nas minhas linhas te confesso...
CRÓNICAS
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CRÓNICAS
Memórias... e outras coisas...
O meu pequeno refúgio de uma escrita simples.
Nele, cada texto e cada crónica nascem
do desejo de partilhar visões do mundo,
fragmentos de emoções e histórias
que, talvez, se assemelhem às tuas.
Sem pretensões de grandeza, mas com uma sincera vontade de tocar quem passa, fica o convite
para quem procura uma pausa,
um sorriso ou apenas um momento de reflexão.
Sente-te à vontade para explorar.
Quem sabe encontres alguma palavra que ecoe em ti.
Paula Freire
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Celestino Calado, muito prazer. Fantasma urbano, de profissão, ao vosso dispor. Como uma figura anónima igual a tantas outras da nossa curiosa sociedade, vivo rodeado de pilhas de papéis, tarefas inúteis e justificações, numa tentativa de provar ao mundo que não passo nenhum minuto da minha vida de braços cruzados.
Levanto-me cedo da cama, antes mesmo do sol, a sentir-me como um náufrago de um navio à deriva. O primeiro café do dia é sempre um luxo do qual evito não prescindir. Depois, avanço desarmado, pelo meio do caos e do betão a sufocarem-me o ar fresco da manhã. Inspirá-lo é uma das poucas alegrias que me faz acreditar que ainda estou vivo.
Hoje tive sorte, só demorei uma hora na viagem para o trabalho. Não fiquei preso entre dois condutores desconcertados que chocaram entre si ou, se calhar, e o mais provável, apenas me antecipei cinco minutos em relação ao habitual, antes do trânsito tomar proporções de gigante.
E eis-me chegado a outra viagem. Esta, de muitas e longas horas, certamente preenchidas com surpresas várias e dramas tão complexos como absurdos.
À porta da escola, encontro inevitável com a D. Checklist, alinhada no seu vestido e sapatos sempre a cintilarem. Batom vermelho metálico colado aos lábios, estilo semáforo em ponto STOP.
Daquelas mães que entregam a sua prole como quem enfia os pertences num cofre, e que reúne aos sábados com as amigas no salão de cabeleireiro para falar bem das viagens de estudo fotogénicas dos seus rebentos, e mal dos professores dos filhos. Esses, que nunca têm a hombridade de tratar as suas crias como espécime único. Por isso, são verdadeiras investigadoras criminais, prontas a inspecionar cada plano, cada teste, cada palavra do dito cujo. Nem a cor do marcador de quadro escapa.
De manhã, as despedidas vestem-se de um abraço exagerado a mostrar afeto, porque beijos danificam maquilhagens irretocáveis. E o olhar certeiro delas sobre o arguido: “Vá, aqui tem. Tome conta até à noite, melhore o conteúdo, e quando entregar sorria porque, não se esqueça… está a ser filmado!”.
Entro no edifício agarrado aos dois minutos implacáveis de reflexão, sobre as razões que levaram a ignorância a tornar-se numa conquista social.
Passo pelo corredor. Alunos a chegar. Encolho-me, reduzido à insignificância que me é votada. Miúdos a correr, outros a dormitar, de pés estendidos e cabeças em cima dos dispositivos. Uns gritam sem saber porquê, outros discutem sobre quem tem direito a quê. Cada um com as suas especificidades… ou fragilidades?
Abro a porta da sala de aula. Entram aos empurrões, mas sentam-se já cansados de um dia que ainda nem começou. Talvez me veja ao espelho.
Atento nos que são tranquilos e falam pouco. Mas observam muito. Adivinham futuros. Vivem um ano inteiro num mês de aulas. Estudam com a disciplina e responsabilidade dos que acreditam que, efetivamente, o esforço é recompensador. De fora, já há quem os entenda como socialmente desadaptados.
Afinal, não são iguais aos outros. A maioria. Os convencidos de serem verdadeiros líderes. Porque desafiam constantemente, porque contestam veementemente. Porque manipulam a oscilar entre a debilidade do vidro, quando lhes convém, e a dureza do ferro quando lhes apetece agredir.
De fora, há muitos que os percebem como jovens determinados e livres. Imberbes que, do nada, transformam qualquer espaço numa arena. Mandriões, sem respeito por ninguém, sequer o próprio nome que carregam no corpo, mas cheios de certezas de que podem tudo. E a verdade é que vão podendo.
Hoje, foi mais um dia de birras personalizadas. A aula a começar com a Diamantina Purpurina, religiosamente maquilhada como se fosse apresentadora de um reality show e grossas pulseiras a tilintar a cada movimento dos braços, a querer impor o seu indiscutível direito à selfie diária de Miss Fama, enquanto reivindicava uma cadeira, para se sentar, a condizer com a mochila rosa-choque, pousada sobre a mesa, de que se dizia proprietária.
Por sua vez, Maximino Likes, influencer da preguiça e ator renomado nas visualizações do TikTok, boné enterrado na cabeça com recusa a ser retirado, alegou expressão artística inspirada em Picasso, quando espalhou tinta pelo quadro. Chamado à atenção, interrompeu teatralmente indignado, afirmando sentir ferida a sua liberdade de expressão e não gostar do tom de voz com que foi, por mim, abordado. Telemóvel em riste, pronto a filmar-me para eventual gozo das redes sociais.
A plateia quase inteira a rir-se da audácia. E é sempre tudo tão injusto na vida destes fedelhos que acreditam que o mundo existe somente para os aplaudir. Porque para eles, dentro da escola, ser produtor de qualquer tipo de espetáculo, e receber desmerecida ovação, vale muito mais do que aprender.
As advertências geraram contestações e sarcasmos exigindo a subida ao púlpito da Diretora Anacleta Magna, que ousou um bravo discurso escutado por ninguém, ao mesmo tempo que os principais visados se entretinham a rabiscar caricaturas da direção nas capas dos cadernos. Num laivo de iluminação pedagógica, a sugestão oferecida foi que todos se dedicassem à organização de um “jogo de cooperação emocional” com cartas de sentimentos ilustradas.
Cinquenta minutos a investir no vazio. A indisciplina a ser recompensada com a complacência. E eu, Celestino Calado, acusado de melindrar os jovens debutantes e obrigado a escrever um relatório interminável, com cada minuto do cenário criteriosamente documentado, para me salvaguardar no caso de ser chamado a tribunal interno da escola. Visível consequência da minha falta de sensibilidade com os discentes.
Por ora, ficou tudo controlado. Controlado, exatamente como os prognósticos meteorológicos.
E a manhã de trabalho prosseguiu com aulas. E relatórios. Tão detalhados como estéreis. Reclamações, exigências, projetos para formações. Atualizações, formulários e garantias de soluções. Atividades que ocuparam sem que se aprendesse nada de substancial. Invenções. E mais relatórios para explicar o inexplicável e justificar o que não tem justificações.
E sigo como um pássaro em pleno voo: professor, pai, psicólogo, bombeiro, escrivão, mediador de conflitos, gestor de crises, especialista em relações públicas, animador sociocultural, voluntário de logística no transporte e arrumação de mesas, vigilante de recreio. Desconfio, mas isto fica apenas entre nós, que muito em breve, à falta de recursos disponíveis, esteja também a limpar sanitários nos momentos de intervalo, rigorosamente contabilizados para não serem incluídos no salário.
Ah, os intervalos… palavra tão mentirosa! Os buracos negros de cada dia que me consomem os curtos minutos de tentativa de um outro fôlego.
A maquiavélica impressora na sala dos professores que decidiu, mais uma vez, engolir duas folhas por cada três que devia cuspir. A reunião urgente junto à porta do bar, para decidir a cor dos balões na decoração da “Semana da Escola Viva”. O e-mail de 1500 palavras, repetitivas e inúteis, do professor doutor Augusto Nobre, a justificar que o seu rapaz bota de ouro não fez os trabalhos de casa devido ao trauma causado pela humilhante derrota da sua equipa, no jogo do fim de semana. O telefonema histérico da mãe da Sãozinha a queixar-se do bullying cometido contra a filha que, inadvertidamente, eliminei do grupo da disciplina, no WhatsApp. A conversa com a mãe do Adormindo Manhoso para confirmar se o filho faltou ao teste por estar doente ou simplesmente porque decidiu enveredar por uma greve estudantil.
A vida a girar nos meus intervalos sem intervalo, a cogitar como também pode ser reparador simular que se descansa. Mais um café frio entre as mãos e eu, calado. Porque só com asas poderia voar para longe de tantos disparates…
Sigo pela tarde fora que, hoje, até poderia ser livre mas, por essa mesma razão, permitiu encaixar nela mais uma reunião de professores, convocada em cima da hora, para tratar de assuntos proeminentes.
E cá estou, sentado numa cadeira desconfortável, dentro de uma sala envergonhada, junto a uma descomunal coluna de papéis a crescer até ao teto, de cara praticamente encostada ao Narciso Pardal. Herói de todas as histórias, homem digno de dar nome a ilustre monumento e que não consegue respirar se o mundo não estiver a olhar para ele. Salvador de planos pedagógicos obsoletos, convencido de futura candidatura a funções de coordenador, sem que lhe pedisse o favor, foi-me colocando a par da substancial consideração que a direção tem pela sua pessoa, fruto da sua excelsa visão inovadora.
Abençoado o instante em que fui salvo pela campainha da voz do Dr. Tibério Pavão, que deu entrada superior, para anunciar pela milésima vez a grande novidade. A importância e necessidade de fazermos a diferença com a promoção da liberdade individual do aluno e a urgência prioritária de continuarmos a insistir no foco “Aprender a Brincar”. Porque temos que nos adaptar à inovação.
O meu quadro de avisos mental deu, automaticamente, início à avalanche de propostas a colocar em cima da mesa. Consideráveis e prometedoras atividades letivas: feiras de ciências, encenações de peças de teatro, treino de coreografias contemporâneas, concursos de talentos, cursos de mindfulness para alunos…
Acho que sorri, sem querer, ao imaginar a criatividade do slogan: bem-vindos ao parque de diversões onde o saber é opção, o espetáculo obrigatório e a confusão garantida!
Apeteceu-me acionar o meu botão de pânico e propor que juntássemos ao menu um Workshop de Autocontrolo Emocional dirigido a professores com o cérebro à flor da pele. Mas não. Porque sou, simplesmente, o Prof. Calado.
Avante, que o tempo urge e é preciso dar seguimento ao arraial. Desta feita, as novas metas das novas didáticas. Programas digitais que mudam de cara como quem muda de camisa, projetos aliciantes com nomes em inglês de tradução inviável, objetivos de ensino com roupas renovadas, planificações inéditas que exigem habilidades de acrobatas. Facilidades, favorecimento de mediocridades, aprendizagens irreais, eventos anuais, prémios superficiais. O Dr. Tibério Pavão conclui: tudo por uma escola inclusiva, sem desrespeito pelas diferenças, em prol de resultados uniformes e no top dos rankings.
Mas que magnífica contradição! Sorrio novamente e desta vez dou-me conta. E eu, quem sou? Com toda a certeza, o malabarista com poderes mágicos, obrigado a desencantar milagres neste palco que gira sem rodas. Porque um bom governo nunca desilude os melhores professores. Principalmente em dias especiais do ano, nos discursos públicos, sobre louvores e méritos devidos a estes tantos doutos ignotos.
E calados, como eu, em desalento, ficam todos ali, absorvidos em papéis visíveis e ocultos pensamentos, a suportar as tradições e contradições como se rendidos a uma dor de dentes impossíveis de arrancar.
Só Apolónia Codorniz, como não podia deixar de ser, se manifestou contra. O que faz por norma, em relação a tudo e a nada que possa captar como um ataque nuclear contra o seu ego. Exaltada, pelos eriçados como penas de galinha ao vento, a arder na própria saliva, tão irreverente como o casaco Diesel comprado num qualquer shopping londrino, lenço de onça ao pescoço, feito com um nó a condizer com o da sua própria vida pessoal.
Que a escola é um incêndio permanente, que não se pode trabalhar assim, que isto é um atentado à dignidade docente, que o país está a promover uma geração de analfabetos com certificados brilhantes só porque é de bom tom mostrarem-se estatísticas bonitas.
E entre o desgoverno mental e o drama, Apolónia Codorniz lá vai declarando que é a única ali dentro que, de facto, trabalha. Como se o assumir-se comandante do que percebe como um exército de soldadinhos de chumbo, a ordenar tarefas inspiradoras e tomar decisões por todos, lhe valesse o galardão da dignidade profissional.
Quinze minutos de sirene ligada no volume máximo, agarrada a um cronómetro escondido que lhe media o restante tempo de vida, os argumentos não convenceram, como era hábito. Forçada a dobrar-se ao ataque de histerismo por quem não apreciou o arrojo, explodiu ainda mais, agora em lágrimas, e saiu contrafeita, já a redigir mentalmente uma acusação formal a enviar para a Administração, deixando na sala o rasto do seu perfume com aroma de prepotência.
Premi o botão e degustei o sabor da divagação. Uma galinha nervosa que se compara a uma águia soberana! Todo aquele autoritarismo tem ares de compensação. Quem sabe, lá atrás, quando era criança, nunca tenha conseguido mandar em ninguém. Nem no cão ou nas bonecas.
Após o interregno, nova volta pelo incentivo à evolução da autonomia e o sentido de descoberta dos nossos adolescentes. Mais uma vez à baila os projetos de cidadania. Instruir sobre a vontade de conhecer, os valores e os preceitos.
Para colmatar a primeira responsabilidade daqueles que não cumprem, mas exigem e se esforçam com a crítica? Questiono-me se começo a ficar néscio. Educação, independência, limites, bons hábitos, curiosidade saudável… não são princípios alicerces que é obrigatório uma família ensinar diariamente, como uma herança a que é proibido renunciar? Será que a moral deve ser atribuída como tarefa, sob a forma de entretenimento?
Já me via na eminência de ter que criar uma peça de teatro com fantoches, sobre ética. Ou, talvez, uma variedade de fichas lúdicas e PowerPoint com transições animadas e músicas de fundo para um campeonato de boas maneiras, entre turmas. No final, uma aplicação com download a ser feito pelos alunos, para obtenção da medalha de prémio para quem conseguisse dizer mais vezes “por favor”, “desculpe” e “obrigado”.
E estratégias para motivar os meninos “mais hiperativos”? Alguém se lembrou de perguntar, para terminar, como se estivesse de ouvidos atentos aos meus pensamentos. Os olhares cruzaram-se, silenciosos, ao ouvir o nome quase elegante inventado para definir gente malcriada (só que isto não se diz porque as paredes têm ouvidos e podemos ferir a suscetibilidade dos jovens senhores e respetivos progenitores).
A Gestora de Pedagogias Circulares atira, de imediato, a solução que lhe estava na ponta da língua: construir um projeto interdisciplinar de matemática, música e religião moral. A sagrada geometria do destino ao som de uma guitarra portuguesa! Não era interessante? Dr. Pavão aceita, sem contestação. E deixa o aviso, antes de bater com o malhete na mesa: “planificação a enviar nas próximas 24 horas e, já agora, este ano, em vez de pedirem dinheiro para a viagem de estudo a Ibiza, façam um peditório online para aquisição da guitarra”.
Finalmente, após horas infindáveis a regar areia, foi dada por terminada a audiência.
Respirei de alívio e saltei porta fora. Como costumo dizer, por hoje, mais um monstro vencido. Mas cantei o som do triunfo antes da hora. No corredor, tropeço de novo com os olhos cansados nos olhos ferinos de Apolónia Codorniz, que parecia aguardar a saída dos colegas, com o propósito de vingança macabra. Entrei em processo de indigestão. O café frio depois do almoço comido à pressa, azedou-se-me logo no estômago.
Que era impreterível sermos mais “assertivos”. Que, francamente, sofríamos todos de uma crónica falta de energia, que só ela tinha coragem de dizer o que pensava sem medo de ninguém.
Adiantei os passos, com o maço de testes equilibrado debaixo do braço, guiado por uma ideia traiçoeira: a gratificação de, só por um instante, lhe torcer o pescoço até ela se calar! Mas claro, nada de violência física punível por lei. Ficaria por essa fantasia doce em relação a quem vive próximo de gente assim, o que, só por si, já me permitia a salvação da sanidade.
Embora, desta vez, não me tenha apetecido ficar calado. Com ela dificilmente me apetece, porque sei que a minha réplica a atormenta mais. E respondi-lhe que a mulher não tem medo de ninguém, pois claro, porque nunca corre o risco de fazer uso dos neurónios! Despeja primeiro, pensa depois. E, ainda assim, só consegue pensar nela. E se continuar a viver em modo sprint, não vai chegar à reforma. Acontece algo que já deveria ter aprendido. Cai muito antes, esmagada pelo próprio nervosismo e excitação que tem vindo a cultivar como medalha de honra.
O mais curioso? Apesar da profecia e das constatações, Apolónia Codorniz continuará sempre a ser uma fervorosa crente na ilusão da sua vitória sobre os restantes.
18h00. Hora de regresso a casa? Sem dúvida. Lembro-me do meu vizinho, o Alexandre, com quem me cruzo, muito ocasionalmente, por esta hora. Que picou o cartão às 17h30 com direito, nesse dia, a uma invejável hora de almoço, inteirinha, só para ele e que, então, chega a casa para se juntar à família que o aguarda. Uma ida ao ginásio com o filho mais velho, depois ajudar a preparar o jantar e ainda umas quantas horas de convívio antes do sono dos justos.
Por vezes, encontro-o mais tarde. Cumprimenta-me e sorri quando lhe pergunto, “só agora?”. Pisca-me o olho enquanto responde, feliz, que um suplemento extra é sempre bem-vindo. Mas quem, como eu, precisa de suplementos quando tem o bónus de um cardápio completo de obrigações invisíveis, depois de viver um dia de aventuras constantes ao lado de direções com delírios imaginativos, alunos engenhosos ou em estado de colapso e pais em filas de urgências? Afinal, a vocação é a melhor recompensa.
Pois é. São 18h00. E por falar nessas filas cheias de urgências, chegou a hora, não de me ausentar, mas de estar mais presente e consciente do que nunca, na reunião de pais para a qual, por razões mais do que óbvias, não posso atrasar-me.
Ah, os pais! Acionistas maioritários das escolas, fiscais de disciplinas, métodos e ritmos de trabalho e de aprendizagens. O novo cliente caracterizado pela dinâmica da reclamação.
Contabilizo os que me chegam de forma honesta e preocupada.
Para lá disso, a exigência parental exacerbada pela sapiência de quem conhece na perfeição as diretivas educativas, embora a educação propriamente dita se veja alheada das suas responsabilidades primeiras. Por isso, não acompanham os filhos, mas supervisionam os professores. Ignoram a sua função como pais, mas têm um conhecimento absoluto sobre o melhor desempenho dos professores.
E exigem diagnósticos e relatórios individualizados, atividades à medida. Sobretudo, notas que confirmem a genialidade das suas peças únicas de altar. Quando não acontece, está identificado o culpado: o professor.
Aprender? Importa muito pouco o saber-saber, o esforço genuíno, a disciplina intelectual. Claramente vanidades quando comparadas com o saber-estar e ser num mercado de trabalho competitivo e hostil!
Aliás, acabo de receber mensagem da D. Efigénia Bravo, a alegar a costumeira impossibilidade de presença na reunião, e a tecer considerações sobre a falta de motivação da filha para a minha disciplina. Solicita, imperiosa, várias alternativas para a prática dos estudos da sua descendente.
Sim, pois, a Henriqueta Beatriz. Aquela que sabe decifrar o nome de todas as marcas de acessórios de moda existentes, incluindo as mais improváveis, mas “não consegue ler”, sequer, o enunciado das provas sem o auxílio de um professor! Poderia fazer e enviar-lhe um desenho da matéria, pintado com glitter e decorado com lantejoulas. Não duvido da facilidade com que seria compreendido. Mas limitei-me a suspirar profundamente. Recordo-me que sou apenas… Calado.
Seguem-se mais dois pais que confundem caprichos com necessidades e ausência com amor.
Filho com oitos e setes nos testes? Números que ferem a autoestima de um génio incompreendido!
De acordo com o Dr. Gilberto Fidalgo, por exemplo, eu deveria perceber com nitidez uma questão, não apenas importante como igualmente evidente. Se me paga o ordenado, exige serviço. E, portanto, a escola tem o dever de assegurar que o filho tenha bons resultados, independentemente do mesmo ter tempo para estudar ou não. Essa é a minha função e, para isso, não aceita desculpas.
