26/11/2024
Marconi Gadêlha
Poucas construções no mundo exercem tanto fascínio, despertam tanta curiosidade e são objeto de tanta especulação e investigação quanto as pirâmides de Gizé, no Egito. Arrisco afirmar que sejam um dos assuntos mais recorrentes e caros aos conspiracionistas, aos historiadores, aos ufólogos, aos arqueólogos, aos místicos, aos maçons, aos entusiastas das políticas afirmativas voltadas aos afrodescendentes, enfim, a toda uma miríade de pessoas que veem nas pirâmides algo sobre suas próprias expectativas e valores. Assim, podem as construções serem abordadas como um sinal dos antigos, como uma mensagem mística, como um exemplo da engenharia e da astronomia. Portanto, as pirâmides egípcias seriam presença quase lógica neste portal e nesta coluna; fatos “improváveis” e “verdades” incontestáveis fazem morada na aura que as cerca.
Apesar de existirem construções em forma de pirâmide em todo o mundo – como no próprio Egito, em algumas outras partes da África, na Mesoamérica e na Ásia – vamos nos ater somente às de Gizé, especificamente na maior delas.
O que sempre vem à tona numa conversa informal ou em estudos formais, é o modo como elas foram construídas. Que técnicas foram utilizadas, como foram erguidos e transportados os blocos gigantescos de pedra. E quantas pessoas foram empregadas na empreitada. De tão espetaculares são as estruturas aos nossos olhos modernos, foi quase inevitável que surgissem as teorias sobre os arquitetos e engenheiros alienígenas, de outros planetas. Os humanos, para quem defende tal hipótese, não seriam capazes de intento tão portentoso. Dizem que, mesmo hoje, com toda a tecnologia, seria impossível.
Nestas breves linhas não vou esmiuçar cada uma das teorias sobre o quando e o porquê da construção. Vou abordar o “como”, mas não afirmando que foi de tal forma ou outra, mas que, à luz da física, foi, sim, obra de mãos humanas. Sobre quais técnicas as mãos humanas empregaram, deixo a cargo das pesquisas dos mais diversos ramos.
Consideremos a maior e mais antiga das três grandes pirâmides do Planalto de Gizé, a de Quéops (as outras duas são de Quéfren e de Miquerinos). Erguida, conforme a História oficial, há 4.600 anos, durante o reinado do faraó que lhe dá o nome, tinha, originalmente, 146,6 metros, incluindo o “piramídeo”, ou o cume perdido (sim, a Grande Pirâmide não conta hoje com um cume, sendo sua “ponta” um plano e tem uma altura atual de 138,8 metros) e volume aproximado de 2,6 milhões de metros cúbicos espalhados por mais de 2 milhões de blocos. Talvez nunca se saiba exatamente como ela foi feita, pois todas as teorias – das mais sérias às mais esdrúxulas – apresentam problemas. Uma longa rampa, rampas menores circundando a estrutura, um sistema hidráulico usando canaletas e comportas com os blocos sendo conduzidos mediante flutuação, além, claro, dos indefectíveis construtores alienígenas. Mas a falta de certeza sobre o como não implica a impossibilidade de se calcular, com alguma precisão, quantas pessoas seriam necessárias para o trabalho (vamos considerar que foram, de fato, pessoas).
Para tanto, um bom parâmetro para início dos cálculos é a limitação do tempo de construção em 20 anos, a duração do reinado de Quéops. O historiados grego Heródoto, 2.100 anos após a conclusão da obra, foi informado, durante uma visita ao Egito, que grupos que totalizaram 100 mil homens, trabalharam em turnos de 3 meses para concluir a estrutura. Esse número é exagerado? Bom, é possível chegar ao número real aproximado usando alguns princípios inescapáveis da física.
Vamos começar com o cálculo da energia potencial da Grande Pirâmide, ou seja, a energia necessária para erguer a massa acima do solo, que é de cerca de 2,4 trilhões de joules. O cálculo disso é relativamente simples: é o produto da aceleração da gravidade (g), da massa (m) e da altura do centro de massa (h) ou, no formato de fórmula, Ep=mgh. Embora a massa exata não possa ser calculada por causa da incerteza quanto à densidade específica do calcário e da argamassa usados para a estrutura, estima-se uma média de 2,6 toneladas por metro cúbico, o que dá aproximadamente, 6,75 milhões de toneladas. A altura do centro de massa é um quarto da altura da pirâmide, ou seja, 36,5 metros. A aceleração da gravidade é 10 m/s2. Logo, Ep=6,75 bilhões de quilos x 10m/s2 x 36,5m = 2,4 trilhões de joules.
As pessoas são capazes de converter cerca de 20% da energia dos alimentos em trabalho útil e, para homens esforçados, isso perfaz cerca de 440 mil joules por dia. Portanto, levantar as pedras com essa energia exigiria, mais ou menos, 5,5 milhões de dias de trabalho (2,4 trilhões de joules divididos por 440 mil). Considerando os 20 anos do reinado do faraó, isso dá 275 mil dias para cada um desses 20 anos. Mas, obviamente, um ano não pode comportar 275 mil dias nem o trabalho foi realizado por somente uma pessoa, o que impõe o ajuste aos limites físicos. Assim, arredondando para 300 os dias efetivos de trabalho no ano, conclui-se que cerca de 900 pessoas poderiam realizar o trabalho se labutassem por 10 horas ao dia, por 20 anos (5,5 milhões de dias de trabalho divididos por 20 anos, dividido por 300 dias). Isso, para a estrutura.
