerá a partir do trânsito em julgado deste recurso extraordinário.
Eixo - O Marco Temporal pode ser considerado uma violação de direito?
Sem dúvidas, o acolhimento dessa tese pelo STF seria sim caracterizado como uma violação de direitos. Primeiro viola o próprio texto constitucional, quando não vem estabelecido a criação do direito, em 1988, mas sim um reconhecimento. Consideramos essa tese como inconstitucional porque afronta diretamente o disposto na Carta Magna. Viola esse direito originário que desencadeia em violações de outros direitos, por exemplo, na época de pandemia, houve muitos muitas respostas de órgãos públicos como a Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) e a FUNAI, a respeito de atendimento a comunidades indígenas, de que algumas políticas públicas não poderiam alcançar as comunidades dos territórios que estavam sem homologação das suas terras indígenas. Então, o estabelecimento desse Marco Temporal traria violações muito graves. Prevê também a possibilidade de reestudo de territórios já demarcados e também o atravessamento de todos os processos de demarcação em andamento. Hoje são mais de 400 que estão em tramitação no âmbito administrativo da Funai, alguns estão suspensos por decisão judicial, justamente pelo não julgamento ainda dessa tese de repercussão geral que discute a aplicabilidade ou não do Marco Temporal. Isso tudo viola um direito que consideramos como um direito humano, que é o direito ao território para os povos indígenas.
Eixo - Um estudo do Instituto Socioambiental (ISA), publicado em 2022, mostra que os Povos Indígenas e tradicionais são responsáveis pela proteção de um terço das florestas no Brasil. De que forma a tese do Marco Temporal ameaça essa proteção e a preservação das florestas?
Verá Yapua Rodrigo - É muito reconhecida essa indissociabilidade entre os povos indígenas e o meio ambiente. A tese do Marco Temporal está diretamente ligada a isso porque ela inviabilizaria demarcações. Há casos de terras que foram homologadas, por exemplo, em 2006, 2007, nos anos 90, que haveria a possibilidade de reabrir os estudos, e isso acarretaria um perigo de trazer danos, por exemplo, de redução de território, e quando se fala em redução de território é reduzir, seja a área de mata em pé ou seja a área de ocupação nos locais de moradia. Sem falar que travaria as outras demarcações que estão em processo. A maioria dos territórios indígenas que se pede demarcação estão situados em áreas de mata, de meio ambiente. Então, se forem travados os processos de demarcação, se passar a rever demarcações já concluídas, isso abre a possibilidade de exploração de determinado território que por sua vez guarda essa biodiversidade. Se levarmos em consideração o povo Guarani, por exemplo, que majoritariamente têm ocupação em bioma da Mata Atlântica, é um povo que tem menos demarcações de seus territórios, são mais de 74 processos de demarcação em fase administrativa que atualmente são responsáveis por proteger boa parte do bioma Mata Atlântica. Então, só para deixar um pouco mais nítido esse caráter de como, por exemplo, a paralisação ou a não demarcação desses territórios poderia abrir possibilidades para questões como exploração, supressão de vegetação, pesca e caça ilega e todo tipo de crime ambiental que se possa imaginar. Enquanto nós, indígenas, estivermos em um território, seja ele demarcado ou não, continuaremos fazendo essa proteção territorial, porque proteger o meio ambiente é proteger a nossa existência, a nossa vida, nossa forma de se organizar, nossa forma cultural de ser enquanto povo.