Gostava de lhe desligar o ruído vocal. Mas segurei-me com as mãos dentro dos bolsos e ofereci-lhe o meu sorriso pedagógico. Ainda não é hoje que te espremo a gravata. Sabe, caro senhor, tem um filho com grande potencial, o que ele precisa é só de um pouquinho de esforço próprio.
Por seu lado, outra mãe, carrapito empoleirado, pestana postiça a tremer de antipatia e unhas afiadas capazes de se tornarem armas brancas, largou a bomba do dia. Estava horrorizada porque, em determinada aula, o professor teve que se ausentar da sala durante uns extensos dez minutos, para se deslocar com ligeireza ao wc, e deixou a turma ao desbarato. O querido filho, aquele que gosta de se filmar no telemóvel, em direto para o Instagram, a praticar desafios que não lembram ao diabo, decidiu atirar o compasso do colega pela janela. Só para ver qual a cabeça que apanhava desprevenida.
O drama da situação é que o menino foi suspenso durante um dia. E isso jamais aconteceria se não fosse dado espaço e tempo para o seu herdeiro ter tal acesso criativo. Valentim Lobo, marmanjão de 15 anos de idade, jamais seria merecedor de punição. A jaula é que não podia ter ficado sem guarda. Porque, enfim… as fronteiras entre o certo e o errado e entre o bem e o mal, não têm que ser explicadas em casa.
Ai, aquela antena que a senhora tinha em cima da cabeça estava mesmo a pedir por liberdade, com um bilhete só de ida para o jardim zoológico mais distante! Outro para mim, em direção ao paraíso.
Mas se o dia começa cedo e acaba tarde, às vezes, para concluir a rotina com o mínimo de dignidade, é melhor mesmo ficar quieto. E calado. E tentar um esforço último para acreditar em frases motivacionais como “nada é impossível!”.
Depois desta comédia em versão cinematográfica, dentro de um labirinto a necessitar de nova iluminação, regresso finalmente a casa, tarde e a más horas, como um pássaro que, depois de muito voar, é compelido a arrastar-se. Com um sentimento íntimo de insuficiência, desgastado e despojado de tanto mas, no fundo, com uma teimosia insana de que o que faço ainda pode ter valor. É com esse pequeno detalhe que disponho o espírito para o que ainda me espera.
Pelo menos até ir consolar o corpo no fundo dos lençóis, deito o olho ao correio eletrónico onde, do outro lado, uma alma vigilante e insone digita mensagens a lembrar prazos impossíveis, regras mutantes e as novas atividades da semana.
Entretanto, esta e outras noites adentro, construo dezenas de grelhas de avaliações, preparo centenas de aulas, corrijo milhares de testes e trabalhos. Invento soluções. Planeio intervenções. Em curtos espaços e breves tempos para ensinar, divido-me nestas múltiplas multiplicações. De caneta burocrática em punho, o esforço torna-se irrelevante mas eu, Celestino Calado, residente involuntário no interior desta encenação nacional fabricada pela cegueira coletiva que encobre tantas incompetências, estoicamente vou sobrevivendo.
Não fosse um Celestino Calado, e seria Alado. Qual fénix que, na abóbada celeste de cada madrugada, renasce das cinzas.
Previsão apocalítica: por agora vamos recordando o país de que o céu ainda existe mas quando eu, e todos os atormentados e abandonados como eu, já não conseguirmos voar, não pela falta de competência, mas pela privação de forças, deixaremos de ter futuro.
Fecho os olhos, exausto. Na outra realidade paralela do sonho, uma fronha feia com dentes amarelos, sorri surpreendida. Ouço-lhe a voz sombria: “com tantas férias que tens por ano, como ousas lamentar-te, assim? Quem não gostaria de uma vida igual à tua?”.
Como conclusão, professores pássaros… quem não quer ser um?
Tenho a impressão de continuar a escutar, distante, o som das mensagens no telemóvel. Ping… ping… ping…
REVISTA VICEJAR
Pequena e leve como o sopro das manhãs em dias de outono, avó Nacinda era maior do que a própria aldeia onde nascera e vivera. Com as mãos enrugadas pelos dedos da idade, os seus passos segredavam histórias que só ela compreendia. E nunca se conhecera alguém que lhe tivesse visitado as lágrimas sem sua permissão.
Habitavam nela a força e a sabedoria dos que alcançam o mundo inteiro como se este não fosse maior do que uma gota de pó. Os olhos cheios de uma luz muito antiga, lembravam os sorrisos das crianças nascidas em noites claras de lua grande. Brilhavam como dois astros prontos a iluminar trilhos que mais ninguém via.
Entretinha os dias a ensinar aos vivos os compassos da dança do tempo. Falava devagar, num riso quebrado pelos dentes dourados que ainda não tinham morrido na boca engelhada. Quem escutava, atento, avó Nacinda, sabia que o firmamento crescera dentro dela.
E quem mais ouvia era Eliseu, no seu corpo miúdo e curioso, braços finos e voz contida. Guloso de achados invisíveis, espiava histórias proibidas de contar em voz alta. Havia nele a paciência silenciosa do correr das águas, que encantava avó Nacinda.
Eliseu chegou nesse dia, gracioso e ousado, pés descalços sobre a terra seca e uma pergunta de pássaro alerta, quando procura decifrar o sítio certo das nuvens para abrir asas pela primeira vez. Procurava ajuda da avó Nacinda, guardiã de tantos encantos.
— Avó Nacinda, o que é que vive dentro de um escritor?
Desprevenida, a velha senhora buliu de mansinho o ar morno da tarde, com o dedo espetado, como se tocasse as cinzas de uma criatura oculta. Aquela criança tinha fome de estranhos saberes!
— Dentro de um escritor moram rios que desaguam onde o coração manda, meu menino. – descobriu ela, desembaraçada, de olhar aberto e lábios que vertem ternura em pele alheia.
O silêncio pousou entre os dois…
— E não se afogam nesses rios, os escritores? — quis entender, surpreso, o rapazinho.
— Oh! Há esse perigo, sim! Mas os escritores são como peixes que nunca se deixam prender na rede: esquivam-se dela… dentro da alma das palavras. — explicou avó Nacinda, solícita.
— E fogem para o mar, então… — suspeitou Eliseu, apreensivo, a adivinhar a confirmação.
— Não... Fogem para o infinito. E ali, escondidos, eles dão voz às pedras e ensinam o vento a cantar. Dentro deles chovem muitas línguas. É por isso que conseguem vestir o silêncio de som sempre que inventam essa fala que faz desaparecer a solidão dos homens.
Zelosa nas respostas, avó Nacinda era entendida nos mistérios da vida. Mas Eliseu ficou calado, por instantes, a morder a pergunta que queria sair.
— Parecem peixes que respiram fora da água… Isso não cansa, avó? — inquiriu, por fim.
— É uma canseira doce, boa, meu filho! — assegurou ela.
O menino queria acreditar, mas a dúvida escorregava-lhe dos olhos pequeninos, pescadores afoitos de horizontes.
— Então, avó Nacinda, escrever é o quê? — Eliseu quis saber mais. Guardava em si farta sede de respostas.
Ela devolveu prontamente, como se areias celestes tivessem dado vida nova ao seu espírito desarmado.
— Escrever é pôr o mundo a sonhar.
Eliseu mostrou-se satisfeito. Sorriu, contente. Mas, entretanto, ainda arriscou:
— E se um escritor se cala, avó?
Difícil de esclarecer. Parecia que dentro da cabecinha daquela criança morava gente desassossegada, desejosa de juntar letras para aprender a ler!
Ajeitou o lenço na testa e deixou o olhar viajar para longe. Demorou-se. Eliseu, vigilante mas despreocupado, sabia que aquele silêncio tinha vida. Ela devia querer colher a flor perfeita, matutou.
Avó Nacinda respirou profundamente, como se tivesse ido buscar a resposta a um jardim secreto. E disse baixinho, olhos arrebitados:
— Quando um escritor se cala… leva com ele pedaços bonitos da humanidade que ninguém mais consegue despertar. E é aí que o futuro começa a nascer mudo.
Eliseu pensou. Mãos estendidas sobre o colo inquieto e o pensamento desarrumado, em linha reta, sem ponto final, durante aquela pausa longa.
— Quando um escritor se cala não é apenas ele quem se perde. É isso, avó Nacinda? — questionou finalmente, prudente, com a razão a pedir espaço para a descoberta.
— Sim, Eliseu. É que um escritor salva. É ele quem mantém os homens a respirar dentro dos sonhos. Coisa simples, mas imensa, da vida. — confidenciou. — Porque o homem não é só terra, água e céu. Todos somos um livro aberto de páginas brancas que pulsa, escondido, entre as mãos do mundo, em busca de esperança.
Avó Nacinda mostrou o seu sorriso velho que sabia mais do amanhã do que do ontem.
E nesse dia, Eliseu percebeu que também ele era verso vivo a vibrar no coração do universo, à espera de ser tecido pelas mãos brilhantes de um escritor.
REVISTA VICEJAR
Trazia sobre o corpo um vestido feito de alvas recordações com a ternura dos dedos que, um dia, a tinham embalado ao som de muitas canções.
O palco, sereno, acolheu-lhe os passos qual mestre que aguarda, silencioso, o desabrochar da sabedoria leve, mas segura, do seu discípulo. A música surgiu suave como um toque de seda que adoça a pele e nos conta segredos.
Como se o tempo ancorasse naquele espaço sem limites, toda a delicadeza se foi revelando nos seus movimentos a fazerem daquela arte a mais pura prece.
Não era apenas a vontade. Era todo o sentimento contido naquele modo, inexplicavelmente genuíno, de ser corpo e alma indivisíveis. A ponta dos pés e a magia das mãos a envolverem o aconchego dos misteriosos compassos. Sobre a extensão do vazio, apenas ela e a criação rítmica e cadenciada de um milagre, numa oferta de vida ao momento e às sensações inexprimíveis de quem a observava com a respiração cativa no olhar.
Era uma necessidade muda, a que se fazia em nós, de seguirmos ao encontro profundo daquela relação tão íntima que ela tinha consigo mesma, numa harmonia perfeita, como se cada expressão do corpo fosse uma sedução natural da luz do sol, da imensidão do céu, das vozes misteriosas da terra.
A revelação da discreta essência de ser, num corpo de menina a transbordar a emoção transformada em arte.
Para ela, a dança era a consciência, a voz, a música do silêncio, a canção da vida. O aroma do infinito no mais belo acorde a vibrar-lhe no peito.
Na melodia do tempo, fazia parte dela como um antigo sonho por sonhar. Um novo caminho a percorrer. A dor de um passado que se desfez e que a imaginação, hoje, poderia refazer com o sentimento a nascer-lhe do corpo uma e outra, e outra vez.
Jamais voltaria a escutar o som dos afetos na doçura macia dos lábios da mãe. Mas era assim agora que, depois da partida, ela regressava. Pela certeza de um encontro onde nada diziam. Somente a virtude destes eternos instantes que tinham a fragrância de um beijo demorado e aquele encantamento de um amor delicado e vagaroso, sem urgência.
Era assim, agora, que guardava em si a memória única do que as palavras nunca mais poderiam proferir. Era neste silêncio que a dança se tornava para ela a soma de todas as partes de um só coração. E nela morava a evidência de nunca estar sozinha.
Na intensidade do seu deserto interior, era quando se perfumava assim, num ato de completo e desarmado abandono, e sentia o vento que vinha da própria pele, que redescobria o mais humano e o mais divino dentro dela.
Era quando renascia nesta cintilação feliz de intimidade, que ela abraçava a eternidade.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
“Está aberta a época da Loucura Coletiva das Férias”, anunciou o jornalista de sorriso forçado, no canal português com mais ouvidos atentos.
Mas a novidade, desta vez, não teve audiência. Porque tudo já começou muito antes, com o planeamento exaustivo, durante semanas a fio, desses dias cheios de um qualquer sol iluminado, para dar descanso às almas fatigadas. Os estratagemas camuflados e as negociações clandestinas com os Recursos Humanos, numa luta feita com unhas, dentes e várias aplicações de viagens sobre destinos paradisíacos, exigente e suada, só para conseguir aqueles sete dias do ano, inteirinhos, de férias em família. Finalmente, depois de adiados, na agenda profissional, dois estudos de mercado urgentes, e ajustadas entre três projetos que não admitem deslizes, as ansiadas férias estão definitivamente marcadas.
Merecidas, depois dos onze meses em modo burn out, a tentar sobreviver a um horário desconcertante, cruzado com tarefas múltiplas, entre casa, trabalho e corridas para as aulas de capoeira, fonética islandesa, programação intuitiva e dança pós-dramática, dos mais novos. É que esta coisa da logística da vida familiar é, sem dúvida, tão ou mais complicada do que a de um armazém de roupas em Xangai.
E quando o Gonçalo Vasconcelos pergunta ao Zé Reis se nas férias não vai a lado nenhum e este lhe reponde: “Vou. Para o meu quintal.”, o silêncio de assombro do primeiro soa ao segundo como suspeita de pobreza mental (mais do que financeira, pois que, afinal, até são colegas de trabalho na mesma empresa).
E enfim tem início a tão esperada odisseia dos turistas olímpicos. O plano a cumprir é bastante simples: uma escapadela para um resort com nome esquisito, mas fino, que lembra qualquer coisa entre um cocktail e um oásis zen, com paisagem de perder as vistas. Uma sessão de terapia com taças tibetanas, visita guiada a um laboratório de escrita criativa para crianças hiperativas e um campo de golfe, tudo incluído no pacote.
Em casa começa a habitual guerra civil. Roupas que voam pelo ar, malas feitas aos trambolhões e impossíveis de fechar. O passaporte do Martim Afonso, desaparecido, após ter servido de base para o rato do computador. Depois de olhar pela centésima vez para os memorandos colados na porta do frigorífico, e à beira de uma síncope nervosa, a mãe confere a bagagem. Dá conta de mais meia dúzia de camisolas pretas junto das doze já guardadas, debaixo do comando PS. Berra que faltam as cuecas. O filho acrescenta que leva as que tem vestidas. O pai entra no quarto com uma bolsa só para os carregadores, porque todas as powerbanks estão descarregadas. Insiste, desesperado, que estão com duas horas de atraso.
No aeroporto cheio de gente a dormir em cima de mochilas, alguns bebés gritam em choro compulsivo nos braços pacientes das tias e das avós, enquanto um grupo de alemães e japoneses, unidos não pelo destino, mas pelo desalento coletivo do atraso de embarque confirmado, discutem em três línguas diferentes.
Na área de check-in, uma idosa de baixa estatura, calçada com umas socas enfeitadas de purpurina e uma maleta de mão onde espreita um secador de cabelo, empurra uma mala de tamanho XL. Está em videochamada com a filha. Do outro lado do terminal, todos ficam a saber que se chama Palmira Antónia.
Subitamente, a família apercebe-se que a mala dos fatos de banho ficou esquecida na cozinha. Mas não há tempo para cogitarem muito sobre o assunto. Entretêm o pensamento, convencidos de que talvez consigam comprar uns quantos, a preço de saldo, numa loja de conveniências.
Entretanto, irritada, Constança discute com um segurança sobre a subida a bordo, prioritária, para passageiros com cães de colo. E Gonçalo começa a suar quando se dá conta de que perdeu o cartão de embarque. Para alívio, é abordado por um indivíduo de barba mal feita e olhos escuros, vestido com um poncho colorido, que lhe devolve a possibilidade da partida atempada. Parece que o bilhete para o Éden lhe caíra do bolso, lá atrás.
Gonçalo Vasconcelos agradece, com medo de ser retido no aeroporto após suspeita de ligações a uma rede de contrabando. O peruano afasta-se com ar de pessoa normal e sorriso verdadeiro, depois de murmurar um “buen viaje, señor”, mochila de lona às costas e O Estrangeiro, de Camus, debaixo do braço.
Carlota Beatriz, Kika para todos, morre de mega tédio existencial. Distrai-se a observar um casal duvidoso que é descoberto a tentar passar pela fila de segurança, com cinco garrafas de licor no carrinho do bebé. Em seguida, tira uma selfie, a fazer boca de biquinho e com brilho extra no filtro, de cabeça encostada à montra de uma loja duty free com donuts cobertos de creme verde fluorescente, para publicar no TikTok, só para as “melhores amigas”. Sim, porque elas são muitas, mas só umas pouquíssimas merecem que partilhe com elas os momentos mais privados da sua vida.
O irmão, encolhido na linha de espera interminável para os sanitários, joga Candy Crush no telemóvel. Considera se haverá wi-fi e tomadas USB no avião e pensa que, se morrer ali, talvez os pais sejam reembolsados pela agência de viagens.
Em classe turística, o passageiro sentado à frente dos Vasconcelos, ressona despreocupadamente durante duas horas seguidas. Quando acorda, pede sopa de lentilhas acompanhada de kombucha fermentada em carvalho. Não compreende o ar de surpresa da assistente de bordo.
Longas horas depois, já na área de recolha de bagagens, Gonçalo e Constança, de cabeça e sapatos inchados, observam o tapete rolante, que se assemelha a uma roleta de objetos caóticos e retorcidos, enquanto um homem discute com a mulher sobre a mala desaparecida. A criança ao lado pergunta-lhes onde estão as férias. Não se escuta resposta nem se vislumbra bagagem.
A viver o receio de que a cena se repita com ele e o delírio possa instalar-se a qualquer momento, Gonçalo dá conta de uma mala com aspeto de Che Guevara, onde uma etiqueta colada com fita adesiva identifica o nome Sinchi Huanca. Logo depois, o peruano misterioso que o salvou no momento do embarque, aproxima-se, descontraído, com aquela expressão que o outro entende como a de alguém que conhece o segredo dos espíritos. O Vasconcelos acena-lhe com a cabeça, por mera cortesia aeroportuária, e fica a vê-lo afastar-se no meio da multidão. Com olhar jocoso e um tanto ignorante, questiona-se sobre a possibilidade da mala de Sinchi Huanca se encontrar cheia de amuletos, cerâmicas ancestrais e máscaras incas, destinados a fins discutíveis.
Nessa noite, já na cama do hotel, onde o corpo e a mente imploram por descanso, Gonçalo tem sonhos desconcertantes com chapéus de abas largas, colares de sementes a tilintar e rituais primitivos no deserto. Talvez resultado de instantes espiritualmente superiores, um prenúncio de demência ou efeitos do jet lag. Acorda, estremunhado, a soletrar a palavra huarachico, com Constança a abaná-lo, ao mesmo tempo que lhe fala sobre cenários multiculturais e manteiga artesanal para o pequeno-almoço. Esta lembra-lhe, sem piedade, que o spa e o jacuzzi só funcionam das 7h00 às 8h30 e, como tal, é preciso aproveitar porque as férias… são para desoprimir e relaxar!
Na sala do buffet, e já a engolirem umas fatias de pão rústico com sementes de chia e umas poucas rodelas de ananás, eis que chegam os italianos, inundados por um alvorecer mediterrânico. E a inundar o espaço gourmet. Abraçado à esposa de vestido amarelo com borboletas e tulipas azuis, água-de-colónia fresca e quilos de entusiasmo, o senhor de bigode à Salvador Dalí e timbre de tenor, anuncia: “Amore, guarda… Cappuccino! Frittelle con nutella, Dio mio!”.
Por trás deles surgem os quatro filhos e filhas e os sete netos, cúmplices no olhar indisciplinado dos que se unem para uma contenda pela melhor mesa da sala, e prontos para uma maratona pelo brunch continental antes que os ovos mexidos “à inglesa”, o parmesão e os donuts de chocolate desapareçam nas bocas alheias.
Com as marcas da almofada ainda gravadas na cara, Martim Afonso foge para o elevador. A irmã e os pais seguem-no. Olham-se silenciosa e estupefactamente, porque se descobrem todos juntos e não sabem o que fazer uns com os outros.
O filho prefere não se encontrar face a face com a família. Afinal, tal parece-lhe uma aventura insólita caída em desuso. Tranca-se no quarto, a jogar com os amigos virtuais sul-coreanos a quem trata por “manos”, mesmo que eles não entendam nada do que ele diz e vice-versa.
