O Advento das Locomotivas Como um Exemplo Relevante do Desenvolvimento do Design Diante das Novas Tecnologias do Século XIX

A criação das ferrovias no século XIX foi um dos principais exemplos do avanço tecnológico que, mais tarde, proporcionou grande progresso ao design, sendo responsável por grande parte das transformações sociais desse período. Tal contexto fez com que grandes empresas fossem criadas com o objetivo de desenvolver os aparatos necessários para o funcionamento deste meio de transporte que até então, era em muitos aspectos inovador, dado que não haviam precedentes de tamanha magnitude na história.

Na verdade, já existiam estradas com mecanismos semelhantes a trilhos a muitos séculos atrás; como é o caso do Caminho de Diolkos, na Grécia Antiga, perto de Corinto, criado de modo a facilitar as relações comerciais entre as grandes potências econômicas do período em questão, por volta de 600 a. C. Já os sistemas de transporte a partir de trilhos de madeira movidos à tração animal, eram populares na Europa até meados dos séculos XVI e XVII, quando a Inglaterra se mostrou pioneira nas tentativas científicas em descobrir uma forma de se aplicar a tecnologia da máquina a vapor aos meios de transporte. Assim, surge a invenção do engenheiro galês Richard Trevithickdo de 1804, do que seria a primeira locomotiva, conhecida como “cavalo mecânico”. A partir desse ponto, sob a influência da criação do motor a vapor de James Watt, força motriz da Revolução Industrial, as inovações em resistência e velocidade forneceram espaço para o aumento da quantidade de vagões e do volume de carga carregada por estes, bem como para o surgimento do transporte ferroviário de passageiros, e não apenas de matéria-prima, como o carvão ou a lenha.

Nas primeiras décadas do século XIX, a mineração era um grande expoente da economia europeia, visto que se tinha o carvão como a matéria-prima principal desde período. Têm-se então a fala de Gortfried Semper, importante designer alemão, que acreditava que “os designs são a reação às necessidades específicas que lhe dão origem e particularmente ao tempo, local e condições sociais em que são produzidos.” (HESKETT, John. 1998, pg. 29). Por ocasião dos Testes Rainhill, a locomotiva Rocket de George Stephenson, de 1829, incorporou diversas características técnicas que serviram de base para o design de outras locomotivas no futuro, porém ainda sem um refinado tratamento estético, que aparentaria inadequado para a época. É importante salientar que “as primeiras locomotivas eram experiências um tanto primitivas; seu propósito principal era criar um mecanismo, um instrumento que funcionasse.” (HESKETT, John. 1998, pg. 30). Mesmo assim, a Rocket inaugurou a chamada Era das Ferrovias, iniciada a partir da década de 1830.

Figura 1 – Locomotiva Rocket, de George Stephenson

Fonte: Wikipédia, 2005

Figura 2 – Locomotiva Jenny Lind, de David Joy

Fonte: Wikipédia, 2010

Uma grande inovação tecnológica caracterizada pela atenção que se dava a aparência veio somente com a Jenny Lind, projetada em 1847 por David Joy. Possuía detalhes cuidadosamente construídos e diversas escolhas estritamente estéticas, que se mesclavam com seus princípios lógicos de caráter técnico, o que fez desta locomotiva um grande sucesso na Inglaterra. Posteriormente a acirrada competição entre as companhias ferroviárias inglesas acabou por intensificar a busca pela perfeição estética das locomotivas, que funcionavam como um anúncio ambulante para suas montadoras. Cada uma delas, com seu estilo particular, buscava desenvolver características completamente diferentes entre si, que compreendiam questões que iam desde o formato dos vagões até a decoração interna e os uniformes para os trabalhadores da tripulação.

O design de locomotivas era um trabalho corporativo. Diversos profissionais atuavam na produção e a equipe continha especialistas técnicos, artesãos e trabalhadores de escritório. Essa estrutura organizacional desenvolveu-se largamente por conta de dois importantes fatores: “Primeiro, engenheiros e designers geralmente passavam por um processo de aprendizagem na oficina [...] Segundo, as companhias eram estruturadas no padrão que derivava de formas militares de organização.” (HESKETT, John. 1998, pg. 33 e 34). Sobre o modelo de trabalho dos construtores e engenheiros de locomotivas, Heskett destaca ainda em seu livro, Desenho Industrial, de 1998, que “o processo do design era separado não apenas fisicamente da produção, como também socialmente: os trabalhadores do escritório de projetos eram considerados detentores de status profissional, ao passo que os das fundições e oficinas de montagem eram artesãos.” (HESKETT, John. 1998, pg. 33). Ou seja, embora existissem muitas pessoas envolvidas no processo de design, havia uma clara hierarquia entre estas.

