9 de dezembro de 2023
Marconi Gadelha
Esclarecendo aos que não acompanham esta coluna desde o início, a expressão “dragão na garagem” foi tomada emprestada do astrônomo Carl Sagan que, em seu livro O Mundo Assombrado pelos Demônios, compara os eventos não demonstráveis pelos meios científicos convencionais (como fantasmas e ovnis) à existência de um dragão escondido numa garagem; um bicho invisível e não detectável por qualquer instrumento e cuja existência só seria fundamentada na crença ou na fé. Na coluna uso a expressão no mesmo sentido e, também, em outro: no sentido das “verdades” presentes em qualquer área e que, de tão enraizadas no senso comum, acabam inquestionáveis; mas, quando submetidas a aferição mais cuidadosa, se mostram falácias ou meias verdades.
Feitos o esclarecimento e a consideração devidos, nesta ocasião abordaremos o tempo – ou, mais precisamente, a medição do tempo. É um fértil ninho de dragões em garagem. Noutra oportunidade falamos sobre a virtual inexistência do “presente”. Agora vamos nos ater a um dragão chamado “passado”.
É bem provável que todos já tenham, pelo menos, ouvido falar da franquia de filmes De Volta para o Futuro, que conta as peripécias de Marty McFly, um adolescente que, a bordo de um DeLorean transformado em máquina do tempo, viaja com desenvoltura para o passado e para o futuro. Para tanto basta ele se acomodar no carro, ajustar o mostrador para a data específica (por exemplo 02 de janeiro de 1972) e bum! Numa explosão de faíscas e fogo o carro desaparece e reaparece no mesmo lugar físico mas na data escolhida.
Se Marty e o Delorean existissem na vida real, o que será que aconteceria se o garoto digitasse no aparelho do carro a data de 12 de outubro de 1582? Provavelmente ele cairia num limbo, num nada temporal. Por quê? Simplesmente porque esse dia não existiu (pelo menos em muitos lugares do mundo). É inútil rastrear fatos entre 5 e 14 de outubro de 1582 porque esses 10 dias foram suprimidos daquele ano. Foram excluídos da existência, fazendo com que o mundo pulasse 10 dias no futuro. E tudo graças a um papa incomodado com as diferenças entre as festas religiosas e o calendário.
Para entender a história dos dias perdidos, vamos nos restringir ao que ocorria em Roma, pois foi a partir dela que se desenrolou o caso. Em Roma, na era da República, antes de Cristo, era adotado o calendário de Nuno Pompílio, baseado nos ciclos solares e lunares. Os meses se iniciavam na Lua Nova e os anos no equinócio de primavera (em março, no hemisfério norte). Cada semana tinha 7 dias e era dominada por uma fase lunar. Era um calendário dividido em 355 dias e 12 meses.
Só que, alheia aos cálculos dos homens, a Terra leva aproximadamente 365 dias e 6 horas para girar em torno do Sol. Portanto, ao se tentar adotar o calendário de 365 dias, aquelas seis horas fazem diferença ao longo de anos, causando um desajuste considerável. Além disso, os ciclos lunares e solares não se encaixavam, exigindo, não raro, a adição de meses extras, com quantidade variável de dias, para completar o ano. Já aconteceu de o calendário “oficial” e o ano solar contarem mais de três meses de diferença – o que, é claro, gera uma confusão danada na hora de contar as estações do ano e as épocas de plantio e colheita, por exemplo.
Quando se tornou ditador da república romana, Júlio César decidiu reformar o calendário para o adequar novamente ao tempo natural. Nascia, assim, o Calendário Juliano, criado em 46 a.C. Para este ano, de modo a ajustar os desarranjos anteriores, como num freio de arrumação, foi adotado um calendário solar com 15 meses e 443 dias (4 meses para cada ciclo de estação do ano) e o ano passaria a ter início no dia 1 de janeiro. As mudanças foram muitas e, obviamente, o povo ficou confuso. Além do mais, 46 a.C. ficou marcado como o último em que ocorreriam as intercalações de meses no ano, comuns durante a vigência do calendário anterior. Assim, 46 a.C. ficou conhecido como o “Ano da Confusão”.