O pai, Gonçalo, de polo Lacoste rosa salmão e óculos espelhados, segue para o campo de golfe onde um sueco reformado, chamado Lars, o ajuda a pegar no taco sem que pareça que está a segurar uma raquete de ténis, e a não acertar nas bolas do vizinho da frente. Nesse dia, o riso trocista dos outros turistas e os comentários ditos à socapa, ensinam-lhe o significado prático da palavra handicap. Mais tarde, Lars convida-o para almoçar e confessa-lhe, entre sorrisos culpados, que os colegas insinuaram que ele, a jogar, mais parecia um flamingo bêbado. Torna-se certo que, futuramente, Gonçalo deverá arranjar espaço na agenda para se tornar poliglota.
Kika desceu atrás da mãe, em direção à piscina, com maquilhagem ultranatural e envolta no seu beachwear todo branco, para parecer despida com estilo, à caça de seguidores com abdominais e bíceps salientes e a expetativa de receber algum convite para um sunset privado. Vista pelas onze da manhã junto ao bar da piscina, ao lado de um rapaz que dá pelo nome de “Legend_X”, no Snapchat, antes de desaparecer por várias horas.
Constança lamenta não ter encontrado um modelo à altura do momento e, obrigada a vestir o que considera uma espécie de fato de ginástica demodé, sente-se finalmente despida de constrangimentos e pronta para usufruir a liberdade no peito. Há que fazer render as sessões de fitness que pagou, mas não teve tempo de frequentar. Por isso, deitada na espreguiçadeira, munida de um livro de autoajuda que lhe garante um reencontro rápido com a sua essência, alinha com precisão as costuras do biquíni. As mulheres conhecem intuitivamente esse fascínio social provocado pelas marcas de UVA deixadas na pele, entre o meio dia e as quatro da tarde. Quando regressar do paraíso, as colegas vão sentir os ossos roídos de inveja daquele bronze que lhes falará sobre dignidade, determinação e a ousadia de quem acredita que a vida é feita de riscos.
Entretanto, nem sequer abre o livro. Por preguiça e porque entende mais proveitoso fazer uma checklist que prove que está viva, feliz e de boa saúde.
Começa com um agradecimento ao universo e uma flor entre os dedos dos pés:
#GratidãoÉAmarASimplicidadeDaNatureza.
Seguido de um vídeo sobre a ondulação da piscina, para lembrar que a água de fora é uma repercussão da serenidade interior:
#ViverOAgoraComInsideLove.
Depois vem a pausa para uma dedicação plena a toda aquela organização decorativa que é preciso cumprir. Um par de horas a lambuzar o corpo com bronzeador, outro para descobrir a luz e o ângulo perfeitos, e mais um tanto a ensaiar a melhor forma de pegar no copo de Martini. Pernas cor de cenoura e nova fotografia com a legenda encontrada em mais quinhentos e dez mil perfis: “Na melhor companhia”. Porque a solidão é sempre muito pouco poética.
Chegada a hora do almoço, Constança afunda-se debaixo do guarda-sol, a comer meia dezena de croissants, enquanto prepara a refeição detox que vai publicar nas redes sociais.
Um pratinho com framboesas, iogurte natural e uma folha de hortelã dentro de um copinho de vidro com formato minimalista. Um refresco de água aromatizada com rodelas de limão, para suavizar o calor durante a tarde. #SerenaNaSuperfícieAViverOAgora.
O hummus orgânico e o smoothie de papaia ficam para a publicação do jantar.
Martim Afonso encomenda a sua refeição através do room service, enquanto Kika come bem acompanhada no restaurante próximo, onde servem o melhor Pad Thai e Satay do mundo. Garantia de Thabo Mandla, o tal amigo anónimo do Snapchat, que é fã de Dudu Deep, carismático influencer de trinta anos que tem um caso de amor com a palavra “tipo”, e fala com uma mentalidade de dezasseis, sobre pilates para a alma, ex-namoradas e gastronomia tailandesa.
Já Gonçalo, em parceria com Lars, prova um excelente prato de ceviche de vieiras com espuma de gengibre, servido no restaurante do hotel. Nota que a mesa dos italianos tem, agora, cinco amigos britânicos a conviverem silenciosamente. No meio da conversa entre ambos, arraçada de inglês, sonha acordado com um café Delta e um pastel de nata como sobremesa.
Da parte da tarde, com grunhidos mal dispostos perante todos os ruídos que incomodam, Martim Afonso vê-se obrigado a participar na agenda familiar. Visita ao museu, com um grupo de espirituosos turistas irlandeses que gostam de gritar "beoir" e "yes". A atração principal do local é uma pedra onde, segundo dizem os entendidos, se terá sentado um primo em segundo grau de Napoleão Bonaparte.
Por fim, à noite, Constança substitui o hummus e o smoothie por um ligeiro snack vegano e, como todos têm os olhos postos no ecrã azul dos telemóveis, enredados numa indefinida linguagem morta, não lhe apetece tirar fotos nem publicar. Cansada e aborrecida, unta a cara com o seu precioso creme antirrugas e adormece como a pedra do museu.
No outro lado do planeta, num lugar chamado de aldeia, com cheiro a terra seca, e não muito longe de casa dos Vasconcelos, o Zé Reis, vive no epicentro da tranquilidade. Ele, a mulher e a filha. Os clandestinos que sentem o prazer autêntico de não ir de férias a lado nenhum. Curiosamente, vivem tudo. E pasme-se, praticamente de graça.
Fazem um acampamento na sala e despertam com a música dos pardais nas árvores defronte de casa, dentro de uma tenda armada com lençóis velhos, onde adormeceram todos juntos, a rir das piadas do pai. Despertam, mas levantam-se só à hora que o corpo manda.
Na varanda, comem torradas estaladiças e bebem limonada acabada de fazer. Depois, vão dar um passeio no mato. O Zé leva com ele uma tesoura de poda e dois pães no bolso. Apanha uns ramos de eucalipto e oferece-os à Paulina, para perfumar a casa. A mulher é uma poetisa autodidata que gosta de cuidar da família. Para ser feliz, basta-lhe o sorriso de Leonor, os braços do marido e o aroma do jasmim.
Ao almoço, comem carapaus grelhados na antiga tábua de passar a ferro da avó, transformada em fogareiro, e fruta apanhada no quintal.
Cheira a campo e todos gostam.
Depois de retocar a pintura do portão da garagem, o Zé adormece na cama de rede, a ouvir o som das cigarras, enquanto a mulher e a filha lavam o carro e acabam a tomar um banho de mangueira, entre desafios e gargalhadas. Muito melhor do que qualquer parque aquático. Acorda com salpicos de água na cara, gritarias e corridas, e o gato do vizinho em cima das pernas. A Paulina e a Leonor riem até às lágrimas quando veem o Zé a tentar dançar kuduro em cima da relva molhada.
Depois, a Paulina traz gasosa, vinho tinto, queijo, mel e biscoitos de canela feitos pela Leonor, para lancharem. O melhor piquenique no jardim, sentados em cima da velha manta que era do avô. Enquanto comem, o pai lembra que, no dia seguinte, podem ir visitar a feira medieval a decorrer ali perto. Vão sentir o aroma do incenso que a Paulina adora e comer o pão com chouriço e beber a cerveja fresca de que o Zé não prescinde, mesmo se servida num copo de plástico. A Leonor esfrega as mãos de contente e recorda, deliciada, que também vai pelos crepes de frutos silvestres.
Agora, pelo amainar do calor, ainda há tempo para uma caminhada à beira mar. Naquela praia, de quando eu era pequena, afirma Leonor. E a Paulina tem saudades do susto da filha bebé quando sentiu os primeiros passos na areia rugosa.
Um pescador observa-os, desconfiado, enquanto apanham conchas e búzios para a coleção da família. Pergunta-lhes de onde são e quando lhe respondem “daqui”, olha-os como se ser dali soasse a falta de identidade. Eles riem-se e esperam sentados pelo pôr-do-sol. Paulina não perde esse espetáculo do horizonte a anoitecer. E tira a única fotografia destas férias, que vai guardar no computador. O resto fica-lhe na memória.
Por fim, após o jantar, assistem os três a uma comédia dos anos noventa, com o paladar de pipocas e marshmallows a adoçar-lhes a boca. Lambem os dedos e nem dão conta. Quando apagam as luzes, riem juntos às escuras durante dois minutos. Só porque sim, porque lhes apetece. Leonor boceja e adormece com a cabeça no colo do pai.
Antes de se deitar, o casal deixa-se ficar algum tempo na varanda de casa. Ainda sentem areia húmida da praia colada aos pés. Sob a luz do luar, escutam o cantar dos grilos e olham para o céu estrelado. A Paulina pergunta ao Zé se a constelação por cima deles é O Cisne. Ele não sabe, mas olha para ela com olhos de ternura e responde que sim, só para a ver feliz. De seguida, oferece à mulher um poema inventado por ele, escrito num guardanapo de papel e passa-lhe a mão pelo rosto, numa carícia demorada. Diz que a ama. Ela abraça-o e sentem o coração um do outro.
Sete dias passam depressa. Ou será que não?
Juntos, mas sozinhos, ansiosos por chegarem a casa, os Vasconcelos regressam de viagem em estado de pré-coma. Tão esgotados como o esgotamento do cartão de crédito, a arrastar as malas de rodas quebradas, coração vazio e Instagram nutrido. Cada um para si, a desejar que as férias do próximo ano cheguem já amanhã para poderem descansar. Orgulho ferido porque souberam que os Lencastre foram para Punta Cana. E isso… sim, é que é ser exótico.
As férias dos Reis são financiadas por um fundo financeiro invisível. Pão quente sobre a toalha de linho da mesa. Tempo disponível. E muito amor. Não existe wi-fi. Só existe vida em cada canto. E eles.
De volta ao trabalho, Gonçalo Vasconcelos olha para o Zé Reis como se este tivesse cometido um pecado por não ter publicado no Facebook, sequer, umas simples fotografias de férias no Algarve. Deve haver algum segredo oculto. Não há possibilidade de ser feliz sem pagar alguma coisa por isso.
— Ficaste mesmo?
— Fiquei.
— Mas fizeste o quê?
— Estive.
O Zé é olhado com descrença. Como um suspeito de homicídio sem testemunhas que lhe sirvam de álibi, porque na hora em que o crime foi cometido, se encontrava no WC. Mas sorriu apenas, sem sentir necessidade de justificações. A única prova de que precisava era a paz que trazia consigo. Em síntese, é como dizia Bernardo Soares, o seu amigo Fernando Pessoa: “Para viajar basta existir. É em nós que as paisagens têm paisagem. Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China…, onde estaria eu senão em mim mesmo?”.
Ir de férias tem classe. É elegante e de bom gosto. É viajar, é resort, é praia, é pôr-do-sol, é muito Instagram. Ficar de boca cheia de histórias para contar até ao Natal.
Já existir… bom, existir é apenas poder repetir a viagem sempre que se quiser e ficar de coração cheio para lembrar, sem precisar de fotografias, durante toda a vida. O supremo luxo que só uns poucos privilegiados conhecem. Esses que, nas férias, até podem dar-se ao luxo de ter tempo para escreverem umas quantas palavras sobre os absurdos dos que vão de férias.
Sim, são importantes as férias. Ir para fora, mesmo que seja cá dentro. Porque existir é para totós. E, nisso, felizmente, alguns ainda conseguem ir longe.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Às vezes, tenho a singular capacidade de me ver inteligente. Aquela inteligência útil de um adulto que cresce à força e continua a sonhar castelos, com a mesma certeza de que existem impostos para pagar. E todas as rugas me enganam a dizerem-me que sei da vida, quando é só o futuro, transformado em passado, que me desarranja o corpo.
Faço coleção de absurdos. Contas, papéis, e-mails, agendas, horários. Quando abro a gaveta a transbordar, estas desconfortáveis responsabilidades já ganharam o estatuto de monstros. De olhos fechados, volto a enxotá-las para um canto, na expetativa de que não cheguem a devorar-me. A incapacidade de quem não nasceu para ser prático. Para habitar este mundo consciente dos seres funcionais que vivem com os pés na terra, a nadar no betão armado e nos artifícios do quotidiano - quando eu mal adivinho onde deixei os sapatos - como grandes coisas que não me merecem o esforço da memória. É nesses momentos incautos que lamento a ausência de uma assistente, precavida e de boa lembrança, que preveja onde estarão escondidos os meus óculos.
Por falar em óculos, gosto de escrever. Mas suspeito que por ter lido demasiado Pessoa, nunca mais voltei a ser um sujeito normal. Mastigo ideias e cuspo palavras enquanto engulo copos de silêncios. E vou traduzindo o que sinto para a linguagem daqueles que desconhecem não conseguir sentir. Assim gosto de ficar, sem pedir autorização a ninguém, a morar em cima do meu sofá simples em segunda mão, entre pensamentos cheios daquilo que gostava de compreender. Sou pessoa de poucas aventuras, portanto. A adrenalina sobe o recomendável se passar um par horas a alinhar, de forma insuperável, quatro adjetivos, esquecido do motivo porque me sentei em frente à mesa do restaurante.
Com todas as certezas de quem já me leu o horóscopo, uma amiga tenta convencer-me de que para me tornar num escritor a sério, de sucesso, é urgente que, pelo menos, tire umas quantas fotografias. Para o meu “perfil de autor”, para o meu press kit como agora está na moda dizer. Para vender mais nos eventos literários, remata. Um literato que dispensa a sua própria biografia e cuja maior história pessoal de amor é a que vive com as teclas do computador... Porquê parecer aquilo que sei que não sou? Uma caricatura de mim mesmo?! A fama está a tornar-se uma figura frívola, embrulhada em maquilhagem, que desfila nos palcos do mundo… Faço de conta que ouço a minha amiga, enquanto me sinto uma falsa estrela a fugir da órbita do sistema solar.
E fico sempre desconfiado quando me dizem que me compreendem. Se isso aconteceu, é porque me mostrei excessivamente objetivo. A banalidade do entendimento fácil está longe de ser um privilégio. A mim soa-me mais como um tipo de nudez desmazelada. Acho que as pessoas deviam ser como um bom livro. O que nos dá vontade de ficarmos presos a ele, é a beleza do mistério.
É o que me acontece com as mulheres.
Ah! As mulheres… Acusam-me de insensível. Não. Sou apenas uma alma suficientemente distraída ao ponto de se perder consigo própria. Mas não lhes peço a elas, às mulheres, que me percebam. Que já bem me basta ser eu neste contrato a tempo inteiro que nunca assinei. Por isso, resta-me somente pedir-lhes perdão por todos os diálogos em que, fisicamente presente, me fiz ausente. Nessas pausas, sujeitava-me a outras lides domésticas e menos domesticadas da mente.
Claro que não era por desinteresse ou por desleixo. Não tenho culpa se no meio de uma conversa no supermercado, sobre a frescura da fruta e dos legumes, o cérebro me acende uma centelha e o espírito se me desaparece do lugar onde estou, porque um estranho advérbio me conduziu, estupidamente, para dentro de um poema.
Só quem consegue lidar com isso é a A. Sabe-me de cor como um livro que continua a folhear, obstinada, como se fosse a primeira vez. Diz-me que prevarico por ser exageradamente realista (quem diria?) e, como uma boa irmã, só ela me absolve de todos os pecados que pratico por pensamentos, palavras, atos e omissões. Quando vem de visita, senta-se à mesa comigo durante duas ou três manhãs e, enquanto partilhamos um café amargo, olha-me como se eu fosse um museu contemporâneo. Sem entender nada, mas seduzida pela beleza da desordem.
A propósito, da última vez em que estivemos juntos, contou-me como sou curiosamente engraçado. Parece que durante o tempo em que falava com ela – sem nunca me interromper ou ofender com as minhas dispersões, que fique registado - consegui encontrar o sinónimo perfeito para “desalinho”. Deixei-o rabiscado em cima do envelope onde a fatura da luz ficou por pagar. Para ela, mais do que um indivíduo atento aos pormenores, sou um distraído com sentido. A. deve ser a única mulher com quem consigo ter uma conversa integral e íntegra. Questiono-me se ela existe.
Mas regressando um pouco atrás, e para que conste, gosto, sim, das mulheres. E nesta matéria prefiro, seguramente, ser bem interpretado. A verdade é que o amor seria lindo se não fosse o dia-a-dia. O que pode matar mais o erotismo do que discutir, logo de manhã, sobre a ementa do jantar? A sensualidade tem que ser escrita com o copulativo certo!
Mas atenção, não aprecio aquelas que chegam agarradas a uma espécie de compêndio de trivialidades, cobertas de aparências vazias, envoltas em clarões que brilham pelo excesso de nitidez. As que me trazem um soneto comprado no mercado e me o declamam a frio porque, quente, lhes queimaria os neurónios.
Gosto, sim, das mulheres que não inventam desculpas para viver. As que, vez por outra, me desviam com elegância do caminho que vou traçando. Aquelas que se sustêm, quase divinas, entre o requinte dos gestos e a placidez da contemplação. Que citam Cesariny com toda aquela graça natural, absolutamente deliciosa, em cada uma das suas palavras acesas como barcos. E o fazem com a mesma virtude com que cruzam as pernas na sala de espera de um consultório.
São como duas colheres de poesia nos dias com cheiro a inverno, estas mulheres que não tentam pôr-me na linha para além daquelas em que escrevo. As únicas linhas direitas a que me prendo. As delas, que são curvas, observo-as, com dedos vagarosos a girarem na orla de um copo. Os seus lábios frescos cheios de filosofias e a ciência de quem sabe que um vestido solto no corpo, e ombros nus abandonados ao convite de um toque, são a mais bela forma de provocação intelectual.
Eu sei… São mulheres impossíveis! Belas. E perigosas também. É quase um milagre sair ileso desta forma de subtileza sedutora que não me causa tédio. E quase um crime se acontecer o contrário. Eu, confesso transgressor, escuto as vontades da alma e deixo-me levar. Sempre por fascínio. A seguir, deixam de me ser intrigantes e eu, sem conhecer ao certo o nome exato do lugar onde acabei por cair, fujo como um culpado inocente, da roda das suas intrigas. Ad astra per aspera.
E lá troco uns vícios por outros. O cigarro.
Mas há quem creia que o corpo é um templo. Como tal, não sei ao certo se por convicção própria ou se, talvez por falta dela, deixei de fumar. O meu maior ato de coragem. O meu maior atentado, de sempre, à estética. Engordei seis quilos de ansiedade. Tenho saudades do cigarro. Era como aquela amante sensata que não me pedia justificações. Apenas um curto tempo de prazer. O suficiente para umas quantas epifanias e o cair, depois, nesse marasmo aprazível entre o intelecto e a inércia. Para compensar, tentei correr, fazer exercício. Foram três dias num sol de pouca dura. Não tenho dúvidas: prefiro o desafio das metas físicas. Pelo menos, com essas, sou como um fósforo aceso, sinto-me vivo. E posso transformá-las em literatura. Uma arte que não precisa de me provar nada para lá do que consigo viver poeticamente. E se isso me basta, por que razão hei de procurar mais?
Mas se vos conto sobre mulheres e cigarros, não é por acaso. Talvez sejam uma tragédia menor quando comparados com os políticos. É com eles que pratico o meu desporto mais radical: a paciência. Na minha melhor versão de imperfeição, abraço estes devotos não praticantes, como se abraça uma trovoada no oceano. Ao longe.
Na política, sou antitudo. É aqui que, condenado a tornar-me consciente, não por opção mas por impossibilidade de exílio, tropeço ainda mais na realidade.
Vejamos, então. É um facto que não sei de todas as coisas certas. Mas não duvido nada das que estão erradas. No meu outro trabalho, aquele que me faz pagar as dívidas, vivo mal. Sobretudo mal pago. Mas também por causa dele, mal durmo e mal como. Guiado por laivos de ingénua esperança, a minha conta bancária já mudou de domicílio mais vezes do que eu de apartamento. E aqueles que me conhecem aéreo, perguntam-me, por vezes, onde estacionei o carro. A esses questiono: qual carro? Não porque me tenha perdido dele, mas pela overdose de despesas que a imposturice não paga. Se pudesse, deslocava-me sobre demagogias, mas a criatividade do autor ainda não foi eficaz ao ponto de permitir que a mobilidade não seja feita senão com os meus pés.
Do mal, o menos, quem sabe desengorde a meia dúzia de quilos a mais. E enquanto aqueles senhores vão amadurecendo pelo engano e eu, espectador das suas autobiografias, continuando a apodrecer por falta de alternativas, aguardo que me prendam por abuso de inconveniências, expressas com a minha liberdade literária, de cada vez que me apetece publicar um livro só para me vingar deles.
