9 de fevereiro de 2023
Marconi Gadêlha
Olhe à sua volta. O que você vê e sente? Primeiro, por óbvio, você vê estas palavras; depois, mudando o foco, você vê os objetos ao seu redor, como uma mesa, um sofá, uma TV ligada, seu gato roçando em sua perna; ouve seu filho brincando no quarto e seu cônjuge fazendo alguma tarefa no cômodo ao lado; você segura a xícara e engole um pouco de café. Quando tudo isso está acontecendo? Que pergunta idiota! – você diria – Claro que essas coisas estão acontecendo agora, no presente.
Calma. Não é bem assim. É justamente nessa certeza que mora um dos dragões em garagem mais robustos e poderosos que existem: o “agora”, a noção de “presente”.
Todo mundo já se deparou com preceitos religiosos, psicológicos ou de autoajuda que dizem que se deve focar no presente, no agora, pois o passado já era e o futuro não existe. Nas gramáticas aprendemos sobre o tempo verbal “presente”, um contraste com seus irmãos “passado” e “futuro”. Nossos sentidos nos mostram que seguimos vivendo (podemos sentir nosso coração bater e podemos acompanhar nossa respiração, por exemplo), mesmo que também nos mostre que já vivenciamos o passado (nossas rugas e cabelos mais brancos a cada ano são testemunhas da nossa passagem pelo tempo); por outro lado não “sentimos” o futuro, só o esperamos. Por vezes com ansiedade desmedida. Portanto o senso comum, a lógica, tudo nos diz que o presente existe; não teria como ele não existir. Mas ele não existe.
E desde muito tempo houve quem tentasse trazer o dragão à luz. Aristóteles apregoava que o “agora” é o presente instantâneo, sem duração, que serve de limite móvel entre o passado e o futuro. No ritmo incessante do tempo o momento atual, aquilo que se chama de “agora”, sempre se empurra pra frente. O presente é somente um instante infinitamente curto – na verdade inexistente. Ele é a fronteira entre o passado e futuro e é uma fronteira móvel. O tempo é uma linha dividida entre passado e futuro. A fronteira desses dois pedaços da linha é o presente, sempre em movimento.
Agostinho de Hipona
Agostinho de Hipona (ou santo Agostinho, como queira) disse que ninguém nega que o presente careça de duração, porque ele logo se transforma em passado. Ora, aquilo que não tem duração temporal nenhuma, tem duração temporal zero, logo não existe.
As noções mais imediatas de tempo dizem respeito ao encadeamento dos acontecimentos que, obviamente, segue uma trajetória “para a frente”, como uma flecha atirada. Os acontecimentos vão se desenrolando na linha do tempo do passado para o futuro, nunca o contrário (até onde se pôde demonstrar) e a sociedade e a percepção humanas decidiram rotular as ocorrências para controle, como se numeram as páginas de um livro. O grande livro da existência e da História teve suas páginas numeradas com as marcações humanas sobre o tempo. Esses marcadores são os dias, os séculos, os meses, os segundos, os milênios. Isto cria uma lógica e uma paz psicológica muito úteis para nós, escravos de calendários, relógios, ritmos e ciclos.
Uma característica interessante do que chamados de “presente” é a elasticidade. Ora, mas não dissemos que ele é uma fronteira inexistente entre o passado e o futuro? Como algo inexistente pode ser “elástico”? Pois é. Paradoxos temporais não existem só nos filmes. O presente pode, afinal, se comportar como um fole de sanfona, que aumenta e diminui de tamanho conforme a conveniência. As ideias de “hoje em dia”, ou “atualmente”, usualmente ligadas à noção de presente, podem conter concepções amplas ou curtas de tempo. Podem significar uma década, um semestre, um quinquênio. Podemos dizer, por exemplo, que, atualmente, no presente, no agora, não existe mais escravidão no país, ficou no passado. Temos aqui um caso de um “presente” que dura desde 1888. Para este fato (a formal inexistência da escravidão) o presente engloba uma grande parte do passado. Também se pode dizer: “Antes, no passado, eu pensava de tal forma sobre certo assunto. Mas, hoje em dia, no presente, eu já não penso assim”. Neste caso nos deparamos com um presente menor, limitado a um mês ou um ano. Ou seja, o conceito de presente que se depreende dos dois exemplos é, de fato, só uma conveniência, uma arbitrariedade adaptável às necessidades humanas, muito útil para que possamos entender o mundo.