Um ano depois, em 45 a.C. ficou instituído o ano solar com 365 dias e 6 horas, divididos em 12 meses, baseado no calendário egípcio (Cleópatra deve ter sido determinante para indicar astrônomos egípcios ao Júlio), o que permitiu resolver o problema durante um longo tempo. As seis horas que sobravam de cada ano seriam compensadas a cada quatro anos com a inclusão de mais um dia em fevereiro – nasciam os anos bissextos. Assim, a partir de 1º de janeiro de 45 a.C. o calendário foi fixado em 12 meses de 30 ou 31 dias, exceto fevereiro com 28, que ganhava um dia a cada quatro anos.
Resolvido o problema do descompasso entre o tempo real, cósmico e o tempo medido pelos homens? Claro que não. Mais uma vez a mecânica celeste esnoba das tentativas humanas em medi-la. O ano não tem exatamente 365 dias e 6 horas. Na verdade são 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, o que fazia a duração do ano no Calendário Juliano 11 minutos e 14 segundos maior que o ano real, celeste. Essa diferença acumulada ao longo dos séculos fez com que o Calendário Juliano chegasse ao ano de 1582 com um erro de mais de 10 dias. Aqui começa a ficar clara a necessidade da supressão dos dias.
Muitos feriados religiosos não têm datas fixas. São definidos em função dos ciclos solares e lunares. A Páscoa, por exemplo, é celebrada no primeiro domingo após a primeira Lua cheia ocorrida depois do equinócio de primavera no hemisfério norte. E como os equinócios e solstícios estavam ocorrendo 10 dias antes, esses feriados religiosos estavam caindo em épocas completamente diferentes do ano. Alguma coisa precisava ser feita, e foi aí que entrou em cena a principal autoridade do mundo ocidental da época: o Papa Gregório XIII.
Desde o século VIII a igreja constatou que as datas da Páscoa estavam se deslocando cada vez mais da primavera para o verão. Em 1563, no Concílio de Trento, os estudiosos católicos propuseram ao papa um estudo rigoroso sobre a reforma do Calendário Juliano. Por fim, em 1572 Gregório XIII reuniu um grupo de especialistas para solucionar o problema da falta de sincronia entre as festas e as estações. O papa foi assessorado por uma comissão liderada pelo astrônomo jesuíta Christopher Clavius e pelo médico e astrônomo Aloyisius Lilius. O objetivo da mudança era fazer regressar o equinócio da primavera para o dia 21 de março e desfazer o erro de 10 dias.
Depois dos cinco anos de estudos foi promulgada a bula papal Inter Gravissimas em 1582, instituindo o Calendário Gregoriano, que utilizamos até hoje. Por esse documento papal, datado de fevereiro de 1582, seriam omitidos dez dias do Calendário Juliano, deixando de existir os dias entre 5 a 14 de outubro daquele ano. A bula ditava que o dia imediato à quinta-feira, 4 de outubro daquele ano, fosse sexta-feira, 15 de outubro do mesmo ano. Os dias entre 5 e 14 de outubro de 1582 simplesmente não existiriam. As pessoas foram dormir na quinta, 4 de outubro e acordaram na sexta, dia 15. Imaginem a confusão.
Assim, o Calendário Gregoriano conseguiu encaixar, com relativa precisão, a medição de anos, dias e meses ao ciclo solar e provavelmente vai permanecer assim por alguns milênios.