Pensando bem, também na política, tal como com as mulheres, é um risco colocar condimentos e temperar o prato que não se deseja comer – como me dizia, certa vez, uma amiga, que não era a A. Mas pronto, estou a ser honesto, o que hoje em dia é quase uma utopia.
E já que insisto na honestidade, admito sem hesitar que, se a vida me desse outra oportunidade, faria algo que, a bem dizer, nunca me pareceu totalmente reprovável. Casaria com uma mulher rica. E é óbvio que não o faria por amor. Essa foi uma quimera dos tempos de cara enfeitada com acne. Agora, fá-lo-ia pela minha santa libertação. Para comprar a paz que o dever me usurpa. Não me veria mais nessa necessidade, tão entediante como desgastante, de continuar a fingir que a liberdade se alcança com luta e suor.
Uma mulher rica de coração generoso, com arroubos maternais, que me desviasse, por caridade, dos fósseis administrativos e não me falasse do incumprimento das tarefas diárias como se fosse uma catástrofe global. Que me deixasse viver cada parágrafo da existência entregue à minha essência reflexiva, qual rato de biblioteca que acorda todos os dias ao som de uma bela estrofe.
Talvez uma senhora que me tratasse com aquele carinho de luxo com que as tias cuidam dos seus cãezinhos de raça. Que confundisse a minha desorganização com genialidade e concordasse que a aparente inutilidade é também uma coisa digna. E me chamasse de “meu querido” nas suas soirées aristocratas, onde eu apareceria de lenço de seda policromático ao pescoço, como um pássaro exótico. Excentricidades a que um marido artista não poderia escusar-se.
Mas enfim, à falta desta remota possibilidade de me tornar num parasita novelesco, fico-me pela poesia e pela música. No fundo, o meu manual de sobrevivência no planeta dos TikTok’s e da fast food.
Além disso, é para suprir ambições pouco tangíveis e lutar contra o enfartamento da alma e do corpo, que serve igualmente a espiritualidade.
E ora aqui está uma palavra que não gosto de pagar para acreditar.
Muitos por aí andam a vender falsas castidades. Já me vi enganado por gurus bem vestidinhos com cara de cartão de visita. Vendedores de luz que se regalam com velas apagadas. Mas eu pertenço ao clube dos que já pouco se surpreendem com alguma coisa. E se o mundo oculto está cheio de intrujice, que me desculpem todos os beatos, mas este lado do hemisfério não vive em melhores condições.
Por isso, sou um adepto de forças superiores com bom gosto, as que profetizam à margem do cinismo e que se encontram fora desse espaço dos mortos que dita auspícios para punir os que ainda estão vivos.
Posto isto, a minha espiritualidade? Vivo nela e com ela, na medida certa e sem despropósito. Pronto para não entender tudo, mas crente de que existirá lógica em qualquer lado. No fundo, tenho a impressão de que entre a castidade piedosa dos seres etéreos e a iluminação pomposa dos homens, Deus é, sobretudo, um poeta bastante incompreendido.
Portanto, sou espiritual, efetivamente. Mas sem devoções. Assim, não tanto por fé ou por dúvidas, mas mais pela teimosia de, por alguns instantes, precisar de não estar vivo, vou praticando meditação. Deste modo prossigo a minha jornada: entre o diabo odiado e os anjos que não sabem se curam, que é como quem diz, entre o pecado e a salvação.
Quem não nasceu com humores emocionais para vislumbrar arcos-íris, é assim que aprecia a vida: a preto e branco. As cores, especialmente quando a luminosidade se assemelha a um grande ruído, deixam-me baralhado. Prefiro assimilar o que os meus olhos veem. Um traço nítido, limpo e honesto entre o que é e o que não é.
Antes de terminar, não posso deixar de fazer uma confidência. É só uma revelação ingénua, ainda que possam julgar-me como louco. Pressinto que o fim do mundo esteja para amanhã. Não sei se é porque o calendário insiste ou porque o tempo me convenceu.
Mas se vier mesmo o apocalipse, pelo menos que me encontre com um livro entre os olhos e um copo a meio.
Assinado: Ló
(na incerteza de me tornar sal ou livro, fiquei-me pela crónica)
P.S. Se alguém me leu até ao final, peço desculpa… Ou não. Talvez nesta página de tolas verdades mascaradas de pilhérias, possa ter-se reconhecido. E se isso aconteceu, os meus parabéns. Acabou de se demorar numa conversa consigo mesmo. O único com quem poderá falar sempre genuinamente, para além do seu terapeuta.
REVISTA VICEJAR
Paulo, meu amigo,
acabei de deixar o seu livro sentado neste muro de pedra, costas voltadas para o mar, a escutar a respiração dos barcos e das gaivotas enquanto desenham a sua poesia na brancura das nuvens.
Mas vou fazer-lhe uma confissão: ele ainda flutua dentro de mim! Curioso… Penso que se deve ter tornado num peixe a nadar dentro da minha cabeça…
Você conhece-me. Sabe que eu tenho “sede de navegar”. Por isso, pode imaginar como foi, para mim, uma aventura linda, sentir na pele interior aquele gostinho bom do mar. Deve ter sido, assim, como a viagem do marinheiro que “descortina caminhos, ao léu”, de que você nos fala.
Então, aceite as minhas desculpas, mas vou permitir ao meu pensamento brincar um pouquinho com as suas palavras sérias.
Paulo, o poeta, diz-nos que não sabe costurar. Não faço minhas as suas palavras. Talvez ele não saiba é que bordar não é só juntar fio! Pois eu vejo como, nos versos que alinhava, nasce a sensibilidade de quem desacelera do ruído e nos faz mergulhar, de coração aberto, na leveza dos sentimentos. A isso, eu chamo de beleza artística com vestes de humildade. Uma raridade.
E embora nos conte que mora bem distante do mar, nas suas páginas encontrei-me com um pescador. Um singular pescador que colhe belas preciosidades com as suas redes invisíveis: “o sol no peito da tarde”, “as almas dos rios”, o “desenho do solo”, o “traçado do vento”, a “caligrafia do céu”, “o murmúrio do Criador” ou “o sabor do infinito”. Ah! Conheço tão poucos desses fiandeiros de espumas que, assim, de olhos largos e vagarosos, não precisam da mão da maré para ler os voos da garça, colher os salpicos da neblina ou admirar o reino de um beija-flor, com o espanto da simplicidade…
Por isso, insisto. Sim, Paulo, você é poeta que sabe dominar a agulha sobre a medida exata das formas e com a mestria da elegância. E, sem dúvida, navega na palavra com a arte da emoção e de quem sabe falar, a sorrir, dos pedaços desencontrados do mundo e dessas coisas extraordinárias da alma. Um peregrino de águas profundas, interpretador de silêncios e da música das palavras que mistura, sábia e naturalmente, a luz do pensamento com o encanto lírico, e os serve bem quentes, para aconchegar ou acordar o nosso coração.
Outra das suas pérolas é a maneira bonita como descalça a pretensão dos que se entendem maiores: “todos os dias cada um de nós é único, ímpar (…) capaz de fazer à sua maneira, o seu próprio céu!”. A sua modéstia, sempre tão discreta e madura, a lembrar-nos que todos trazemos uma estrela escondida nos bolsos! Faz-nos acreditar que o ser humano ainda pode valer a pena. Que às vezes, ele também é coisa rara.
E isso leva-me a cismar naquela sua ideia do eterno menino, sabe? Aquele que me faz pensar no menino do ‘meu’ Pessoa e da ‘sua’ Bethânia. O menino das brincadeiras do “Faz de conta”, “meio descuidado, meio distraído”, que gosta de tropeçar nos insetos, que inventa o mar nas poças de água, que chama a tristeza de amiga e se senta na terra para brincar com ela. O menino que foge, ligeiro, do “tempo tatuador”, para não correr o risco de parar de se encontrar.
É mesmo! Tudo o que é pequeno é um milagre! Talvez por isso, esse olhar poético e sensível, tão seu, conseguiu perceber facilmente como “somente a criança foi capaz de ver a beleza da flor”.
Ela, realmente, tem um jeito de ser muito diferente desse adulto sisudo que conduz o navio da vida. Que só sabe andar na linha, de astrolábio e carta náutica presos aos olhos, que só sorri depois de pedir licença e que não permite que o corpo viva a festa. Não, a criança é a própria água debaixo do navio. Ela vai por aí sem medo, pés soltos, a sentir o cheiro da brisa, a “saciar os desafios do desconhecido”. É transparente, não tem forma, e ninguém manda nela. Não tem pressa para se entender nem para entender. Prefere sentir porque conhece o desfecho trágico quando se fica de mãos dadas com o pensamento, sempre cheio de explicações. É como se a criança tivesse dentro do peito um bando solto de passarinhos inquietos. E o que faz ela? Apenas abre os braços e segue adiante. Porque não quer ser grande, só quer estar viva. Tem em si a “(A)ventura”!
É isso, Paulo. Concordo consigo: “existe um ‘nós’ dentro de cada um, que exige ser retocado diariamente”. Queiramos dar asas à nossa criança. Procuremos a “reNOVAção”.
Mas digo-lhe que o seu espírito não tem essa precisão. Ele ainda é de criança. Afinal, só uma criança conseguiria a “Magia” de tão bem desenhar alguém em pouco mais de “quatro linhas e quatro (en)cantos”, como você conseguiu fazer!
E só ela, a sua criança, seria capaz de nos lembrar desse inteiro mundo afora por onde todos podemos velejar, livres “do temor da morte repentina, abrupta”, para nos deixarmos “surpreender com a vida súbita”, reencontrar o menino que mora dentro da gente e retomar o voo.
Como você, também sou “ofegante do verbo sentir”. Por isso, acredito que a minha adulta por acidente, continuará a aprender, com a essência pura do seu menino, a perdoar o tempo. Porque o facto é que a insanidade comiserativa do mundo permanece, independentemente das “explicações infinitas”.
Assim, quando o pensamento e o sentimento ‘brigarem feio’, como suponho que você diga vez por outra, quero continuar, também, por este mundo afora a fazer “poesia de mim”. Aquela poesia que “insiste diante de nós”, mesmo quando não a vemos. Ao invés de procurar num qualquer bar, como às vezes o adulto faz, conselho de cego que quer ajudar coxo a andar. Pois… isso é coisa de tolo, não de louco. E a poesia, a amiga que corre riscos felizes quando se deixa derramar nos outros, sabe que “os lunáticos sempre estiveram à frente dos racionais” (estes que, cá para nós, e eu sei que confirma, são os mais tolos). Sim, agrada-me e desejo esse “retalho de loucura”, de “loucura redonda”, que foge da “Liberdade cativa”, onde “o homem é o lobo do homem, ensandecido pela lucidez social”.
Tem razão. É assim como você diz, Paulo, “precisamos nos tornar ‘pós’-graduados na arte de viver”!
E é por tudo isto que eu também prefiro falar de sonho e de amor. Tal como para você, “minha principal ar(l)ma é o sonho”. E o amor.
Ah! O amor! Essa “conjugação a dois”, como barco que engana a lógica ao fazer a sua rota, porque é mesmo quando transborda que ele não afunda. Ao amor você também gosta de desobedecer em palavras, já vi. Para si ele não pode ser doce só na língua. Tem que ser doce no gesto. É um amor que não pode ser limpo, tem que ter muitos vestígios de ternura na mão. Um amor possível, de homem, feito de um chão sagrado, uma “Canção do anoitecer” e outras miudezas que são música na vida do seu bem-querer. Sim, você sabe como é bela essa “fragilidade de dois apaixonados”! Ou o amor de pai que carrega a filha nos olhos em cada lua de esperança, com “mãos que afaga a menina bonita”. E ainda o amor de quem tem “Caso sério”… Amor “querendo que os versos também movam outros lábios, desde que encantem o coração”. Acho que da tal de Poesia.
Gosto da forma letrada e nobre como abraça o amor. Para si, ele tem que andar nu, mas com a dignidade de uma estrela. Receba o meu aplauso porque, no amor, você é senhor.
Paulo, foi muito bom escorrer pelos seus versos adentro. Valeu a pena. “O papel ofereceu-me as pautas, para pôr o que sentia”.
Obrigada por esta pausa para viajar e existir na sua escrita - com aroma de maresia e sabor de saudade - e nela descobrir esse paradoxo profundo que nos constrói. Navegadores vulneráveis mas destemidos, capazes de nos deixarmos despertar por uma “provável… mente” sonhadora.
Antes de me despedir volto, uma vez mais, a olhar para a serenidade quente do seu livro. Está ali, sentado, com o orgulho de quem sabe que ficou bem na fotografia. Vestido com o seu silencioso azul, a roupa que escolheu para sair à rua e mostrar as coisas lindas que moram dentro dele. Agradecerei sempre por, afetuosamente, me ter confiado essa agradável alegria de ser a tecelã dos seus trajes. Foi um prazer e uma honra.
Sobre o nosso “Vasto oceano”, que as minhas singelas mas sentidas palavras sigam mar adentro e mundo afora, e se mantenham ancoradas no cais do seu coração.
Com profunda amizade e admiração,
Paula
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Recordo hoje, um dia em que a minha filha me surgiu com uma curiosa expressão da sua autoria, a propósito de um livro que andava a ler. Ainda que nada a propósito de religião, deixou-me a considerar que as suas palavras vieram mesmo a propósito. Disse-me ela que lhe parecia apropriado concluir, após a leitura do dito livro, que “o pão vem da árvore”. Ouvi-a e fiquei curiosa. Como é que o pão vem de uma árvore? Curiosidade minha não satisfeita, pois se foi sem quaisquer justificações.
Mas o pensamento não se me deu por vencido e procurei compreender o fenómeno à minha maneira. Por vezes, no meio do improvável, até existem acasos que nos fazem algum sentido. Afinal, encontramo-nos precisamente a viver uma época especial. E, enquanto cristãos, refletimos no tema da morte e da ressurreição e no que isso representa para nós…. Será que refletimos mesmo?
Tradições, comemorações e umas quantas outras questões se levantam quando tentamos perceber onde, no meio de tudo, fica a fé de cada um.
Fé, uma palavra pequena para um sentimento grandioso e que, por esta altura, vemos reduzida à Páscoa dos ovos de chocolate e de tantas iguarias, eventuais prazeres tão distantes da suposta contenção própria desta celebração. A Páscoa tão vazia por dentro como os tais ovinhos ocos de casca fina. A Páscoa tão distante de um tempo em que, quem sabe, talvez se acreditasse mais.
Aquela Páscoa em que o pão simbolizava vida; em que o pão, além de alimento para o corpo, era considerado também alimento para a alma em gestos de humildade, de bondade, de união, de partilha. E com estes se procurava a renovação. Em particular a renovação interior, o aperfeiçoamento de um modo de estar e de ser.
Acredito pois, então, que o pão possa mesmo vir da árvore, como afiançava a minha filha. É que as árvores da vida presentes neste mundo, desde a sua génesis até ao seu apocalipse, fazem-me sempre lembrar a alegoria perfeita da caminhada de cada ser humano.
Seremos nós como os olmos, dignos e confiáveis, a espalhar a magnífica beleza dos nossos ramos e folhagem ao olhar dos que connosco se cruzam? Ou como os fortes e perseverantes Carvalhos que resistem às intempéries do tempo? Ou ainda como os majestosos ciprestes de olhos postos no infinito a tocar as mãos da esperança? Ou teremos semelhanças com os vigorosos cedros que ladeiam as ruas e jardins da vida? Ou seremos tantas vezes como orgulhosos álamos, incapazes de se curvarem perante o sofrimento daqueles que padecem?
Árvores que procuram naturalmente a luz. Árvores com raízes profundas de firmeza e segurança, capazes de resistir às tribulações do seu percurso. Árvores capazes de dar frutos com verdadeiro significado.
A Páscoa de hoje não mostra produzir frutos dignos desse nome. Vive da aparência. E muitas árvores que existem parecem querer contar-nos a parábola do homem e da figueira plantada na sua vinha. São árvores sem vida que terminam cortadas nos lugares que vão ocupando inutilmente. O seu espaço, então deserto, é como o deserto na vida de tantas pessoas.
Porque é tempo de Páscoa, mais importante do que abundante banquete, diria ser maior outro repasto que nos sustenta. E talvez o deserto não fosse o desse silêncio em que cada ser se afunda pela dor, pelo medo e pela solidão. Mas sim o silêncio que se faz experiência de reencontro dentro de nós e nos conduz à aceitação das nossas verdades e à valorização das nossas limitações e daqueles que fazem parte da nossa viagem. E, se assim for, talvez a fé não esteja dentro de quatro paredes, mas sim no interior do coração de cada um.
Posso dizer-te, filha, que terias a tua razão. É da flor e do fruto que nasce o perfume de cada um de nós. É da árvore que vem o pão.
REVISTA VICEJAR
Existem vidas que se vestem assim. Como uma mentira. Vidas que se oferecem à sedução do sol para esconder as trevas frias que carregam por dentro.
Vidas como a dela.
Gostava de acreditar que era uma acrobata. Por isso, aquela ânsia, quase louca, em descobrir trapézios capazes de lhe desafiar todas as possibilidades. Acrobacias que só ela teria o mérito de concluir com distinção, como se o seu mundo fosse um palco onde pudesse sentir-se a maior atração da plateia que, no entanto, sabia invisível. Lá no alto, podia construir a ilusão de que toda a sua linguagem artística de circo era merecedora de verdadeiros aplausos.
Afinal, se fingisse ser heroína, se mergulhasse de cabeça em todas as habilidades impossíveis, talvez os medos lhe fugissem. E o espetáculo da loucura passaria a ser um cenário onde apenas os outros desfilavam como atores.
Mas bem escondida, estava a convicção tão profunda de que as paisagens onde se deleitava não serviam para mais nada senão para lhe aliviar a solidão que o orgulho nunca poderia aceitar.
A atenção salvava-a daquilo que não queria ver. Por isso corria, corria doidamente, garganta seca, olhar desvairado a brilhar como febre doentia. Não lhe importava o caminho, desde que o chão que pisasse lhe soasse à salvação do próprio abismo. Fingir a bondade, desimaginar a existência da maldade, inventar o amor como uma alegria suspensa a alimentar-lhe a expetativa de nunca se encontrar cara a cara consigo própria.
As janelas escancaradas da ruína que nela morava, podiam ser perigosas. Roubavam-lhe os sonhos. Magoavam-na. Não admitiria dissipar-se por entre as suas sombras sem história. Sempre lhe fora urgente medir o tamanho dos vazios com fitas feitas de flores e, com elas, adornar a escuridão.
Todas as certezas que no corpo lhe estremeciam, tinham a dimensão de uma porta fechada cuja chave somente ela ambicionava guardar.
Era a sua felicidade imperfeita com aquele travo doce que fere a alma.
Há mentiras que se despem assim. Corpos desabitados, sentimentos esvaídos, pesadelos que tocam as raízes da pele e nunca adormecem.
E a vergonha, uma verdade imortal que se nega até à exaustão.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Hoje, não sei se reconheces o som da minha voz mas, mesmo assim, vou falar-te. Vou falar-te devagarinho, como quem fala gentilmente para os olhos que, tantas vezes, me iluminaram e me fizeram ser força no tempo. Vou falar-te como quem semeia flores num jardim que insisto em cuidar e amar. Porque sei que me escutas com o coração e porque enquanto eu me lembrar, tu viverás.
Pergunto-me, muitas vezes, onde vais quando partes de mim. Se encontras no refúgio das tuas lembranças o riso onde as horas pareciam tão simples quanto o respirar. Ou talvez te descubra a dançar com as sombras felizes do que um dia foi presente e, então, talvez o silêncio já não seja o vazio mas um lençol invisível, tecido de saudades, uma oração muda de quem contempla o passado e venera o sagrado da nossa existência.
Sabe que mesmo quando te perdes de mim, quando não sabes quem sou, há uma ternura imensa a segurar-me o olhar. É que o perfume que mora nessa lonjura onde já te não chego, diz-me que a esperança é um raio de luz que descobre sempre o caminho de volta, numa viagem em que o coração reconhece o eco do que de nós, em nós ainda permanece.