Um número parecido poderia ser necessário para assentar as pedras na estrutura, fazer o acabamento do revestimento dos blocos. Para cortar os 2,6 milhões de metros cúbicos de pedras em 20 anos teria exigido 1.500 cortadores na pedreira trabalhando 300 dias por ano. O total geral da força de trabalho, seria, portanto, de mais ou menos 3.300 operários. Mesmo se dobrarmos esse número, considerando os projetistas, organizadores e supervisores, bem como o transporte, o reparo de ferramentas, construção das moradias no canteiro de obras, as refeições, a manutenção de roupas, o total ainda seria de menos de 7.000 pessoas.
Mas este cálculo considera que são as mesmas 7.000 pessoas trabalhando pelos 20 anos ininterruptos. Mas as pessoas morrem. Ou não conseguem mais trabalhar. E, há mais de 4.500 anos, no deserto do Egito, sob o exercício de trabalho árduo lidando com blocos de toneladas, num labor por vezes impositivo e forçado, qual seria a “vida laboral útil” de um trabalhador? Dois anos? Três? Não dá para saber, mas sejamos pessimistas e vamos considerar dois a quantidade de anos que um mesmo trabalhador serviu de forma ininterrupta na obra. Assim, pela média, a cada dois anos o contingente teria de ser substituído, o que resultaria, no decorrer dos 20 anos, em 10 contingentes de 7.000 pessoas, resultando numa projeção de 70.000 pessoas. Claro que um projetista ou um alfaiate viveriam muito mais que um cortador na pedreira ou um assentador de bloco encarapitado lá no alto ou dentro da obra. Mas, repito, sejamos pessimistas e mantemos a média de dois anos de vida laboral útil para cada um. Aqui a frieza e a certeza da matemática devem casar com o imponderável da incerteza das reais condições de trabalho no Egito de 46 séculos no passado.
70.000 pessoas por 20 anos. Não muito distante dos 100 mil homens do Heródoto, não é mesmo?
Na época da construção da Grande Pirâmide, a população do Egito está estimada entre 1,5 e 1,6 milhão de pessoas. Portanto, aplicar a força de 70.000 (ou 100 mil) pessoas no decorrer de 20 anos parece que não teria afetado extraordinariamente a economia do país. E, de fato, não afetou; tanto que a obra FOI realizada e o império egípcio seguiu em frente. Creio que desafio maior teria sido organizar o trabalho, com o suprimento ininterrupto de pedras, incluindo o granito para as estruturas internas, que precisava ser trazido de barco do sul do Egito, cerca de 800 quilômetros de Gizé; e prover moradia, roupas e comida para os grupos de trabalhadores no local da obra. Hoje é consenso que o regime de trabalho não teria sido o escravo, pelo menos não majoritariamente. Seriam homens livres que trocaram parte de sua liberdade por bens materiais ou, até mesmo, prestígio ou favores terrenos ou promessas de recompensas celestiais. Recompensas celestiais? Não seria improvável. Consideremos que, para aquele povo (assim como para diversos outros da antiguidade), os mundos material e espiritual se misturavam, se mesclavam e se moldavam, numa simbiose em que o limite de um perante o outro não era, de forma alguma, claro. O que se fazia num, refletia no outro mundo; logo, um trabalho por aqui poderia ser recompensado alhures. É uma possibilidade. Claro que o pagamento poderia ser, simplesmente, ração em água e trigo suficientes para uma semana ou um mês.
Na década de 1990 foi descoberto um cemitério para trabalhadores e as fundações de um assentamento para abrigar os construtores das duas outras pirâmides construídas em Gizé posteriormente à de Quéops, indicando que não moravam mais de 20.000 pessoas por local.
Mas o melhor testemunho que a técnica de construção de estruturas gigantescas estava completamente dominada na época é a rápida sequência da construção das duas outras pirâmides: A de Quéfren, filho de Quéops, começou em 2.520 a.C (dez anos após a morte do pai) e a de Miquerinos, em 2.490 a.C. Esse breve intervalo deixa claro que erigir aquelas estruturas massivas se tornou empreendimento comum para os projetistas, administradores e trabalhadores do Império Antigo.
O que ficou claro foi a capacidade humana para o empreendimento, A força humana tem a capacidade necessária para tanto. Pelos princípios da física, com o número certo de pessoas e com tempo suficiente (mas razoável), o trabalho seria possível.
Já a questão do COMO fica em aberto. A energia potencial teve de ser canalizada de alguma forma e a maneira como isso foi feito parece estar longe de consenso entre os pesquisadores. Rampas, água, força bruta sobre troncos, palha e lama, animais... algo foi usado além das mãos nuas dos trabalhadores. Por vezes surge uma pista, uma ideia, uma revelação “definitiva”, mas sempre surge, igualmente, quem conteste. Mas algo foi usado. Deve ter sido uma mescla de simplicidade e majestosa engenhosidade de técnicas hoje perdidas. Não foi Arquimedes que teria dito: “Dê-me um ponto de apoio e moverei a Terra” para destacar o poder de uma simples alavanca? Com certeza os egípcios, 2.200 antes do matemático grego, entendiam o mesmo princípio. E o usavam.
Este parece ser um intrigante caso em que o dragão na garagem é a própria incerteza, a própria dúvida. Parece que a “verdade” a ser protegida é o mistério, que povoa mentes, diverte e promove investimentos, pesquisas, fama, livros, documentários, séries, turismo. Romper as cadeias que prendem esse dragão pode ser simples a ponto serem necessário apenas uma alavanca e um apoio. Mas será que alguém quer mesmo?
Indicações para aprofundamento
SMIL, VACLAV. Os números não mentem – 71 histórias para entender o mundo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.