Durante os anos de 2020 a 2023, período de emergência sanitária causada pela Covid-19, a cidade de Santa Maria recebeu mais de R$400 milhões da federação por meio de três programas sociais
No Rio Grande do Sul, Santa Maria é a sexta cidade mais populosa, com mais de 285 mil residentes, segundo dados do IBGE de 2022. Coincidentemente, também é a sexta cidade que mais recebeu benefícios sociais durante a pandemia. Esta posição se deve à população da cidade, já que com mais cidadãos, maior é a demanda por assistência social em momentos de crise. Entretanto, a burocracia no repasse de verbas e a centralização da distribuição no Governo Federal impediu que os benefícios chegassem aos focos de vulnerabilidade social.
Em abril de 2020, foi lançado o Auxílio Emergencial, um benefício federal de proteção social que visava garantir uma renda mínima à população em situação de vulnerabilidade social. O benefício era voltado para trabalhadores que tiveram as atividades interrompidas pela pandemia e, em vista das medidas de contenção do vírus, entraram em situação de precariedade socioeconômica. O benefício foi concedido para cidadãos cadastrados no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais) e por meio de autodeclaração. Com três parcelas previstas até junho de 2020, o auxílio foi prorrogado até o momento de fechamento da pauta, em maio de 2023. Na cidade de Santa Maria, foram mais de R$300 milhões distribuídos apenas no primeiro ano da crise sanitária, que contempla os últimos dez meses de 2020, entre abril e dezembro.
O principal problema relacionado ao Auxílio diz respeito ao processo de concessão do benefício. A partir da autodeclaração, cidadãos que não passaram pela análise dos CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) poderiam se tornar possíveis beneficiários, ou seja, a ajuda financeira sairia da esfera federal diretamente até o cidadão, sem a mediação do poder local. Dessa forma, o Auxílio deixou de ser uma forma de assistência social ativa, que combate desigualdades, para um benefício individualizado e desligado da realidade local.
Além disso, com a simplificação promovida pela autodeclaração, que não tem os critérios de análise do CadÚnico, o número de recebedores aumentou de forma exponencial e desordenada, o que dificultou o rastreamento de recebedores indevidos. Em Santa Maria, em 2020, foram mais de 70 mil beneficiários do Auxílio Emergencial, número que se destaca em relação ao de beneficiários do Bolsa Família no mesmo período: cerca de sete mil.
Ativo desde 2003, o Bolsa Família é um programa federal de transferência direta e indireta de renda que integra benefícios de assistência social, saúde, educação e emprego, destinado às famílias em situação de pobreza. Além disso, o Programa oferece ferramentas para a emancipação socioeconômica da família em situação de vulnerabilidade social. Entre 2013 e 2021, período disponível no Portal de Transparência, foram mais de R$ 130 milhões transferidos para residentes de Santa Maria.
O segundo problema diz respeito ao recebimento concomitante do Auxílio Emergencial e do Bolsa Família, que passou a ser pago segundo o “valor mais vantajoso” para o cidadão. Na prática, se o valor do Auxílio Emergencial fosse melhor do que o recebido por meio do Bolsa Família, o cidadão perderia temporariamente o acesso ao último e ficaria apenas com o primeiro. Além disso, independente da situação socioeconômica prévia, as famílias não poderiam receber o auxílio de forma cumulativa. Dessa forma, novamente o Governo Federal tomava conta de uma assistência antes municipal, fazendo o dinheiro fluir sem a mediação das prefeituras e dos CRAS. Na prática, a garantia de um Auxílio contínuo - na época representado pelo Bolsa Família - foi substituída por um Auxílio com prazo de validade inicial de três meses.
Além disso, o sistema previa que mesmo famílias com cadastros desatualizados no CadÚnico recebessem o auxílio de forma automática. Isso motivava um fluxo centralizado da verba, que nem sempre atendia às famílias de fato carentes. Na prática, o sistema de execução do Auxílio dispensa o trabalho socioeconômico preexistente, nivelando todos os cidadãos da mesma forma e excluindo os órgãos de assistência.
Em Canoas, terceiro município mais populoso do estado, localizado na região metropolitana de Porto Alegre, a população contou com a execução de um auxílio emergencial semelhante ao auxílio federal, mas implantado com verbas municipais. O Auxílio Emergencial Canoense foi iniciado em março de 2021 e já contemplou mais de 5 mil moradores da cidade. Além de um auxílio financeiro de R$200, os beneficiários recebem cursos profissionalizantes e prestam quatro horas mensais de serviços comunitários para a cidade. O sistema funciona em um ciclo de desenvolvimento pessoal, promovendo uma formação profissional que o mantém independente ao mesmo tempo que retorna para a sociedade por meio de serviços comunitários.
Em Santa Maria, uma iniciativa semelhante foi realizada durante o ano de 2021. Nomeada como “Auxílio Inclusão”, o programa foi executado pela Secretaria de Desenvolvimento Social, a partir da base de dados do CadÚnico. O programa foi voltado para famílias em extrema pobreza, com renda máxima de R$178 por pessoa, atendendo, na época, mais de 8 mil grupos familiares com um auxílio financeiro no valor de R$400. Apesar de inovador, o Auxílio Inclusão foi descontinuado em dezembro de 2021, além de ter sua página removida do portal da Prefeitura. Procurada pelo Eixo Jornalismo, a Secretaria não retornou com esclarecimentos sobre os motivos do fim do programa e nem outros questionamentos relacionados ao combate de desigualdades em Santa Maria em um contexto pós-pandêmico.
Apesar do Auxílio Emergencial representar um salto de investimento em benefícios sociais, sendo trinta vezes maior apenas nos primeiros dez meses de pandemia (ver gráfico). Além disso, outro dado de destaque é a relação entre o repasse das verbas ao longo do tempo, já que o Bolsa Família, em nove anos (equivalente a 108 meses) de dados disponíveis, repassou R$ 130 milhões para residentes santa-marienses, enquanto o Auxílio Emergencial, em apenas dez meses de 2020, repassou R$ 305 milhões.
Reportagem: Pedro Souza