Por isso, talvez, nesse limbo onde o tempo já não tem direção, por vezes o teu rosto é um sol que se atreve a nascer mais uma vez e onde tu, por um instante, recordas o nosso nome. Um sol que atravessa o meu horizonte, pousa nele com a doçura de outros dias e continua a contar-me todas as histórias que vivemos, como se apenas um leve sorriso teu pudesse ser o farol que me guia de volta à margem de mim mesmo. E vejo ali um sopro de nós. Ainda vivo. Ainda cheio de um aroma tão quente que nos sabe a amanhecer. Como nos dias em que os dias se abraçavam ao infinito.
Falo-te sim, meu amor, falo-te que não te perdi porque sei que o amor é nascente e, nesse breve encontro, os meus olhos são apenas mar porque tu voltas a ser casa. E é nesses momentos raros e preciosos em que o tempo parece hesitar, que o universo inteiro faz sentido. E eu acredito. Não num milagre - que esses já há muito se perderam em distâncias - mas no poder de um amor que transcende o imortal.
O amor, meu amor, é uma devoção que não pede respostas, apenas a presença. Porque amar na ausência é amar o que é eterno. E, por isso, meu amor, toco a tua mão, tão leve, que descansa na minha e falo-te baixinho, como quem canta à terra, com o sonho de que a tua pele, ao menos, me sinta. E toco a tua pele como quem procura água e seguro a tua mão como quem segura o céu. Sim, ainda estamos aqui, neste lugar invisível, um lugar onde, todos os dias, acordamos juntos.
É na tua alma, suspensa entre dois tempos, que reside a nossa eternidade.
REVISTA VICEJAR
"As histórias não são para quem as conta,
mas para quem as escuta."
Mia Couto (‘O Fio das Missangas’)
Ao longo do vale, banhado por traços cálidos de uma natureza viva, a estrada dobrava-se sobre si mesma como um rio que aprendia o percurso para o mar. A viajante caminhava vagarosa, com pés distraídos, solícita às preciosidades escondidas em cada detalhe do caminho.
Subitamente, surpresa, olhou a árvore. A árvore que não era apenas uma árvore. A árvore colossal feita de tempo, esculpida por poeiras antigas e chuvas esquecidas. A árvore, majestosa, que era um mundo inteiro de pé, a tocar o céu com dedos enrugados de tanto abraçarem vazios e as raízes, que nunca desistiram de nascer, afundadas na terra como promessas que convidam segredos.
A viajante percebeu que a árvore estava ali desde que a idade se vestia de infância. Olhos entrelaçados, quais artérias de um coração ancião, a contemplar com brandura a fugacidade do mundo humano. Uma testemunha imóvel de eras esquecidas.
Ao aproximar-se, a viajante sentiu em si uma ressonância, quase impercetível, que parecia emergir não de um qualquer som, mas de uma tessitura de memórias veladas, como se a árvore lhe concedesse o privilégio da sua voz. Encostou-se ao tronco e fechou os olhos para melhor se entregar àquele estranho enlevo. E o silêncio ao redor metamorfoseou-se numa espécie de murmúrio que só o coração é capaz de sentir.
-Bem-vinda ao abrigo da minha eternidade! Aproxima-te, sem receio. Quero confiar-te uma missão.
A árvore pareceu sorrir com aquele sorriso de quem tem em si toda a sensatez que os sábios guardam nas rugas cavadas das mãos. E continuou:
-Sabes, menina, deveras fui um dia pequena, uma ervinha sem nome, um pedacinho de verde que mal conseguia sonhar alturas. Tive tanto medo dos ventos que hoje me enlaçam! Chorei pelas flores que eram o meu único agasalho… Assisti ao desfile de muitas estações que trocavam de roupa como quem troca de ilusão. E cada primavera me trazia sempre a fantasia do que julgava absoluto.
Depois, vi caminhantes aproximarem-se com olhos salgados e corações aflitos. Alguns deixaram sementes junto às minhas raízes com esperança de que algo feliz neles florescesse. Outros reclinaram-se no meu corpo à procura de alívio para as dores da alma. Vi-os enganados, carregados de pedras para plantarem. Guardo ainda os seus vestígios, as lágrimas, as tristezas que nunca se fizeram gritos, o peso dos seus fracassos escritos numa história que não desejavam, com medo de lerem o que ficou para trás. Solidões que não conseguiam compreender.
E nada passou verdadeiramente, tudo permaneceu no meu íntimo.
Por isso, hoje mais velha do que os teus sonhos, posso dizer-te que aprendi muito com os erros dos homens. E assim me fiz de silêncios que nenhum vendaval ousa romper, guardiã de muitas estrelas extintas que ainda iluminam a noite.
Escuta, pois, os mistérios que te vou contar…
A vida é uma lição de entrega. Crescer não é apenas ergueres-te ao alto. É igualmente enraizares-te profundamente no invisível, onde o alimento mais precioso é a paciência. Abraçar tanto o frio cruel como o calor ardente, resistir às tempestades ao dançar em harmonia com as ventanias incansáveis. E, com o passar das estações, aprender que, mesmo com os braços estendidos em direção ao infinito, é em cada aqui e agora que reside a tua força.
Um dia virá o outono e, com ele, a sabedoria do desapego e descobrirás que o passado é apenas raiz. Uma raiz que não prende. Alimenta.
E enquanto a árvore continuava a sua confissão, a viajante atentava naquela melodia que ecoava, feita de luz a mover-se por entre os ramos.
- Neste desabrochar de um novo ano, peço-te que olhes para os teus passos com a ternura de quem observa o alvorecer de uma pétala. Não julgues a terra que atravessaste, foi ela quem desenhou as pegadas que te trouxeram até aqui. E cada marca na passagem é a assinatura da tua coragem em continuar, mesmo quando o horizonte parecia desvanecer-se. Também não temas o desconhecido. Afinal, são as águas que caem sem aviso que trazem sempre consigo um pacto de renovação.
Aquela lição chegou como uma brisa amena à alma da viajante.
E ela ousou perguntar:
- Diz-me… Como encontrar a primavera se o meu coração está tão preso ao frio?
A árvore demorou, não respondeu de imediato. Deixou que o eco da pergunta terminasse de se ouvir. Depois, com a calma de quem sabe que todas as palavras se escutam a si próprias, respondeu:
- A primavera não é uma estação. Acontece, menina, no momento em que decides ser semente, mesmo sem veres o chão e sem avistares o céu. No instante em que aceitas que a chuva não te molha, mas te reinventa. Não corras atrás das flores; faz-te nutriente e elas virão.
A viajante sorriu. O sorriso de quem aperta a mão de um velho amigo antes de partir.
A estrada soava-lhe agora como uma delicada e perfeita canção. A distância que o olhar alcançava não se transformara, mas a viajante caminhava de forma diferente. Caminhava como quem sustém a alvorada no corpo. Como quem guarda o encanto no peito e um pedaço de firmamento dentro do olhar. Decidida a não permitir que a beleza voltasse a ser apenas um instante, mas um lume doce que lhe cabe guardar, a viajante caminhava como quem leva consigo um fruto que é futuro.
Atrás de si a árvore ficou, mais uma vez, silenciosa.
Nessa mudez eterna, a revelação de uma simplicidade sublime, mas tão presente como a nitidez de um sonho inesquecível, a refletir-se no coração de quem ousasse escutá-la: recomeçar não é apagar tudo o que fomos; é deixar que as folhas caídas sejam alimento para o que se aventure nascer e perceber que o belo, uma vez sentido, nunca se vai. Habita onde a alma escolhe fazer morada.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Havia um rio a correr-lhe sobre os pés. Seria de água ou de vento?
Era um rio sem formas conhecidas, feito de segredo e de um silêncio onde não existia medo. Talvez trazido pelo suspiro antigo de uma montanha ou de uma saudade velha sem nome, de algo que não se vê mas que se sente no corpo.
Esse rio não sabia que era rio. Sabia, apenas, que precisava de correr e que tinha, por algum capricho, escolhido os pés de Almair. E este, calado, não entendia se o rio era de água ou de vento. Mas isso não importava. Sentia o frio do rio na pele e o rio, por sua vez, sentia o calor dos seus pés, e ambos se olhavam, sem pressa. Porque o rio era um espelho do homem.
Esse rio, que vinha de um lugar distante, era um rio que nascia com Almair. Era o rio da sua própria vida, que ele nunca soubera exatamente onde começara nem onde acabaria. O rio das suas lembranças, aquelas que fluem sem aviso, sem que Almair perceba que as guarda dentro de si, como líquidos secretos que lhe correm entre as veias. Memórias de todas as suas incertezas e dúvidas, dos sucessos e dos arrependimentos, dos amores e das dores. E das perguntas incessantes que se tornam névoa, fazendo com que ele se perca em todas as respostas de palavras não ditas. Tudo aquilo que ele não compreende e que, no entanto, o empurra para diante e que, invariavelmente, se vai desfazendo à medida que o novo tempo se apaga entre os braços das horas.
O rio que surgiu, subitamente, sobre os pés de Almair, como se trouxesse consigo uma carta de despedida, diz-lhe que é também a espera, a estrada que ele ainda não caminhou. Ou o futuro que se dissolve na chegada do presente, num convite para a aceitação do agora, e lhe devolve a certeza de que o que está à nossa volta não é o que nos define, mas simplesmente aquilo que nos permite ser.
Os seus pés, neste momento imersos neste rio invisível, hesitam entre o toque da água e a carícia do ar, como se o coração, por um instante, fechasse os olhos para conseguir respirar. E ele sabe que esse rio, que não vinha de lugar nenhum mas de todos os lugares, feito de nada e de tudo, é somente a transparência da vida que lhe corre pelos dedos da alma.
Foi assim que Almair se reencontrou. Não no rio. Mas na quietude daquela invulgar e excecional presença vestida de ausência que, ao ser escutada, lhe revelou a sua verdadeira voz.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Sentado sobre o banco de pedra, António observa o horizonte com olhos que mergulham nas distâncias infinitas onde lhe respiram as memórias. Olhos habitados por luas antigas, tão cheios de passado, que abraçam o tempo com a mesma saudade com que a terra descobre vida depois das grandes chuvas.
E o rosto funde-se com a tarde quase morna, numa luz que parece ter em si a ternura das mãos da sua mãe. Era ela, sim, quem ali o fazia escutar silêncios carregados de vozes, em pensamentos sem pressa. Capítulos inteiros de uma existência longa. E ele sorria, num movimento leve, ao lembrar-se da voz cintilante dela, a mulher que fazia dos dias cinzentos um bordado de cores, apenas no mais puro ato de amar um filho.
Hoje, António traz na leveza dos ombros a infância onde foi um menino do vento a correr descalço pelos campos, a pulsarem-lhe no peito as emoções férteis, num misterioso paradoxo que só os que viveram com pouco podem compreender.
Talvez por isso recorda, neste momento, o sopro de uma pobreza que tinha mais chão do que fome. Com a sua mãe, que desconhecia tanto da lonjura do universo, mas sabia ler a alma das coisas como ninguém, António aprendeu a medir a felicidade pelas simplicidades pequenas, ouvir o que morava nos gestos escondidos: o rumor das folhas, o respirar das águas, os sons recolhidos do amanhecer, as histórias sussurradas no final das tardes, o cheiro quente de um pão partilhado, o calor de mãos que nunca prometeram mais do que podiam dar.
As suas primeiras certezas transformadas nos tesouros que carrega no coração. Todos os lugares onde a pobreza não se escrevia como ausência, mas como uma presença que cabia no espaço curto da imaginação, dentro dos limites perenes do amor.
Mais tarde, as estações foram feitas de pedras. Caminhos onde a terra branda endureceu debaixo dos pés sozinhos, pedaços de vazio a ditar uma fome que não era apenas de pão, mas de futuro. O trabalho árduo, a angústia de não encontrar o amanhã, o peso das noites frias que nenhum brilho de estrela podia preencher, encolhido numa dor que não sabia gritar, abraçado à fé que clamava por respostas.
A força da resistência com que desaprendeu o conforto do que sonhava eterno, e aprendeu a ser chão para si mesmo e a plantar raízes duras sempre que o vento insistia em arrancar a esperança.
E um dia chegou ela. A menina dos olhos cor de mar. Sentiu, António, que o mundo se lhe tornara líquido! Ela, espírito que era porto e farol, a segurar os remos com mãos firmes e ternas, como se tivesse nascido para ser água no deserto da sua alma.
Destinados a uma dança que ele não hesita em chamar de bela. Não porque tenha sido isenta de passos difíceis, mas porque, de braços dados, construíram uma casa onde os dias tocavam texturas, os móveis eram apenas um poema colhido pelo orvalho das manhãs e o silêncio, tantas vezes, a linguagem mais doce. E quando o tempo lhes impunha marés, juntos faziam-se rio e margem pela correnteza do destino. A prova de que o amor não precisa de épicos, basta que seja constante, como o fluxo do céu que ela ainda pousa nos olhos.
E, depois, acima de tudo, a sua fé. Não uma fé ruidosa, mas aquela que se revela na quietude de um gesto, na perseverança de quem sabe que há um sentido para tudo, mesmo quando o porvir se oculta nas pregas da viagem. A fé que sempre foi a certeza. A sua forma de escrever o desconhecido sem precisar de mapas.
Eram estas as lembranças que lhe chegavam agora. Aves que regressam à árvore onde nasceram, reflexos de todas as paisagens que o habitam numa combinação de fragilidade e coragem, de beleza e compaixão, de finitude e eternidade.
O homem que contempla o horizonte. Monumento vivo que parece mais do que humano. O homem que é tudo de uma só vez: o menino que corre, o jovem que ama, o ancião que sabe e acredita, numa oração serena de quem lê um livro invisível, escrito pelos dedos de um Criador, e transforma a solidão em algo sagrado.
O homem que contempla o horizonte como uma ponte entre muitas eras e que, nas noites passadas debaixo de constelações inquietas, encontra os traços de um Deus que não se revela em palavras, mas no silêncio do milagre.
Neste instante único, entre o mundo que passa e o mundo que fica, António, talvez uma semente plantada para ensinar aos outros a arte de florescer em qualquer terreno, lembra-me que a grandeza da vida não está na ausência de desafios, mas na forma como os enfrentamos e lhes damos o nome de poesia.
E que isso é tudo o que verdadeiramente importa no espaço imenso de um coração que saiba amar.
Ali estava ela. Estátua viva do instante presente.
Ali, no alto do muro, sobre os velhos telhados de musgo e poeira, abraçados ao céu, onde os homens batizam de real o que o vento suspira.
E tão poucos reparavam naquela pequena centelha perdida de eternidade!
Senti-lhe as asas, silenciosas, impregnadas de liberdade. Escutei-lhe os olhos. Olhos nascidos para a vastidão. Olhos de quem lê um livro escrito com dedos de brisas e murmúrios. Traziam dentro deles vozes inquietas do coração humano, verdades vistas para além da pele das coisas.
Avistou mais do que formas ou paisagens. Viu os labirintos secretos que cada um transporta dentro de si. As almas que se movem pelas vielas, os passos apressados dos que carregam o peso invisível da urgência, os sorrisos entrecortados pelos soluços de quem já não sabe o que é repousar.
Entre terra e águas, descobriu crianças que riam com a despreocupação que ainda não aprendeu a palavra amanhã. E também o olhar dos velhos, fundo como poços, onde se refletiam memórias de amores perdidos.
Um homem vestido de solidão, sentado à janela, a olhar o tempo como quem busca as últimas respostas.
A mulher que subia a escadaria e sorriu ao instante que lhe tornou o rosto num campo de girassóis.
O amor a dançar em olhares roubados no jardim da praça, e a dor, afiada como um pedaço de vidro, na face de quem segurava um adeus entre os lábios.
O rio, dobrado sobre as duas margens, criatura viva a esconder segredos nas suas correntes. Sobre o seu ventre líquido, ancorado ao correr das ondas, um pescador remendava redes transbordantes de ausências. A boca, um poema de confiança indócil, insistia em rasgar as nuvens.
A rapariga, junto à ponte, à espera de uma promessa esquecida, acariciava uma pequena flor murcha, com as mãos feitas de sonhos. Pensamentos adormecidos em retornos impossíveis, lágrimas convertidas em versos que eram místicos portais. E transformava a saudade num altar de esperas.
Mais além, um menino, riso cor de amanhecer, corria com um barco de papel, a perseguir uma maré que não chegava, e brincava com o futuro como se ele fosse leve, alheio à gravidade que assombra os adultos.
E afinal, o que é a existência dos homens, senão esses trémulos voos esquecidos da sua própria leveza? Asas invisíveis que desaprenderam de tanto quando amarraram os pés a chãos inventados!
Na sua viagem entre o palpável e o imensurável, a gaivota sabe que o mundo inteiro é uma canção, e ela, apenas uma nota efémera, essencial, na melodia do dia.
Porque ali, com a vontade a hesitar entre o chão e o céu, nos olhos a compreensão que só aqueles que se permitem observar podem alcançar, ela contou-nos sobre muito mais do que um horizonte. Falou-nos do homem que carrega o fardo do ontem, mas que segue em frente porque acredita na ventura do destino. Da mulher que transforma a perda em poesia. Da criança que ainda corre livre da profundidade dos medos.
Cada um deles a tentar lembrar-se do que é estar realmente vivo. A tentativa que faz o milagre.
E com asas que se abriram no abraço perfeito de um gesto que foi quase suspiro, como um reencontro com o amante, ela abandonou o muro para ser novamente parte do céu. Na voz, a essência do que permaneceu, a lembrar-nos que não importa quão profundas sejam as nossas prisões, a esperança está sempre adiante.
Tudo o que é preciso é abrir as asas do coração e recordar que fomos feitos para o infinito.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
A noite chegou e com ela a solidão. O silêncio parece ser sempre mais claro à noite, como um ditador cruel que nos força a olhar para aquilo que não queremos ver.
Agora que os dias se passaram, meu amigo, e o peso do meu uniforme de guerra foi deixado por aí, num qualquer canto da casa, sinto a urgência de te ter ainda mais próximo. Porque o que antes era batalha constante, agora é apenas... tempo. Tempo demais, talvez. E o espelho reflete um homem que já não sabe se está pronto para viver o que está à frente ou se prefere apenas fechar os olhos e deixar que o tempo passe.
Tempo mais do que suficiente para perceber que o que estava ali, à minha frente, na linha de fogo, era mais fácil de lidar do que este silêncio que agora me invade. É o que acontece quando a guerra termina e ninguém te ensina o que fazer quando chegou a hora de parar.
Não, não estou a ser dramático. Só que, depois de tantas batalhas, começo a perceber que a maior guerra talvez seja contra a inércia. A procura de uma razão, já não para salvar o mundo, mas para dar sentido ao próprio respirar.
Lembras-te da última vez em que me senti importante?... Agora, vejo-me sentado neste desconcerto, com as mãos a acariciar a lembrança das conquistas e dos momentos épicos, enquanto lá fora, cheira simplesmente a inverno. Longe de mim, as ruas estão cheias de gente, cada um com a sua pressa, os passos a voarem em direção a qualquer coisa que desconhecem. Mas todos seguem. E eu, aqui, à margem, a pensar se será este o verdadeiro combate. Aprender a descansar entre as sombras, lutar contra a vontade de desaparecer. Ficar e ser. E eu vou ficando, velho amigo. Eu vou ficando. Ficando a pensar como é estranho continuar a ser um homem, nesta missão.
A verdade é que, até hoje, nunca me dei conta do quanto a minha vida foi preenchida por pressa. Não sei se foi por mim ou se o mundo mo exigiu. Mas agora, sem propósito imediato, tudo me parece estagnado. Vejo-me a pensar e a perguntar o que estou realmente a fazer aqui. Como se fosse possível encontrar significado depois de tanto tempo dedicado a correr em círculos! Mas cá estou, diante de ti, em busca de respostas nas tuas palavras, que são só as minhas palavras a ecoarem-me na mente.
Por isso, não sei se posso tratar isto como uma conversa, um diálogo, para não me perder no abismo daquilo que sou. Ou de o julgar uma tola tentativa de resgatar o que parece estar sempre a escapar-me por entre os dedos. Sei apenas que nunca é suficiente.
Ou talvez eu entenda estas palavras que partilho contigo como um refúgio onde posso olhar para o meu próprio reflexo sem me assustar tanto. Não porque me revelem alguma verdade absoluta, mas porque, de alguma maneira, ganham mais significado quando as coloco todas juntas e, assim, me ensinam a lidar melhor com o vazio.
