Marconi Gadêlha
O senso comum e a experiência prática nos atestam a solidez das coisas: uma rocha, uma parede, uma cadeira, até o nosso próprio corpo. É intuitivo supor que estamos cercados por matéria densa, compacta, impenetrável. No entanto, a ciência nos mostra uma realidade surpreendentemente diferente: tudo o que vemos e tocamos é, na maior parte, vazio, um grande nada. Assim, o conceito de “matéria sólida”, no sentido de palpável, seria, a rigor, um grande e fluido dragão na garagem, uma ilusão, uma quimera.
Esta é uma das ideias centrais do sexto episódio da série Cosmos: A Spacetime Odyssey, apresentado pelo astrofísico Neil DeGrasse Tyson. Neste episódio, intitulado "Deeper, Deeper, Deeper Still" (algo como “Mais Fundo, Mais Fundo, Mais Fundo Ainda”), Tyson leva o espectador interior da matéria, reduzindo a perspectiva até alcançar as partículas fundamentais que compõem tudo ao nosso redor. A partir dessa exploração microscópica, somos levados a entender que o que percebemos como sólido é, na verdade, composto quase inteiramente por espaço vazio.
Comecemos pelo básico. Tudo o que conhecemos é feito de átomos. Esses átomos, por sua vez, são compostos por um núcleo central extremamente pequeno, feito de prótons e nêutrons, rodeado por uma nuvem de elétrons. Se comparássemos um átomo a um estádio de futebol, o núcleo seria do tamanho de uma ervilha no centro do campo, e os elétrons estariam orbitando nos arredores das arquibancadas. O resto? Puro vazio.
Essa analogia, embora simplificada, serve para ilustrar uma realidade assombrosa: mais de 99,9999999999999% do volume de um átomo é espaço vazio. E se tudo é feito de átomos — eu, você, as montanhas, uma sequoia gigante — então tudo o que existe é, essencialmente, composto por um nada extremamente organizado. Somos 99,9999999% nada – materialmente falando. Neil DeGrasse Tyson destaca que o espaço entre os núcleos e os elétrons é tão vasto — em relação ao tamanho das partículas — que se pudéssemos eliminar todo o “vazio” dos átomos que compõem o corpo humano, este caberia em um grão de poeira. No entanto, esse “grão de poeira” teria exatamente a mesma massa que o corpo original, ou seja, se você fosse colocado num prato de uma balança e, no outro prato, todas as partículas atômicas de seu corpo (sem o vazio entre elas), a balança ficaria perfeitamente equilibrada, tendo, de um lado, o seu corpo e, do outro, um grão de poeira que, também, seria “você”.
Mas, se tudo é tão vazio, por que não atravessamos paredes? Por que, ao sentarmos numa cadeira, não afundamos nela até o chão? A resposta reside em uma das quatro forças fundamentais da natureza: a força eletromagnética. No nível atômico, a força eletromagnética atua entre partículas carregadas. Os elétrons ao redor dos átomos possuem carga negativa, e dois objetos tentando ocupar o mesmo espaço resultam em uma repulsão entre suas nuvens eletrônicas. Esse “toque” que sentimos ao encostar em algo é, na verdade, a resistência da força eletromagnética impedindo que os elétrons do nosso corpo penetrem os elétrons do objeto. Algo como a sensação que experimentamos ao tentarmos encostar dois ímãs pelos mesmos pólos, só que em amplitudes inimaginavelmente maiores.
Não há contato real entre os átomos. Quando colocamos nossas mãos em uma superfície, o que ocorre é uma dança de campos eletromagnéticos repelindo-se mutuamente. Nenhum átomo de nosso dedo "encosta" diretamente em um átomo da mesa. O que percebemos como toque é, portanto, uma ilusão tátil gerada por campos de força.
O episódio da série também nos conduz a uma compreensão mais profunda da natureza dos campos invisíveis que regem o universo. Não apenas a força eletromagnética é responsável por essa "solidez ilusória", como também organiza a estrutura da matéria em escalas microscópicas e macroscópicas. Os elétrons estão presos às suas órbitas ao redor dos núcleos atômicos por essas forças. Sem a força eletromagnética, os átomos simplesmente se desintegrariam.
A série também propõe um experimento imaginativo: o que aconteceria se, de fato, fosse possível que dois objetos se tocassem de verdade, isto é, que seus átomos se fundissem ignorando a repulsão eletromagnética? A resposta é um tanto alarmante: isso seria equivalente à fusão nuclear — o mesmo processo que ocorre no interior das estrelas, onde núcleos atômicos se fundem liberando quantidades imensas de energia.
Esse simples exercício de imaginação serve para mostrar que a separação entre os átomos, embora invisível e impalpável, é essencial para a estabilidade do mundo como conhecemos. A aparente fragilidade da matéria — cheia de espaço vazio — é, na verdade, o que torna tudo possível: desde a química da vida até as estruturas mais complexas do universo.
No final do episódio, Tyson nos lembra que, mesmo nesse mar de vazio, há uma ordem profunda. O que parece vazio é, na verdade, um palco onde ocorrem interações fundamentais que sustentam a existência. O espaço entre as partículas não é, afinal, um nada absoluto, mas um campo dinâmico onde forças atuam constantemente para manter a coesão da realidade.
O episódio 6 de Cosmos é uma lição poderosa sobre humildade científica. Ele nos mostra que o que vemos é apenas uma fração da realidade, e que por trás de cada objeto sólido há um cosmos invisível de interações e forças que operam além dos sentidos humanos. A solidez das coisas é uma ilusão cuidadosamente construída por leis naturais que, embora invisíveis, são profundamente reais.
Mais um exemplo de que a ciência tem o poder de desconstruir nossas certezas mais básicas, de domar ou caçar dragões na garagem. Ao revelar que a matéria é, em sua essência, vazia, e que tudo o que sentimos como sólido é sustentado por campos de força invisíveis, Cosmos nos convida a encarar o universo com olhos renovados. Não como um mundo de coisas sólidas e imóveis, mas como uma sinfonia de interações invisíveis onde até o "nada" é, de fato, tudo. No sentido humano, somos lembrados do verso do escritor espanhol Alfredo Conde, que disse que “O homem é um milagre químico que sonha”. Ou, no experimento mental de Tyson, um punhado de partículas atômicas que, juntas, são do tamanho de um grão de poeira; mas um grão de poeira que sonha.
Indicações para aprofundamento
O sexto episódio da série Cosmos: A Spacetime Odyssey, intitulado "Deeper, Deeper, Deeper Still" (em português, "Mais Fundo, Mais Fundo, Mais Fundo Ainda"), está disponível para visualização nas plataformas gratuitas Vimeo e Dailymotion.