Outra concepção de presente é a que remete ao momento imediato vivenciado, no qual se percebem acontecimentos simultâneos cuja soma gera a impressão de agora. Por exemplo, imagine uma mãe que estica a cabeça para fora da janela de casa e grita: “Menino, entre agora. Já está tarde”. O “agora” da mãe é aquele momento que ela percebe como tudo ao seu redor ocorrendo ao mesmo tempo; isto, para o cérebro dela, é o “presente”, o “agora”. Mas, a rigor, considerando o fluxo inexorável do tempo, não tem como o filho obedecer à ordem. Ele nunca vai entrar em casa no “agora” da mãe porque esse “agora” deixou de existir quando ela acabou de emitir a ordem; ficou no passado. O conjunto de acontecimentos simultâneos percebidos pela criança é diferente do conjunto percebido pela mãe segundos antes. O “agora” do menino é diferente do “agora” da mãe, apesar de nenhum dos dois se dar conta disso. A criança só poderá voltar para casa no futuro, mesmo que o medo de uma chinelada a faça correr numa fração de segundo. Outro exemplo no mesmo sentido: quando alguém recebe um convite para ir a algum lugar e responde com um “tudo bem, estou saindo agora.” está – friamente falando – mentindo. Mentindo involuntariamente porque não tem como ele estar indo “agora” pois, assim que ele termina de dizer a palavra, já é passado. Ele vai atender ao convite no futuro, não “agora”. Pode ser um futuro de segundos, de minutos, mas será sempre futuro.
Fica claro que o modo como percebemos o tempo depende do que se passa em nossa cabeça a cada momento, depende das conveniências e da percepção de nosso cérebro. O presente é elástico e individual para cada um e para cada situação, além de ser uma definição social que serve para o homem organizar seu trajeto pelo mundo sem precisar enlouquecer com o rigor e a precisão de diferenças infinitesimais de tempo.
Dada a força do senso comum, ainda pode haver resistência às ideias delineadas até aqui. Alguns podem insistir que o presente existe, apesar das elucubrações filosóficas. Mas, como quase sempre ocorre, é a Física quem vem decretar a morte do dragão. A luz e a sua velocidade, combinadas com a capacidade limitada de percepção de nosso cérebro, demonstram a inexistência do “presente”. A noção de tempo que me parece mais adequada a demonstrar de forma cabal a inexistência do dragão em garagem chamado “presente” seja a que o trata como um conjunto de “possibilidades”. Essa noção flerta com a Teoria da Relatividade de Einstein, segundo a qual dois eventos podem ou não ser considerados simultâneos, só dependendo do referencial adotado. Ou seja, o tempo não seria absoluto em todo o Universo. Não haveria um “agora” universal. A chave para entender este fato está na velocidade da luz.
Dividir o tempo entre passado, presente e futuro não é fácil do ponto de vista da Física, em que nada se parece com o conceito comum de “agora”. Einstein relacionou o tempo com o espaço. Antes de Einstein havia a noção de um presente universal, podendo ser dito que dois acontecimentos distantes teriam acontecido ao mesmo tempo, deduzindo, assim, o conceito de presente. Mas a Teoria da Relatividade demonstrou que dois acontecimentos podem se dar simultaneamente para um observador enquanto outro observador que se mova em direção a um dos acontecimentos perceberá ele ocorrendo antes do outro. Um terceiro observador pode perceber os dois acontecimentos numa ordem inversa desse segundo, e por ai vai. Ou seja, o conceito de presente é, também sob o ponto de vista da Física, puramente pessoal. É uma “possibilidade” para mim, outra para você, outra para seu vizinho.