Sabes, por vezes acordo e não sei o que fazer. Olho para a janela e vejo o sol a nascer, como sempre fez, e sinto aflição. E há dias em que me apanho a olhar para o nada. Não estou a exagerar. Há momentos em que o espaço à minha volta me engole com um silêncio tão profundo que até os meus próprios pensamentos parecem ter medo de se revelar.
Mas hoje, decidi sair de casa. A princípio, achei que o ar fresco me ajudaria a clarear a mente. Mas, ao caminhar, deparei-me com algo peculiar. Vi um homem com os olhos cansados, como se o peso do mundo lhe tivesse agarrado os ombros, de assalto. Um homem com os olhos cansados, como eu, e com as mãos vazias, a olhar para o horizonte que, antes, parecia promissor e que agora só oferece uma paz desconfortável. Passei por ele e houve alguma coisa, no seu olhar, que me tocou. Não estava triste, mas perdido. Como eu. Perdidos num mundo que exige que estejamos inteiros e mais vivos.
Nos olhos desse homem eu vi os meus quando olho para o espelho e não encontro o que me agrade. Há ali mais certezas de quem fui do que quem sou. A imagem que me olha de volta é a de alguém que já não reconhece as suas marcas. Cada linha que me descaracteriza a pele, cada memória que teimo em carregar, parecem mais um peso do que uma história. E eu não queria sentir-me assim, uma sensação de desistência disfarçada de serenidade, a escorregar pelas horas como uma capa velha desgastada, sem conseguir livrar-me dela. Não queria sentir-me assim, como um erro que aprendo, em cada dia, a chamar de vida.
Mas será isso, o sermos? Um conjunto de falhas que tentam manter-se unidas? O mundo pede-nos uma máscara limpa, sem fissuras. Uma máscara imposta como uma segunda pele, que esconda o caos que nos abraça a cada respiração. Vejo que, por dentro, todos somos feitos de pedaços dispersos a tentarem ser inteiros. E eu, que já nem sei quantas vezes falhei, começo a acreditar que talvez o erro não esteja em falhar, mas em querer fingir que a emoção ainda é possível.
Por falar em emoção… chegámos àquela época do ano outra vez. O Natal. O final de ano. Para muitos, a luz e a comemoração. Mas para mim… bem, para mim, simplesmente a carga que me sufoca. Não, não me interpretes mal. Não sou um monstro que odeia o Natal. Não sou um homem frio, incapaz de apreciar a alegria que esta época traz. É só que... é só que, subitamente invadido pelo brilho de todas as luzes, pelas pessoas apressadas a comprarem presentes, pelas músicas a tocarem em cada esquina, quando as expectativas e os votos de 'feliz ano novo' me soam mais a uma obrigação do que a uma celebração genuína, a sensação de claustrofobia é imediata. Tudo chega como uma onda, todos celebram a maré e eu sinto-me engolido. Eu sou só um homem à deriva que observa, de longe, sem entender muito bem se estou a nadar ou a afundar-me.
Mas tu já sabias disto, não é, meu amigo? Claro que sabias. Sabias que, quando o final do ano chega, eu me escondo. Enquanto o mundo festeja, eu só quero celebrar a pausa onde moro entre as memórias do que fui e os ecos do que sou.
Recolho-me a um canto, longe da urgência da felicidade, um lugar silencioso onde o barulho das celebrações não chega e onde ninguém me reclama um sorriso ou uma expressão de alegria. Onde o Natal é apenas uma data e o final do ano, somente uma passagem. E pasma-te! A minha solidão diz-me que talvez haja mais vida dentro dela do que na algazarra dos outros, acreditas? Porque fugir deles não é fugir da vida, é apenas fugir de tudo o que me pedem para ser. As festas, os risos, os abraços…
Sabes, meu amigo, a verdade é que eu tento. Tento evitar a pressão que chega de todos os lados. Tento fazer de conta que é apenas mais um dia qualquer. Mas, mesmo assim, não consigo escapar ao fardo da época. Até o olhar das pessoas parece carregar uma pressão silenciosa de que todos deveríamos estar felizes, preenchidos por alguma coisa maior! E eu... eu não me sinto assim. Eu só me sinto cansado. Cansado de ser a exceção à regra, como se fosse aquele que não sabe fazer parte da dança. Cansado de tentar ser aquilo que não sou e de tentar caber naquilo que não me cabe. Afinal, o que é tudo isto, senão uma lembrança disfarçada de alegria? Lembrança dos tempos que se foram, das pessoas que se perderam, dos momentos que se desvaneceram como neve ao sol. E o mundo tenta forçar-me a uma felicidade que já não sei sentir.
Mas olha, mesmo assim, eu sou bom a descobrir humor até nos piores momentos.
Deixa-me contar-te uma história. Ontem tive de fazer o meu próprio almoço. Não estava com muito apetite mas, ainda assim, resolvi preparar um ovo estrelado. Um simples ovo estrelado. Mas a história não é tão simples. O ovo não queria colaborar. O óleo não estava quente o suficiente, a frigideira não estava no ponto, o óleo a escorrer por todo o lado, como se tivesse mais pressa de sair da frigideira do que eu de o aquecer. E o ovo? Ah! O ovo parecia ter vida própria! Tentou escapar-me várias vezes, como um inimigo traiçoeiro que se recusa a ser domado. Às tantas, o ovo assemelhava-se mais a um ovo escalfado em pânico do que a um simples ovo estrelado. E a frigideira tornou-se um campo de guerra. Eu, coitado, um soldado sem armas, a tentar salvar o que restava do almoço. E o que me restava? Olhar para o prato e rir. Porque se há uma coisa que a vida me ensinou até aqui, é que se o ovo não cooperar, pelo menos o riso mantém-me são.
E sabes que mais? Não me lembro de um único momento na minha vida em que tivesse dado tanta atenção a algo tão pequeno. Fui obrigado a aceitar que o ovo estrelado era, no fundo, uma metáfora da minha própria existência. Todas as tentativas que, no fim, não saem como planeadas. E ainda assim, tu comes. Porque, no final, comer o ovo é a única coisa que te resta. Como tudo na vida. Tentamos controlar as coisas, mas elas acabam por ter a sua própria vontade. O ovo, a vida, a morte… todos têm, de alguma forma, essa arrogância de se rebelar contra nós, como se já soubessem que somos apenas soldados na sua dança impossível de comandar. E transportamos, em cada dia que passa, uma sensação de desconforto.
Por falar em desconforto, lembro-me também de uma outra peripécia que me aconteceu há uns tempos. Eu tinha guardado, durante meses, uns sapatos bonitos. Estavam dentro de uma caixa, em cima do armário, à espera do momento certo. Um momento de celebração, claro. Quando o momento finalmente chegou, coloquei-os nos pés e... Bem, os sapatos eram bonitos, mas não serviam para o meu tipo de vida agora. Pareciam feitos para uma pessoa mais jovem, mais ágil, mais… em combate. E os meus pés? Os meus pés pareciam querer gritar ‘não, obrigado’, como se cada passo fosse uma tortura. Caminhei como se tivesse uma pedra dentro dos sapatos e, no fim, os pés estavam completamente derrotados. Quando tirei os sapatos, eles continuaram lá, ainda bonitos, mas a minha perceção deles mudou. Já não eram para comemorar. Eram um apontamento a recordar-me que os tempos de celebração tinham ficado para trás. Agora, as sapatilhas passariam a ser o meu conforto.
vida tem uma maneira estranha de nos surpreender! Foi assim que soube que o descanso tinha chegado. A fase do guerreiro acabara. O campo de batalha enchia-se da minha ausência. O que restava era o tempo para olhar para os sapatos e para os ovos mal feitos, rir um bocado e tentar respirar. O que restava era uma pausa constante entre duas respirações. Ou, quem sabe, uma pausa tão grande que quase me fazia desaparecer na paisagem. Esta quietude que me consome, como se eu estivesse a ficar invisível. Já me perguntei várias vezes se não estou, de facto, a desaparecer aos poucos. E tu és uma parte de mim que ainda resiste a toda esta desagregação.
Agora, para terminar e deixar-te também a ti descansar, vou fazer-te uma confidência. Daquelas que só se dividem com os amigos como tu. Peço-te que não tenhas ciúmes. Olha que há pouco o que invejar na miséria de um homem.
Sabes, meu amigo, há uma mulher… Ela está lá, à distância. Por isso, é uma presença que não exige nada de mim, que não me pede para ser mais do que sou. Às vezes, quando me sinto perdido, quando a mudez da minha casa se torna pesada demais, é a imagem dela que encontro. Não a vejo, não a toco, nem sequer a ouço e, no entanto, essa imagem chega até mim como um bálsamo. Tem uma calmaria que me acalma, um tom sereno que parece saber exatamente onde a minha alma se perde.
E sabes lá tu, mulher, o quanto me aconchega sentir-te, o quanto o teu silêncio é a paz que procuro! Não há julgamentos, não há palavras pesadas, não te demoras em respostas. Não há tentativas de consertar o que já não tem remédio. Tu escutas. E isso já é o suficiente para que eu ainda me sinta quase inteiro, como se a minha voz, já rasgada e rouca, fosse algo que merece ser ouvido, mesmo que só por ti.
É estranho, sabes, meu amigo? Como alguém que está tão distante pode ser tão presente! Eu, que nunca fui bom a encontrar as palavras certas, que nunca soube como me entregar sem medo, com ela, sou apenas uma canção que sai sem querer. Canções que, confesso, nunca teria coragem de cantar a ninguém. O tom da minha voz, agora cansada, canta para ela. Canta para alguém que nem sabe da melodia, mas que, de algum modo, faz com que o meu espírito cante. Ela, que talvez nunca tenha sabido o que me faz sentir tanto, mas que, ainda assim, é uma espécie de tesouro distante, intocável, onde posso, por instantes, pousar o meu coração.
Ah! Como eu gostaria que soubesses, mulher, o quanto és para mim essa música sem pressa, sem exigências! E saberias que talvez o meu breve descanso venha disso. Talvez o meu parco descanso seja aceitar, finalmente, que o que eu procuro está em ti, mesmo que nunca o possa ter.
Acho que, hoje, meu velho amigo, estou a tentar entender o que restou de tudo o que vivi e tudo o que resta de mim. Não me interpretes mal. Não estou arrependido nem sou desagradecido. Estou só, como já te disse, perdido. E todos precisamos de alguém com quem falar em silêncio ao ouvido, num diálogo interminável, para questionarmos todas as escolhas, dúvidas e desejos e perguntar-lhe se ainda fazemos parte deste grande espetáculo da vida.
Como se diz por aí, agora sou apenas um guerreiro em descanso. Bem, espero mesmo que sim, porque, sinceramente, a única coisa que me resta é essa frase, para me consolar. E, porque no fundo, tenho bem consciência de que nesta breve linha do tempo, somos afinal… instantes! Apenas instantes.
Por isso, amigo, um dia destes, quando me cansar de todos os pensamentos que me ocupam, vou sentar-me a olhar para o céu, sabes? Não vou procurar respostas nem tentar entender os mistérios. Só vou olhar para o céu, como se fosse a última coisa que me resta fazer. Porque, no final, a paz, talvez seja só esta aceitação de nada saber. E eu, finalmente, terei aprendido a descansar. Estás a ver? Quem diria, não é?
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Há silêncios que gritam mais alto do que palavras. Os que te desenham na alma as marcas invisíveis onde o desalento finca raízes.
Há pesos que não são visíveis…
E há momentos em que o peso fere.
Não é fraqueza reconhecer que dói - é destemor. O atrevimento de olhar para a alma ferida, o coração cansado… Entregar energia a quem te devolve sombras. Carregar bagagens que não te pertencem. Gestos vazios como tempestades em noites sem estrelas.
Amamos mal. Primeiro aos outros, depois a nós mesmos.
E o coração aprende a bater com cuidado…
Mas a felicidade não é ausência de dor. São os que carregam cicatrizes que melhor entendem a vida.
E a vida - esse mistério infinito - não espera perfeição.
Pede apenas que sejamos inteiros. Que as pedras não nos roubem a vontade de nos levantarmos, que os desertos não apaguem a memória de como é o correr da água.
Pergunta-te: e se a maior força estiver em aceitares a fragilidade?
E se o que magoa não for castigo, mas a prova de que ainda estás vivo?
A tua alma não é pequena porque sofre.
É vasta porque sente!
E é imensa porque escolhe, todos os dias, continuar.
Continuar a escrever no desabitado uma nova narrativa,
com páginas onde a coragem é protagonista.
Por isso, que a faísca da pequena luz, mesmo tímida, te ilumine.
Tenta outra vez. Por ti.
E recomeça.
Porque recomeçar não é apagar o que passou,
é aprender com as lembranças do que te rasga, a escolher algo novo.
É limpar o coração dos venenos,
e vê-lo a erguer-se para uma terra onde não precisas de aplausos.
Não precisas de permissão.
Precisas apenas do que está aí dentro:
o arrojo de seres absoluto, mesmo quando nada parece suficiente.
A bravura de dizeres não ao que te mata.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Sentou-se no banco da estação perdida entre as névoas brancas da paisagem. O sol a descer na lonjura do horizonte. Dentro dela, o vidro das horas que passam lentamente e o vagar doente dos minutos leves que nunca chegam. A voz enterrada como uma semente sufocada em solo estéril. A garganta seca a lamber os pequenos abismos dos homens, com gestos doridos como murros no sentido difícil de viver. Assim, a ser gente, com as feridas abertas a sangrar luz por um firmamento que não as sente.
Estava cansado, o coração. Tinha os olhos exaustos de tanto sentir. Fatigado do sal amargo dos dias, das muitas máscaras sem rosto, dos gestos despovoados a fazerem eco pelos espaços, das palavras mortas sob as montanhas de tantas vaidades, dos pés em águas turvas de quem pensa que dança em mares grandiosos, dos naufrágios sobre a areia a desenharem cicatrizes no peito da escuridão, dos verbos mais importantes da vida partidos ao meio como espelhos vestidos de cinzas, sem pássaros no céu. Cansado da respiração áspera das coisas que não se movem. Precisava de serenidade, o coração. Queria ser árvore de raízes curtas para pisar uma terra de poeira livre, sem memórias.
Chove dentro dela uma sede que desconhece… Ah, se o coração persistisse, atravessasse o impossível e pudesse escutar os versos silenciosos de outra vida quando ninguém está a olhar!
Pensou, então, que talvez não fosse o mundo que lhe pesasse, mas o próprio fardo de não o esquecer, como os rios que não sossegam de correr.
Foi então que o coração, mais atento, pousou o corpo naquele momento idílico de um fim de tarde a soar a despedida de ano velho. E nesse fim de tarde, por fim, sorriu de novo. Porque havia um outro gosto de vazio no ar. Vazio de tudo o que é mau e que o vento insistia sempre em trazer. Naquela tarde, havia um perfume de promessas no peso dos sonhos que podiam ousar voltar a nascer. Um grito a sorrir no ventre do silêncio, algo de muito antigo nas novas margens do tempo. Um teto de astros que se tinha perdido nos leitos de pedra e desertos.
No ruir das valsas derrotadas, um canto a ensaiar o seu retorno, para não esquecer a eternidade!
E no último poema daquele fim de tarde, qual criatura que teme a claridade, o coração fingiu ter sono só para esconder o sonho de estar de novo acordado. Algo de que já se tinha esquecido há muito.
Ela ali, sentada no banco da estação perdida entre as névoas brancas da paisagem… E o comboio, guardião discreto de segredos antigos, repousa na quietude, em jeito de pintura. Como se o tempo tivesse feito uma pausa para se contemplar. Ao redor, as pessoas são molduras vivas em suspensão. Não há pressa aqui porque o tempo é velho e paciente.
Em cada detalhe, a nota de uma sinfonia tão natural!
Olhares que fixam o passado escondido entre as montanhas aventuram-se para longe, para além das linhas de todas as fronteiras, a desvendar, curiosos, o futuro.
Uma criança encosta o rosto ao vidro da janela e entrega-se à maior criação do seu pequeno universo: desenhar rabiscos na marca da respiração. No colo terno e protetor da mãe mora um herói, em tamanho pequeno, que talvez procure alcançar o inalcançável das grandes aventuras.
Adiante, o idoso que ajeita o chapéu, num ritual de honra, antes de beijar a mão estendida da mulher amada, como se segurasse a ternura delicada entre os dedos, numa esperança ainda não confessada. Mas não há urgência no seu toque, apenas uma espécie de devoção de quem sabe aguardar, com equilíbrio, pelo colo do amanhã.
Mais além, o filho homem que se despede do pai, porque o futuro o chama. Um abraço quente de quem não diz apenas adeus com a saudade forte do apego, mas de quem olha igualmente para trás, com a gratidão que carrega no espírito. O que ele lhe ofereceu nunca se perderá.
E há ainda o amigo que esconde a lágrima na leveza do sorriso. Testemunha a hesitação do companheiro de anos, que abandona o seu porto seguro para tocar o imprevisível. E dos seus olhos nasce um espelho a confirmar que o porvir pode ser uma abstração e tudo será possibilidade.
Entre janelas abertas também existem destinos sem escolhas. Faces que observam a vastidão, com fome de significados. Rostos de quem sente que, às vezes, cada direção é feita somente de atos de coragem e que o existir é só a passagem de uma página com assinatura efémera.
Para lá de tudo, o som dos passos sobre a terra e todas as almas ligadas por fios invisíveis, sobre uma ponte frágil entre a partida e a permanência.
Um comboio que carrega em si mais do que meros passageiros. São baús de confidências não ditas. Sonhos em gestação. Por isso, nos mistérios cúmplices desta estação, todos se reconhecem de algum modo. Porque a vida é mesmo isto: um comboio que chega e que parte sem nunca se despedir por completo.
O coração ouve, mudo, todos esses murmúrios que ecoam confissões roubadas à vida, entre palavras a contar histórias inteiras sem precisarem de voz. Pessoas a aguardar pelas passagens inevitáveis da existência com a fragilidade e a beleza da marcha constante. Cada paragem é o caminho antecipado que a vida exige ou a pausa para respirar paisagens interiores. Fragmentos convertidos em novas sementes.
Envolto em brumas de vapor, o comboio descansa na estação como quem hesita antes de um passo definitivo, rumo ao futuro invisível que o chama com a sua voz quieta. Parado, ele é o segundo que antecede cada decisão.
Depois, solta o último suspiro e começa a deslizar numa melodia metálica e melancólica. O coração inclina-se para o escutar… O que realmente o move é o que os passageiros transportam dentro de si. Caberá a cada um a textura do percurso e a forma como cada curva, na linha da viagem, ficará gravada no seu íntimo.
A estação torna-se um sussurro distante, mas a sua essência permanece. Como a vida, é um lugar que não nos deixa sem nos transformar.
À volta, num recolhimento que aconchega, a aldeia parece dormir enquanto o sol beija a distância com tons dourados, como se o momento carregasse séculos nas mãos. Há algo de eterno na simplicidade do instante… Uma canção adicionada à poesia deste devaneio!
E é difícil ao coração compreender se é o fim de algo ou o início de tudo. Talvez acredite que sejam ambos.
No final, ela entende que da nuvem seca renasce outra chuva, mais limpa. Um cântico a erguer-se débil, mas insubmisso: o vazio é apenas o berço de tudo.
E na paz que a acolhe, sabe existir uma lição de fogo. Porque não se molda o infinito sem primeiro nos desfazermos, como quem traz em si o lume das estrelas no respirar das asas que tocam o céu.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Para ti, que nunca alcançaste o soberbo olhar da mais profunda e única sílaba da vida, digo-te que aprendas. Porque vale a pena e serás, talvez, mais feliz. Que um mundo de poesia é apenas isto.
Fazer dos gestos uma paixão com ardor, fazer da arte que em nós vive, o sentimento maior.
No íntimo, e ainda à flor da pele, a certeza dos caminhos que trilhamos sem a mentira de mostrar alegrias em todos os instantes e horas. De não querer nada em grande, nem de mil fingimentos para anestesiar os vazios da solidão e do que vem. Mas morar em dias simples e leves e cheios daquilo que nos faz tão bem.
Ter em si a diferença especial de quem nos traz ao colo e nos mostra o brilho da luz, com o carinho genuíno que seduz.
Um mundo de poesia é sempre cá dentro. No embalo do coração e do silêncio, onde pertence a visão mais clara do muito que tão poucos vêem.