No que se refere ao design dos vagões, seu início em função e estética era bastante antiga e bem rudimentar, constituído simplesmente por suportes colocados sobre um vagão-plataforma. Nesse contexto, os construtores de coches, antigas carruagens usadas em certas solenidades na Europa, se viram ameaçados e migraram para o setor de locomotivas. Só então os vagões ingleses passaram a ser idealizados tendo em vista maior segurança, conforto, familiaridade e estrutura. “Os vagões de passageiros de primeira classe eram bem estofados, as formas e acessórios refletindo os gostos domésticos da época, e eram razoavelmente confortáveis, apesar da falta de iluminação, aquecimento e toaletes. Nos vagões de segunda classe, estas deficiências eram acentuadas por duros bancos de madeira. No entanto, até mesmo estes eram luxuosos se comparados aos vagões de paredes baixas, abertos aos elementos, que eram a cruz dos passageiros da terceira classe.” (HESKETT, John. 1998, pg. 35).

Já nos Estados Unidos, as inovações de forma e função foram bem mais acentuadas, influenciadas principalmente pela estética renascentista e neogótica, bem como pelas condições climáticas e geográficas da América. “Os fatores que contribuíram para o plano mais aberto dos vagões americanos e o fornecimento de serviços básicos foram a duração mais longa das viagens nos Estados Unidos e os extremos climáticos entre regiões e estações, o que exigia mais conforto para os passageiros.” (HESKETT, John. 1998, pg. 37).

Figura 3 – Locomotiva 4-4-0, da companhia Baldwin

Fonte: Wikipédia, 2006

A década de 1860 trouxe uma série de transformações industriais e, consequentemente, sociais e econômicas, que se estenderam pelo restante da segunda metade do século XIX. Nesse período, conhecido como a Segunda Revolução Industrial, a substituição do ferro pelo aço e outras ligas metálicas e a mudança de matéria-prima de produção industrial, que evoluiu do carvão para o petróleo, bem como o advento da eletricidade por Thomas Edison em 1879; colaboraram para a adoção de novos métodos de produção que se caracterizavam pela especialização do trabalho e automatização dos maquinários.

Logicamente, as inovações que se seguiram alcançaram também outros meios de transporte, como é o caso da exorbitante expansão que ocorreu no âmbito das navegações a vapor. De maneira geral, conclui-se então que tais influências na economia e geografia de diversos países possibilitaram a ampliação dos mercados, estímulo a concorrência, valorização estética e o aumento das atividades comerciais em regiões que antes eram consideradas desérticas por muitos, como é o caso do Oeste Norte-americano, Argentina, Austrália ou até mesmo o nosso Brasil.

Referências:

HESKETT, John. Desenho Industrial. Brasília: José Olympio, 1998

SILVA, Júlio César Lázaro da. "Breve História das Ferrovias"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/ferrovias.htm Acesso em 27 de abril de 2021.

“O Vapor e o Caminho de Ferro (Século XIX)”; Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2021. Disponível em: https://www.infopedia.pt/$o-vapor-e-o-caminho-de-ferro-(seculo-xix). Acesso em 27 de abril de 2021.

“Diolkos: um antigo caminho por onde transitavam os navios por terra”; MDig. Redação do blog MDig, 2018. Disponível em: https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=45269. Acesso em 27 de abril de 2021.

MÖDERLER, Catrin. “1804: Viagem inaugural da primeira locomotiva do mundo”; DW. Alemanha: Deutsche Welle (DW). Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/1804-viagem-inaugural-da-primeira-locomotiva-do-mundo/a-302636. Acesso em 27 de abril de 2021.

Ficha Técnica:

Texto desenvolvido por Murilo Chagas Rodrigues para a disciplina Introdução ao Estudo do Design - Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Departamento de Design - Abril de 2021. O texto colabora com o projeto de extensão “Blog Estudos sobre Design”, coordenado pelo Prof. Rodrigo Boufleur (http://estudossobredesign.blogspot.com).