Deixe-se claro, contudo, que, por ter sido uma determinação da Igreja Católica, a alteração não foi adotada de imediato por todo mundo. Nem mesmo entre os países oficialmente católicos a adoção foi imediata e concomitante. O Calendário de Gregório foi adotado imediatamente nos principais países católicos da época: os reinos de Portugal, Brasil e Algarves e o da Espanha (nessa época o Rei Felipe II comandava os dois reinos). Logo em seguida, Itália e Polônia. França, Inglaterra e parte da Alemanha a priori não queriam aceitar “tal balbúrdia sem motivo”. A Inglaterra, que havia se rebelado contra a autoridade do papa e professava a religião anglicana, continuou a celebrar a passagem do ano no dia 25 de março até 1752. Ao longo de 3 séculos o novo calendário foi adotado em todo o mundo, inclusive em países cristãos ortodoxos e protestantes, além dos islâmicos. Os intercâmbios comerciais, políticos e mesmo as relações sociais falaram mais alto que as birras religiosas. Observou-se muita discordância em cartas e documentos datados, em uma país era uma data no outro era outra data. Passagens e vistos pelas alfândegas eram demorados, e muitos documento ficavam parados até provar que a data era diferente. Pessoas que perdiam seus navios. Os últimos países a adotarem o Calendário Gregoriano na Europa foram a Rússia e Estônia em 1918, Grécia, em 1923, e a Turquia, em 1926.
É interessante destacar que até mesmo os dias excluídos variaram de país para país. Enquanto Espanha, o Reino de Portugal, Brasil e Algarves e a América Latina extirparam de 05/10/1582 a 14/10/1582, na França sumiram de 10 a 19 de dezembro de 1582. Na Inglaterra, Estados Unidos e em todas as colônias inglesas, as datas excluídas foram de 03 a 13 de setembro de 1752, o que dá 11 dias, pois foi estipulado que, nos países que adotassem a mudança entre março de 1700 e fevereiro de 1800, 11 dias seriam omitidos, pois não existiu o dia 29 de fevereiro de 1700.
O calendário norte-coreano é exemplo interessante dos que mesclam tradições locais com o Calendário Gregoriano. Por lá, a partir de 1912, os meses e dias são gregorianos, mas com o ano de nascimento de Kim Il-Sung (1912) usado como ano 1º. Então 2023 para eles é o ano 112.
De toda sorte, o Calendário Gregoriano é o mais difundido no mundo, apesar de coexistir com outros calendários utilizados por diferentes sociedades e culturas que organizam de forma diferente seu ciclo anual. É o calendário mundial civil, diplomático, comercial, por assim dizer.
Entendeu agora porque falamos no início que, se Marty Mcfly digitasse em seu DeLorean a data de 12 de outubro de 1582, ele poderia ou não cair num limbo, num nada? A sorte dele dependeria de qual pais ele partisse. Como cada país excluiu dias diferentes, ele iria parar ou não no vazio. Se ele fixasse a data na Espanha, iria para o limbo, pois na Espanha tal dia nunca existiu. Contudo, se ele resolvesse partir da França, reapareceria uma linda paragem de outono francesa, pois naquele país 12 de outubro continuou existindo e os dias extirpados foram de dezembro.
Vê-se, então, que a fluência ininterrupta do tempo ou, mais precisamente, a contagem ininterrupta do tempo – independente do calendário utilizado – é um belo dragão em garagem. E é um dragão que tem filhotes. Nem os dias excluídos são os mesmos. Os dias 5 a 14 de outubro de 1582 são somente os dias excluídos mais famosos, por serem os primeiros, os determinados pela bula papal. Houve outros dias excluídos, a depender do país.
Tudo é uma convenção. A passagem do tempo é real, mas sua medição é uma convenção humana, aliás como qualquer medição, de qualquer coisa. O homem usa sua percepção, suas limitações e suas réguas imprecisas para medir a natureza e, com isso, criam-se, inevitavelmente, alguns dragões na garagem.
Indicações para aprofundamento
O Livro de Ouro do Universo. Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2010.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Calendário_gregoriano
https://www.ricardoorlandini.net/hoje_historia/ver/4279/a-inglaterra-e-suas-colonias-adotam-o-calendario-gregoriano