Abrir a janela do peito e permitir a respiração que nos torna capazes de dizer não à palavra oca e ao sentimento vão. E entre as escolhas de um amor tão raro, o nosso, aprender a conjugar o verbo “doar-se” por inteiro e sem pressa, aos braços de quem parte e de quem nos regressa.
O eterno espaço que nos habita em abraços demorados, as manhãs e o anoitecer que são o chão da nossa estória. As voltas certas das palavras que o tempo cantou e não apagou da memória.
Esta é a mais profunda e única sílaba da vida. Compreende-a.
Que um mundo de poesia é a nossa sagrada paisagem interior, com tudo o que nos vale a pena. Que este mundo, só verdadeiramente o entende e sente… aquele que não tem a alma pequena.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Inventei as palavras que não pude dizer-te por serem fáceis demais. Porque tinham que ser princípio. Porque tinhas que viver nelas antes do tempo começar. E sorrir como as crianças sorriem quando acreditam no amor para sempre.
Para o que te posso oferecer, és infinitamente mais. E eu, um feliz insuficiente que se contenta com murmúrios roucos e mãos trémulas de querer-te. Um ponto de interrogação que não entende os sentidos puros da alma.
Não sei se já te contei, mas sabe que não há contos de fadas. Apenas segredos que crescem em ti e que não tremem inseguros somente pelo tanto que os apertas contra o peito. Só por isso não te permites ser infinito como as horas.
Ah! Se assim não fosse, quanta eternidade encontrarias no mundo que és! E ousarias a liberdade para gritar o que não suportas deixar de querer.
Gosto de olhar-te pelo canto do meu silêncio. Admiro-te a perfeição como se os meus dedos tocassem o centro imaculado de uma rosa do deserto. Adivinho-te no impossível de tantas certezas. E o abandono rasga-me o grito mudo de todas as sedes que calo dentro de mim.
Distante, o mundo vive com outras guerras e outras mágoas. As minhas, guardo-as religiosamente nas raízes que, um dia, plantei para ti.
Sei que já não te recordas, que a imaginação te atraiçoa, porque o passado, por vezes, é demasiado longe e encoberto de sombras, mas já foste um sol no meu corpo. Brando e apetecível como o calor que nos deixa sedentos de aromas frescos.
Sei… há um ténue vibrar da minha voz que ainda pressentes.
Se o pudesses escutar! Seria feliz um instante que fosse se, no fundo da memória, abraçasses essa ternura que se mantém luz acesa, no meu colo de amar-te.
REVISTA VICEJAR
Escreve-me uma carta, pediste-me. Escreve-me uma carta...
E eu escrevo. Com o toque da pele sobre a textura delicada do papel, escrevo-te uma carta. Escrevo-te uma carta com as palavras que não saberia pronunciar.
Poderia ser a primeira de muitas cartas.
Mas hoje, sabes, já não se escrevem cartas de amor, meu amor. Perdeu-se a magia única da surpresa do sorriso, o encontro das letras descobertas dedo a dedo, despidas linha a linha com a suavidade de muitas pétalas que caem aos pés nus de quem se ama.
As cartas tinham mãos que enlaçavam. Tinham corpo que se fazia presente sobre a distância das emoções ansiosas de chegar. As cartas eram os nossos olhos no coração do outro.
Traziam consigo a alegria de todas as esperas. Uma forma tão própria de abrir portas e janelas no interrompido destino do tempo. Um modo tão único de prever a voz que nos permanecia nas memórias mais doces. Um modo tão especial de não apenas tocar, mas de nos afundar em mãos imaginadas, em lábios silenciosos.
Escreve-me uma carta, pediste-me.
Permite-me, então, que o teu olhar se encerre dentro de mim e deixa-me dançar ao compasso do pensamento que cumpre as letras de toda a nossa intimidade. E nele, oferecer-te a soma de tudo o que te sinto.
Braço dado com a imaginação do teu suspirado abraço, como poética confidência, te confesso que o perfume da nossa carta ganhou forma no sentir do que, um dia, me sussurraste em surdina, enquanto elogiavas a minha forma sincera de sorrir. Um sorriso largo, livre, vivo. É assim que gosto de te ver, disseste.
Como gostas de me ver desprevenida debaixo do teu olhar atento. Cabelos desalinhados, alça à vista sob uma manga desavergonhada descida sobre o ombro. Um retorcer pueril de lábios que não adivinham os teus olhos de gato.
Como gostas de me ver no dedilhar dos poemas que duvidas que te escrevo.
Como gostas de me ver nas sombras e luzes das fotografias que afirmas não gostares de ver, só porque não foram pensadas apenas para ti.
Como gostas de me (escre)ver num umbral de páginas brancas onde um tinteiro de alquimia te serve de inspiração.
Foi quando te entendi a simplicidade que seduz. Foi apenas quando te entendi nos pormenores escondidos do que te comove.
Talvez agora descubra porque me amas e eu nem saiba.
Porque há amores assim, sem sílabas, amores que não sabem dizer.
Às vezes, seriam precisas cartas de amor, como esta, que me pediste. Cartas verdadeiras de amor, para (nos) aprendermos a escutar.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Um dia, a voz translúcida de um pássaro falou-me da espessura do tempo que guardei no rosto e nos espelhos da pele, onde os instantes tristes me choraram.
Dos amores que perdi, das vitórias que não brindei, das estrelas que arderam na invenção mais pura do que fui e dos sonhos onde nunca morei, por não existirem. Labirintos desconhecidos que tateei no naufrágio de todos os desencantos.
Mas hoje… Hoje escutei(-me)…
Escutei a eternidade da terra onde a profecia se fez refúgio num sereno vagar deslumbrado.
A paz abraça-me, demorada, como um arroubo de vontades onde estreito a ternura de me querer.
Amanheço no princípio do meu mundo, tão visível como o som de um pensamento inesperado, a tocar os versos mais bonitos do poema em que me descubro.
Hoje, as minhas mãos nas tuas, numa esperança inconfundível com a serenidade a pousar-me no olhar, docemente.
E dizes-me que estou viva em todos os lugares mais próximos do coração, no sentir da saudade onde os poetas desejaram sonhar. Sorrio. Sorrio apenas, singelamente, porque o teu sorriso vive em mim e é-me tudo. Nele, esquecida das sombras, o meu olhar dança entre duas luas de ouro e transparência.
É em ti e no claro majestoso do nosso silêncio que permaneço e me dou à vida. Porque um dia me encontraste.
Porque um dia me encontrei.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Dentro de ti há um suspiro fiel. Uma bola gigante de silêncio contido. Tão grande como os desertos que o olhar mais puro não sabe perscrutar. Sorris, triste e categoricamente, da demência onde acreditas afundar-te em lenta contenção. As unhas cravadas no rugoso das veias delirantes de susto.
Sem te conheceres, para onde irás? Em que braços dormirás que já não possam ser os teus? O cavaleiro sem o seu alazão dourado, sem o seu escudo de mármore, descuidado e roto, por dentro do nevoeiro, a tropeçar nos restos de uma guerra que nunca te pertenceu.
Descrês da vontade de qualquer horizonte sincero, enquanto as vestes te compõem a réstia de sobriedade possível. Ouço-te chorar, copiosamente, num abraço interior.
Gostavas de beber o líquido sangue de um deus e ter a força hercúlea dos seus olhos, para encontrares o porto da viagem certa. A permanência das verdades absolutas no peito da vida.
Mas não. Não há brisa no teu entardecer. Só lágrimas de um sol caído. Gotas de água desfloradas pelo desencanto sórdido das mágoas. A tua dor numa mão, cheia de solidão inteira, aperta-te o corpo da garganta em gesto frio de quem mata lentamente.
Dói-te a respiração. E agarras-te à esperança, como um menino perdido entre os rasgos do tempo, que soluça no colo da mãe ausente. Tudo teria, talvez, um sabor diferente!
Não o das crianças exaustas, quando escutam as palavras tolas dos sábios que nada sabem do existir e do sentir. E, por isso, elas, as crianças, adormecem cansadas, no regaço das próprias mãos, a sonhar com luas de prata e pássaros azuis. Assim, são sempre felizes. Porque sonham mundos invisíveis dentro do coração. E, afinal, dizem que é o sonho que comanda a vida.
Sim, tudo seria diferente! Só tu e a cadência infinita de um amor que consola. Só tu e a eternidade sem nome.
REVISTA VICEJAR
Podia ser, amenamente, num banco solitário de um qualquer jardim, ao final da tarde, ou na pastelaria que o recebia para um café e uma conversa melancólica com os seus botões, quando se deslocava, para o trabalho, todas as manhãs, quase aos tropeções por entre a multidão. Podia até ser num breve momento em que o relógio lhe pedia uma pausa no cansaço e ardor do dia, enquanto os braços e as pernas faziam as pazes com o corpo e lhe ditavam que já só lhe faltavam umas poucas horas para a lide terminar.
Era nesses momentos que a mente lhe parava e se punha a escutar o som e a dança feita no palco de tantas vidas.
Vidas tecidas por estórias que os olhos lhe contavam sobre o tempo e os espaços dos que passam dentro e à margem da vida. As estórias dos outros que eram muitas vidas na sua própria vida.
Escutava, atento, os movimentos na pele transparente dos que com ele se cruzavam. E dentro de si, como quem soletra letras invisíveis a que dava forma, lentamente, penteava fio a fio, desenlaçava, compunha, enfeitava mundos e pintava o mundo interior de si mesmo.
Tantas vezes, eram as estórias alheias que vinham ao seu encontro, confidenciavam com ele e nelas se entendia. Davam-lhe a certeza da sua própria existência.
As estórias que podiam ser o seu amigo imaginário nas noites em que, mais assustado, se sentia criança outra vez, mas sem colo para onde correr a agasalhar os medos e desamparos.
Falavam-lhe, ao ouvido, de segredos mal contados, à espreita da revelação perfeita, da metamorfose necessária para se tornarem vivas. E ele pegava no seu caderninho, a quem tratava como velho companheiro, para as fazer voar numa viagem com muitos destinos: a alma que habitava o seu peito; o coração dos seus leitores.
Vidas velozes e vidas de atropelos. Vidas que correm céleres mesmo quando os dias são todos iguais e vidas que se descartam com indiferença, mesmo quando o amor lhes bate à porta todos os dias. Vidas com um horizonte e muitos sentidos e vidas sem sentido, à procura de um horizonte. Vidas de encontros marcados ou adiados, vidas que se completam em olhares cruzados, cheios de vida ou sem vida nenhuma. Vidas de esperanças ou de tristezas acumuladas, como punhados de destroços desencontrados. Vidas de pertença ou vidas sem porto de abrigo, numa terra de ninguém. Vidas que se perdem, vidas que se repetem e vidas que se reescrevem. Vidas que acrescentam e alimentam e vidas com pontos finais. Vidas construídas de pequenos nadas e vidas consumidas em grandes tudo. Vidas de amores imensos, vidas de muitos amores e vidas de longos desamores. Vidas que crescem vestidas de luz e vidas mortas, enfeitadas de sombras.
Poderia parecer estranho aos demais se lhe adivinhassem o olhar quando os olhava, assim, do fundo do seu pensamento. Talvez se sentissem invadidos numa intimidade que gostariam de preservar.
Mas as vidas que nos cabem, não são terreno fértil à privacidade, para quem nos escuta com aquela sabedoria sagaz da qual ele era capaz, sem afronta nem confronto. Uma sabedoria de quem compreende que os silêncios podem dizer mais do que todas as palavras.
Uma sabedoria de quem consegue nunca ser apanhado de surpresa quando lê, discreto e prudente, esse sítio em que, aos bocadinhos, nos desarrumamos sem escolha possível: o lugar dos afetos, o lado principal onde (todos) nos desejamos perceber humanos.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Podia dizer-to em qualquer outro dia, mas creio que hoje, domingo, é um bom dia. Porque tem cor de manhã que nos aquece mais um pouco na preguiça vagarosa das horas. E tem o som dos pássaros nas árvores, que começam a preparar os braços vazios para receber o riso morno da primavera. E o céu a esconder-se, envergonhado, por trás das nuvens que procuram o riso de um céu mais azul.
Portanto, talvez hoje, que é domingo, suponho que me ouças mais atento, como os amigos que escutam melhor quando o tempo lhes sobra nos dedos e no olhar.
Hoje, deixa-me sentar ao teu lado e falar ao ouvido dos teus fantasmas que te são presença indispensável e que os outros não veem.
É que quero contar-te um segredo. Um segredo daqueles tão imensos como a própria vida e que, por isso mesmo, não têm nada de secreto. Porque todos o conhecem.
Sabes, não vale a pena fugir dos espelhos que tratas como inúteis e aos quais finges que não ligas no teu cansaço escondido, enquanto escreves nas páginas do teu peito cansado, palavras sobre a esperança de alguém vir tocar-te no coração. O peso do tempo é sombra que sempre virá e retornará, mesmo que dês um pontapé nas vidas que não queres ter. Mesmo que durmas enrolado nas dúvidas do abismo a descoberto nas rugosidades dos anos e da tua pele, como uma fenda na estranheza do que em ti se faz noite.
São as raízes do teu sangue transportadas pelo fios do tempo, ainda que te dispas de cada um dos teus sonhos, ainda que caminhes à maneira de um desesperançado nos silêncios das paredes da casa onde, tantas vezes, te alimentas das lágrimas desse homem que se acredita vivo para nada.
Descobre a urgência de mudares em definitivo o teu mundo, deixares no esquecimento os que te calam a paz que anseias. E entenderes que há desventuras que não são desdita nenhuma, mas apenas o fim possível de todos os destinos do corpo.
Não te demores demasiado nas sombras que te cegam. Não te permitas morrer assim, nesse desejo de não te amares.
Se me deixares, talvez ainda te encontre uma noite de verão para poderes contar às estrelas o pressentir das palavras claras do teu sol.
Afinal, tu sabes, sou capaz de ficar ao teu lado de olhos fechados como me fizeste prometer, para não corromper a imagem que a memória afagou e nela sentires que me permaneces eterno.
Como um amor perfeito.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Há uma alegria que dança no meu peito, de rirmos como crianças daquilo que pouco importa, das coisas banais que se escondem dos olhos dos homens.
Dou-te a mão e sou capaz de entender a linguagem pura dos momentos simples, sem o medo, solto por dentro, de já ter crescido todos os instantes a que o tempo voraz me obrigou. E de me sentir abraçada, apenas porque estás.
Sabes-me feliz do tanto que és capaz sem precisares de nada mais senão do coração. É a surpresa de te descobrires nesse poder mágico que te pertence.
Sabes, gosto de ser menina outra vez num qualquer sítio esquecido, para além da estrada que a vida me ensinou.
Gosto do silêncio onde escuto somente os risos do que inventamos tão fácil. Porque é verdade sem mácula.
E cabe-nos na perfeição de todos os segundos onde verdadeiramente nos somos.
Posso agradecer-te?
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
As mães que eu conheço são uma forma de poesia escrita pelos dedos da vida.
Trazem nos lábios o aroma das sílabas quentes com que acolhem e agasalham o colo frágil de todos os filhos que não são seus. E nunca se cansam de serem tanta gente dentro delas, porque têm a ternura nas pontas dos dedos e o corpo inteiro a saber a amor.
Em momento algum se espantam por serem sempre muito e, sem receio da queda, levam-se com asas para onde os corações que amam mais precisam. Mesmo que lhes doa a paciência ou lhes aflijam os dias. E, ainda assim, conseguem inventar, do nada, uma mão cheia de mundos.
Sabem ler a alma dos filhos como se fossem profetas do ontem, do hoje e do amanhã. E podem os olhos andarem-lhes desencontrados, mas conhecem-lhes as letras de cor, como poetas que nunca adormecem. Por isso, são como relógios em movimento, sempre a tempo de preverem o próximo instante.
Sorriem ao sol pelos beijos dos filhos que são sempre gigantes, ainda que sejam muito pequeninos, e dançam a vaidade, com o chão na ponta dos pés, de cada vez que os fazem acreditar que eles são tudo isto e serão ainda muito mais.
São lobos capazes de derrotar olhares de maldade, inveja e cobiça, enquanto caminham muito devagar para não despertar o sono tranquilo dos que nunca lhes moram longe do coração.
Choram, para dentro, todos os segredos íntimos das suas mágoas e amam, para fora, como se as dores fossem flores. Entretanto, rezam ao vento que nunca lhes traga a dúvida, o engano e a desilusão de dias infelizes.
Um dia, com a pele já gasta de tanto frio, no rosto se descobrem árvores cada vez mais frondosas, de muitos ramos abraçados com uma só mão. Esqueceram a lembrança do que elas próprias foram, mas leem-se como um antigo álbum de fotografias cheio de memórias.
Dos olhos escondem a palavra adeus que jamais pronunciaram, mesmo no interior dos seus silêncios. A razão porque qualquer último abraço é sempre a promessa de um futuro que sabem que acontecerá.
Assim, soletram a dor no canto escondido do peito e inventam nomes diferentes para o medo, porque nunca aceitam vazios nem conhecem o final de nenhuma página.
As mães que eu conheço, são passos de corpos anónimos que nos cruzam, todos os dias, escritas desse infinito que só um ser tão nobre consegue preencher.
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Amo.
Amo essa coisa fabulosa que escuto de nós nas páginas do livro que escrevemos juntos. O contorno dos dias que persistem amargos mas que não deixamos tremer porque, com os olhos húmidos de força, empurramo-los contra as paredes dos espaços e fragmentamo-los como cascas secas por cima das raízes que soltam as escuridões.
Amo os instantes espantosos que faltam ao coração do mundo e que, juntos, tornamos ambiciosos. Deles fazemos segundos, vestidos com a essência de um milagre. O que os outros desconhecem por nunca se terem descoberto no mergulho pleno das coisas simples.
Temos dedos que são ternura aconchegante na neve fria que o passado nos deixou.
Por que haveríamos de chorar se todos os abraços que damos aquecem o sangue dessa alma que nos pertence?
Por isso nos rimos, tantas vezes, nos dias de cor que são escuro vazio lá fora.
Amo esta franqueza cúmplice isenta de mágoas onde preferimos deitar-nos, com a proximidade compreensiva de quem já alcançou a lição superior da sabedoria.
E amo ainda o silêncio de uma tarde adormecida quando o fogo não arde no corpo. A sombra do mar a guardar conchas desertas sobre a palma das nossas mãos. Tão surdas de beleza! Mudas daqueles versos a que só o olhar consegue dar voz. Porque também há silêncios assim, ancorados no peito, nus, que nos respiram fundo, que nos levam longe, com os olhos inundados de gritos inconfessados.
Sabemo-nos e não julgamos: cada um tem em si um mundo inviolável e uma casa única feita de muitas páginas, que se arrastam no compasso do tempo.
Compreendemos e não precisamos de desvendar. Afinal, somos felizes agora com tudo o que nos beija os sonhos.
Partilhamos o caminho descalço sobre os ombros da vida, na rejeição do tanto que não nos tenha sabor. Só para não corromper a definição delicada do que chamamos, hoje, de felicidade.
Sim, meu amor, amo a sedução da valsa que dançamos em uníssono como uma memória viva de um sol antigo que não entendemos.
Talvez o sorriso nos conte, um dia, que são apenas detalhes invisíveis de uma formidável repetição recriada pelo infinito e pela indelével fragrância que perdura além do impossível.
Amo-te.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
O que a assustava era esse silêncio, ensurdecedor, no meio do rumor que dançava à sua volta dissipando-se qual névoa lenta.
Um silêncio cheio de tudo.
Pensava como era possível o mundo girar-lhe, a um ritmo alucinante, por entre o corpo e ela apenas conseguir sentir a voz estridente do silêncio como uma pedra pesada sobre os ombros.
Lembrou-se, de repente, das cenas dos filmes, quando as personagens sobrevivem a uma explosão. Um tinido nos ouvidos. Por todo o lado, o ruído tão distante. O desconcerto de quem não entende o que acabou de acontecer.
Seria assim o seu mutismo? A consequência do estrondo imprevisível de uma guerra que não lhe pertencia? Uma guerra de todos os que não suportam o mundo, de todos os que não se suportam a si mesmos?
Sentada sobre uma cadeira. Em frente, restos de uma refeição sem sabor, a única companhia dos próprios pensamentos. Cabeça apoiada nas mãos, a tapar o rosto escondido, adormecido no vácuo daqueles segundos em que se sentiu gente.
Fixou-se no tiquetaque do relógio. Estranho som. Seco, vagaroso, cadenciado... Cada vez mais sonoro, numa invasão indesejada a consumir-lhe os sentidos.