E por que é assim? O que ocorre quando se enxerga algo, como, por exemplo, estas palavras, não é algo trivial. A luz ambiente colide com a superfície onde está impressa (seja em papel, seja em algum tipo de tela eletrônica), ricocheteia e é captada pelos nossos olhos. Isso parece ocorrer instantaneamente. Só parece. O ricochete da luz entre a palavra escrita e os olhos demora um tempo. A rigor, não estamos lendo as palavras no “agora”, mas como elas estavam há alguns milionésimos de segundo no passado. Tudo o que se vê está no passado. A luz refletida em cada objeto ao nosso redor leva instantes diferentes para chegar até nós. Quanto mais distante o objeto, mais no passado o estamos vendo. Poderíamos, quem sabe, dizer que estamos vendo nosso celular a 5 milionésimos de segundo de distância ou que estamos vendo o Sol a 8 minutos de distância (o tempo que a luz dele leva para chegar à Terra). O cérebro tem a capacidade de compilar todos esses diferentes instantes do passado e nos dar a sensação de “presente”. Na verdade as diferenças de tempos de chegadas da luz dos diferentes objetos é infinitamente pequena para que o cérebro perceba. Assim, o “presente” não passa de uma ilusão, sendo a soma de todos os estímulos sensoriais que dizemos estarem ocorrendo “agora”.
Num passeio no parque observo as folhas das árvores balançando, uma coruja num voo rasante, um casal de namorados trocando carícias, uma estrela no céu. Em tudo isso eu não estou observando o presente; observo o passado relativo à demora com que a luz que carrega essas imagens chega a meus olhos. Observo vários passados: o passado de milionésimos de segundos, o passado de um segundo atrás, o passado de alguns anos.
Outra consequência da força da velocidade da luz na concepção de tempo reside no caso de eventos em que nos parecem simultâneos podem estar separados por enormes distâncias e terem ocorrido em momentos diferentes. Para entender vamos fazer outro exercício de imaginação. Pense estar observando o céu numa noite escura e percebe dois flashes simultâneos de duas estrelas visualmente próximas uma da outra. Por uma sorte impressionante você acabou de testemunhar as explosões de duas supernovas. Ocorre que proximidade entre as duas estrelas é somente ilusória. Uma está “na frente” da outra, do mesmo jeito que você enxerga, de frente, dois carros numa estrada em faixas diferentes e distâncias também diferentes. Uma estrela explodiu a 3 anos-luz de distância da Terra e a outra explodiu a 4 anos-luz (valores fictícios, pois a estrela mais próxima de nós – além do Sol – fica a pouco mais de 4 anos-luz de distância). Pois bem, para que você tenha podido ver as duas explosões ao mesmo tempo, a estrela mais afastada teria explodido um ano antes da estrela mais próxima, tempo necessário para que a luz da explosão da primeira alcançasse a segunda. Por coincidência, no instante em que a luz da explosão da primeira estrela passa pela segunda, esta também explode. As luzes das duas explosões passam, então, a viajarem juntas, lado a lado, por três anos, até que chegam, ao mesmo tempo, a seus espantados olhos. Você diz “vi duas estrelas que explodiram agora”. Ledo engano. O que você viu foram dois momentos distintos do passado, um ocorrido há 4 anos e outro ocorrido há 3 anos. Ou seja, a sensação de presente existe porque nosso cérebro e nossos sentidos possuem uma percepção limitada da realidade. Nosso horizonte de realidade consiste em todos os fenômenos que nosso cérebro percebe como simultâneos, mesmo que não o sejam. Nunca vemos algo como ele é “agora”.
O “presente” – considerado como o momento sem duração comprimido entre o passado e o futuro – não existe. Ele é uma bolha fluida, variável, diferente para cada um ou diferente de acordo com cada contexto. O que existe é a memória do passado recente e a expectativa do futuro próximo. O agora é uma ideia, o tempo é uma construção, o presente é uma conveniência matemática, filosófica ou cognitiva. Ou seja, um belo de um dragão na garagem. Mas um dragão que nos é útil, nos é necessário. Um bichinho que gostamos de manter e tratar. Um pet muito querido.
Indicações para aprofundamento
Revista Superinteressante, ano 2, número 5. “Questão de tempo”, artigo do físico Paul Davis
“Agora” e “Tempo”. In Dicionário de Filosofia. Nicola Abbagnano.São Paulo: Martins Fontes, 2003.
A ilha do conhecimento – os limites da ciência e a busca por sentido. Marcelo Gleiser. Rio de Janeiro: Record, 2014.