Estava ali há tantos anos aquele relógio, naquele mesmo local, naquele exato ponto e nunca se apercebera dele como naquele exato momento.
Curioso como o arrastar do tempo é substância delicada a escorregar pelas sinuosidades da vida! Impercetível, habita nela como as raízes de uma hera cravadas numa parede. Mas ninguém lhe escuta o bater compassado do coração. Ninguém o ouve.
Lembram-se dele, do relógio, das horas, do tempo, somente quando precisam de controlar os instantes dos dias. É-lhes imprescindível para não falharem, para seguirem o rumo certo do destino a que se propuseram.
É assim o relógio. Caminha sem pressas, mesmo que o abanem para ser mais rápido. Caminha inalterável, mesmo que o aconcheguem para ser ainda mais lento.
É assim, o relógio. Necessário na existência de tantos.
É assim, o relógio. Invisível.
É assim, ela.
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Gentileza. Coisa bonita e perfeita!
Se a observas, vês flor em forma de ternura. A candura branca no olhar e um cuidado vaporoso com que brinda o céu no rosto dos homens.
Quando a lês, descobres-lhe o interior de um abraço que te aconchega como primavera e te permite florescer, numa urgência de toda inteira ela se doar. Sem demora, sem retorno, como a fala própria dos imortais.
Gentileza conta tudo o que é preciso e que ninguém nos diz. Um raio de sol a acolher estes caminhos de nuvens, onde não nos sentimos humanos. É sorriso que desce, como gota branda de encanto e bem-querer na morada de todos os nossos desertos.
Adormece as armas com que nos levantamos e pede-lhes para escreverem uma nova canção. Uma outra linguagem do coração nos espaços divorciados de um tempo apartado, cujas sombras, fazem crescer pedras nos lugares onde apenas o afeto se faria dom necessário.
Gentileza não nos promete o paraíso, nem tão pouco a vida eterna. Mas conjuga a forma do que somos, numa confiança silenciosa de que somente permanece o que tocamos com a vontade de ser.
E toda a beleza nasce desse ato gentil do corpo, dos gestos e dos olhos, que é claridade a acordar alguns outros céus a viverem em lágrimas.
Ali, ganha sentido como se fosse um beijo, pousado com a doçura dos lábios, sobre a alma de quem se ama. E que nos é devolvido pelas margens da nossa própria luz.
É que o amor, o amor não tem fundo. O amor precisa, sempre, de mais.
Assim possamos prometer-nos as palavras em que acreditamos.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Enternece-me o modo brioso e garrido como o Sr. Domingos responde, sempre que alguém o questiona sobre a data do seu aniversário. Empertiga os ombros, afina a voz e profere, lacónico: “10 de junho. Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”. E o olhar envolve-se-lhe num silencioso e arrebicado sorriso.
O Sr. Domingos não foi marinheiro. Nem terá tido oportunidade sequer de ver o mar, muitas vezes, ao longo dos seus já extensos setenta e cinco anos de idade. Pouco foi o tempo que alongou vistas por outras paragens que não fosse a sua aldeia de onde, um dia, os filhos saíram em busca de outros destinos mais afortunados.
Os estudos foram escassos, os poucos que uma simples e modesta família de sete filhos lhe permitiram em tempos remotos, quando a pobreza se fazia casa num país encerrado entre quatro paredes. Mas sabe a história de Portugal na ponta da língua. E com grande confiança a recita aos netos, quase como se entoasse demorada cantiga à desgarrada.
Pois dessa história, o Sr. Domingos conhece o heroísmo e a afoiteza dos seus ancestrais que se aventuraram por mares nunca dantes navegados mais do que prometia a força humana.
Se nunca foi um navegador, sabe dos passos e dos triunfos desses heróis do mar que se fizeram a um mundo desconhecido, à descoberta do futuro, numa vontade constante de ir sempre mais além.
Povo viajante feito de garra e bravura extraordinárias onde cabia a gigantesca convicção no desconhecido e uma força inabalável de superação dos infortúnios e má sorte.
Talvez o Sr. Domingos desconfie, com boa pitada de vaidade, ser ele também herança deste património genético tão magnificamente assinalado pelo nosso prodigioso, aventureiro e apaixonado Camões. E por isso, na sua postura humildemente despretensiosa possamos perceber, porém, esse orgulho maior por ter nascido num dia 10 de junho.
Não foi por morar num Portugal interior, muitas vezes esquecido, que o Sr. Domingos permitiu deixar passar ao lado a sua história de um passado de expansão e aquisição de outros saberes. É este forte sentimento de pertença que tanto lhe admiro, apesar do bastante que lhe falta materialmente, fruto das asperezas e intempéries da vida num canto de Portugal votado à solidão e abandono dos que nunca partiram para contrariar os desígnios.
E sei que, se algum dia, tivesse que deixar para trás o seu pedaço de terra, guardador de muitas vivências, e a sua casinha construída a pulso com ardor e dedicação, seria como pedir à morte que o levasse para outro mundo. Porque é desta ânsia permanente de regresso ao seu porto que se faz o coração de cada português, qual mito de D. Sebastião, ainda que um sexto sentido lhes garanta que, por vezes, a volta possa não passar de uma ilusão.
Se reduzimos cada vez mais as nossas fronteiras e abrimos portas a uma sociedade multicultural onde se vão desenhando constantes e rápidas mudanças nos vários sistemas que lhe dão forma, continuamos ainda assim a descobrir-nos numa cultura amplamente genuína e pura que transporta em si o caráter tão forte da nossa lusitanidade.
Honrar o chão que pisamos e o barro de que somos moldados e cantar o presente, e também o passado e o futuro porque o presente é todo o passado e todo o futuro, como nos ditou Álvaro de Campos em “Ode Triunfal”. É isto o que, agora, podemos encontrar de mais digno no desejo de cada um.
Os nossos antecessores, numa árdua conquista de mais conhecimento, muito fizeram e contribuíram para nos abrir horizontes.
Hoje, em cada palavra dita, em cada centelha de comemoração por este dia que nos torna, de alguma forma, mais grandiosos enquanto povo, saibamos conferir sentido a todo o esforço levado a cabo por esses nossos antepassados.
Consigamos igualmente fazer uso dos ensinamentos de outrora para interpretar o futuro e corrigir o que possa estar mal. Com aquele sentimento que os portugueses tão bem guardam no peito ao longo dos caminhos do seu fado: a esperança e a fé.
Mudem-se os tempos… mas permaneça a vontade.
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Há um cenário urbano contemporâneo. Um mundo movimentado. E uma vida quotidiana a desenrolar-se com pressa e sem distração. Não é um palco de grandes heróis. Apenas uma humanidade que anda perdida. Uma humanidade ausente de uma qualquer direção com um brilho que seja mais forte do que a luz dos seus tantos dispositivos.
E eis a terra fértil de inquietações onde nascem os gurus de si mesmos. Distribuidores gratuitos de palavras generosas a qualquer alma que ouse respirar sem um entusiasmo contagiante. Ali está ele ou ela, no café da esquina, no escritório ao lado, no jantar dos amigos, o colega de trabalho, a vizinha simpática, o parceiro inesperado da fila do supermercado, o parente cheio de opiniões, a amiga sonsa. O pregador da felicidade instantânea, disponível para curar o mundo, não porque o mundo lhe pediu para ser curado, mas porque há algo de profundamente terapêutico em cuidar das dores dos outros enquanto se ignoram as próprias ruínas.
Diante de qualquer situação menos boa que diga respeito a terceiros, as suas antenas omniscientes erguem-se captando, de imediato, o que julgam ser o "verdadeiro" problema e, com a confiança de quem nunca tropeçou, ou a sábia experiência de uma vida aos tropeções, desfilam prognósticos, conselhos e soluções como se o mundo fosse um puzzle que só a sua superior inteligência sabe montar ou desmontar.
Diagnosticam e apontam a infelicidade com a precisão de uma roleta e infelizes são todos os que não seguem os seus certeiros conselhos transformadores.
“Ama-te mais”, “sê a tua melhor versão”, “o que precisas está dentro de ti”, “o teu propósito é tudo”… Ai quanto alívio, dizem eles, se os outros se entregassem à simplicidade destes seus mantras pré-fabricados, reciclados e infalíveis e das promessas de que o universo, elemento em voga, conspira sempre a favor de quem pensa positivo, rodeado de boas vibrações. Afinal, é tudo uma questão do mindset adequado e a felicidade é só um estado de espírito, já ali, ao virar da esquina!
E há toda uma espiritualidade secreta por trás dos cânticos sagrados destes especialistas, não no autoconhecimento, mas no conhecimento profundo das fissuras alheias. Observam com olhos aguçados as rachadelas das vidas de quem os cerca e, como sábios profetas que se julgam, decretam soluções com a autoridade de quem nunca se engana. Os mestres prontos a iluminar o caminho de quem nunca pediu para ser iluminado, num ato de promoção pessoal disfarçado de compaixão. O passatempo insaciável de quem transforma cada interação num púlpito!
São tantos os messias das almas perdidas! E quem precisa de olhar para dentro quando a vida imperfeita dos outros é tão mais fácil de resolver? A beleza tragicómica desta compulsão para restaurar o que não lhe pertence, motivada por uma genuína - e equivocada - certeza de soberania!
Por isso, um dia, num desses encontros metafóricos que acontecem por obra do acaso, alguém perguntou a um dos mestres: “Mas e tu, és feliz?”. “Não sou, mas posso parecer! Afinal, vivemos na era dos sacerdotes da pequena glória e a vida é um teatro sublime, um espetáculo de proporções divinas!”.
Saberão eles que é tão fácil, aos mais atentos, reconhecer no brilho dos seus olhos a exaustão de quem não pratica nem vive o que prega? A fachada do conhecimento, da confiança, do bom senso e da retidão, a esconder amargas e profundas inseguranças?
Há algo de poeticamente irónico nestes salvadores das gentes que os rodeiam: a maioria deles não consegue encontrar o próprio caminho nem com uma bússola. Um detalhe particularmente interessante é que a sua luz não parece iluminar muito bem as suas próprias sombras. As suas vidas são um mosaico de escolhas pessoais erradas e de problemas emocionais não resolvidos. Generosidade curiosa, esta, de tentar salvar os outros enquanto o próprio barco tem um rombo de grandes dimensões, sem solução à vista!
Afinal, talvez a suposta preocupação e ajuda sejam menos altruísmo e mais uma anestesia para as próprias dores. Porque, verdade seja dita, é muito mais fácil constatar os defeitos alheios do que se encarar ao espelho. É muito mais fácil pregar a virtude, a honra e a empatia, do que colocar os olhos e a atenção no seu próprio caos. É infinitamente mais fácil proclamar o amor universal do que lidar com o facto de nunca ter sido amado verdadeiramente por alguém e nem sequer ter conseguido, alguma vez, amar-se a si mesmo.
Mas a “sapiência” deste mais comum dos mortais é acreditar que isso não importa, pois se pensa dizer as coisas certas com arrojo suficiente, até a própria incoerência lhe soa como verdade! E quem precisa de confrontar os seus abismos quando há tanto trabalho a fazer na alma do vizinho?
Na ausência de um propósito claro para as suas vidas, autoproclamados voluntários nos propósitos humanos, a pregarem o desapego e a leveza, estes apóstolos da bem-aventurança, tão necessitados de se sentirem úteis e indispensáveis, mas reféns do seu desejo íntimo de aprovação e aplauso, vão continuando a sua dança para serem admirados e, principalmente, invejados. “Que pessoa sensata!”, alguém murmura, e o ego do iluminado cresce uma fração invisível.
Demasiado ocupados a erguer catedrais de aparência, são prisioneiros num ciclo de vaidade, onde o reconhecimento por parte do outro é a única coisa que valida as suas existências.
Mas quando as luzes da ribalta se apagam e as telas ficam escuras, a vida continua indiferente ao brilho que os seus egos tentaram emular.
O tempo, como sempre, é o juiz mais honesto. Os conselhos dados com tanta certeza, as certezas cheias de superioridade, tudo isso desaparece no ar como fumo de um incêndio esquecido. As pessoas que um dia ouviram esses gurus da sabedoria continuam a seguir o seu caminho, com ou sem as respostas por eles oferecidas, e assim seguem adiante, acumulando novas estórias para interpretarem e novas dores para explicarem.
Porque, no final, o mundo é um palco demasiado grande para atores tão pequenos. Pois o que existe para aplaudir, quando a ovação é o som mais desnecessário? Quem sabe, um dia entendam, numa qualquer nota de rodapé do livro infinito da história humana, estes senhores das frases feitas que soam a máximas milenares, das poses, das observações quase divinas, que a fé não é uma marca registada sob o nome de alguém, assim como a felicidade, sobretudo a alheia, não é um projeto que eles possam completar. A vida e o seu percurso são compostos por valores que se pretendem ser sentidos por cada um, na luz e escuridão que a cada um pertencem. E resta apenas o que sempre esteve ali: uma pessoa comum, com os seus medos e esperanças.
Talvez aceitem um dia, estes iluminados, as escuridões - as deles e as de todos. E que aqueles silêncios desconfortáveis, mas repletos de significados, sejam mais úteis do que qualquer um dos seus conselhos mal formulados. E percebam eles que o maior ato de bondade não é salvar o outro da sua vida, mas simplesmente caminhar ao lado dele, ao mesmo ritmo. Porque o imperfeito, mas real, por si só, já é perfeitamente suficiente.
… E era uma vez uma humanidade que andava perdida, desintegrada no silêncio do tempo, como pó levado pelo vento.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Porque a liberdade do riso ainda é para todos
Numa qualquer cidade, que aqui não direi,
Viviam três almas, em atos sem lei.
Floriana Tonta:
Num corpo de dama, mas alma d’infante,
Feita de sonhos e um só Diamante,
Morava Floriana, mais Tonta que tudo,
Dedicada ao amor num castelo iludido.
Apaixonada por Come Tudo, el rei Sebastião,
Num brado alvoraçado e tão falastrão!
Floriana Tonta, coitada, com belezas sonhava,
Mas em espinhos dançava e não desconfiava.
De olhos brilhantes e peito infantil,
Tornada brinquedo, peça de vinil.
Sebastião, o seu rei, seu tesouro ilustre,
Prometia-lhe o céu na cama do embuste.
Diante de todos, tão ridicularizada,
e Floriana Tonta só ria. Não se importava.
Para ela, o amor era prova genuína!
Se Sebastião a feria? Era só bênção divina!!!
Sebastião Come Tudo, seu anseio e desatino,
De prédica bonita e sorriso ladino,
Tece promessas, cheio de importância.
E Floriana, sábia(?), acredita. Santa ignorância!
Nas falas ocultas, a palavra ferina,
E ela, tão Tonta, sua própria assassina.
Sebastião Come Tudo:
Sebastião Come Tudo, sempre cheio de pose,
Adorava a pompa, o espetáculo em dose.
De nome tão próprio, figurão artolas,
Homem voraz, repleto de humor: que belo farsolas!
Comia olhares, palavras de branco caiadas,
Das mulheres do mundo, bocas desatinadas.
Em festas, em jantares, enfeitava-se inteiro,
Para ser o destaque, o grande fiteiro!
A alma vazia como oco tambor,
De tudo fazia um palco de amor
Para ser aplaudido com gestos de cena.
Dizia-se o sábio, o culto… tão digno de pena!
Por ali andava, ora o ardor, ora o desdém,
O triste enjeitado, precisa sempre d’alguém.
Descreve-se esperto, um génio profundo,
Porque é frágil demais no seu vazio sem fundo.
E Floriana adorava-o, tão cega atração!
Não via a verdade no ignorante coração.
Por Sebastião Come Tudo, seu maior afeto,
Come ela ilusões num prato abjeto.
Aurélia Desmiolada:
E se não há duas sem três nesta algaraviada
Eis que chega, imponente, Aurélia Desmiolada!
Ornada d’alma bendita de luz, tão cobiçada,
e corpinho perfeito de natureza abençoada.
Julgando-se astuta e em postura exagerada,
Destila ciúme, inveja enraizada.
Com seu ar de conselho, de juíza certeira,
Língua feroz oculta em manha sorrateira.
Das outras mulheres fala com insinuações,
Que suas bocas e modos são más inclinações.
Um exemplo de honra, mulher iluminada,
Dos outros vislumbra cenários na cabeça perturbada.
Sussurra a todos seus alvitres ufanos,
Fala em virtudes… mas só vive desenganos!
Dona de muitas retidões, sabedorias mil,
Porém mais perdida que bicho sem quadril.
Com seu verborreico opinar e de moral enfeitada,
Sempre com ares d’afetada, esta é Aurélia Desmiolada.
Mas como falsa, manhosa, atriz vigarista,
Já assim ela por muitos é vista.
E que a almejam os homens! Ah! Mas só pelo corpo.
Será triste seu destino, sem laço nem porto?
Entende-se musa, de colo encantado,
E gira que gira, o cata-vento desaustinado…
O Encontro:
… Por isso, em Floriana, procurou a melhor confidente.
Por ela se infla, se acha influente.
Conversas desenhadas com tinta de maldizer…
E que os outros são tolos que não sabem agradecer
Magistrais surpresas deste universo, mesmo aqui.
E é amor saltitante, abracinhos para lá, beijinhos para ali.
Não intui a de nome Tonta: da boca escapa o segredo.
É que Aurélia é mestra da trama e do enredo:
“Se hoje és querida amiga, amanhã serás degredo,
Visses as tuas costas, saberias o brilho que te concedo.”
E agora Sebastião, brinca que brinca,
na laracha de quem com a verdade m’enganas,
Já pode partilhar sua graça com tonta Floriana
E olho guloso posto em Aurélia sem caco.
Olhares de soslaio, língua sabida: mete tudo no papo!
Certo dia, os três se encontraram em nobre salão,
Para uma festa, uma dança… e certa confusão.
Floriana suspira… Aurélia incendeia!
E Sebastião, de si mesmo, faz grande odisseia.
Nesse dia, um banquete resolve ele armar
Com as suas damas de volta a bailar.
Para Aurélia, um brinde ao espírito nobre!
Para Floriana, o futuro, promessas ao pobre!
E então propõe, num golpe perfeito,
Que vivam os três em laço bem estreito!
Risonho, o artista sugere sem pudor,
Que as duas o venerem, o sigam com clamor.
Floriana sorri, ingénua em excesso,
Aurélia pisca-lhe: "Ele é um sucesso!"
E o jantar alonga-se, vinho e euforia,
Enquanto Sebastião já só pensa em prazenteira folia…
O trio dançante, numa comédia assim,
Nos olhos dos outros, é risota sem fim.
O Desfecho:
No auge da festa, Sebastião proclama
Que o seu amor por Floriana é fogo que o chama…
E Aurélia, desfaçada, com sorriso cerrado,
Declara-lhe: "Tu és vaidoso e safado,
A nós nos encantas com voz disfarçada
Mas és só um vazio de alma estragada."
E é então que Aurélia, a verdade dispara
Sobre os deslizes do rei, na sua cara,
E o vinho revela o que ele escondia,
A sua outra dama… a que ninguém mais sabia!
Naqueles outros tempos em que foi tão feliz
Com Ursulina Matreira, seu príncipe aprendiz.
Faltou-lhe apenas bolso cheio a tilintar.
Ela por outro se arrebatou. A ele, mandou-o passear.
Mas era tão linda, deusa de fazer suspirar,
Dotes ousados e beleza única tinha a sua Matreira!
Tamanha pena ser ele um pelintra, sem eira nem beira.
Só que o sentir profundo é pão que nunca sacia
Por isso, ainda hoje, lhe consagra doce elegia.
Floriana, chocada, mas ainda tão cega,
Atira: “Ele é meu, é a mim que se entrega!”
E só depois de ouvir escárnio tamanho,
Grita: "Sebastião, recuso fazer parte deste rebanho."
Desprevenido, sem saber que mais história inventar,
Emudece-se o Come Tudo, perde-se no próprio pensar.
Assim a festa termina com Sebastião derrotado
Comendo do veneno que havia lançado.
E lá se vão, numa reviravolta de praxe,
Aurélia e Floriana, sem mais palavra que engraxe.
E Sebastião?.. Sem damas e sem janta,
Segue, pois, mudo, com o silêncio na garganta.
Floriana Tonta, sem brilho, à lágrima se acolhe,
Aurélia Desmiolada reluta, mas o ego engole.
E Ursulina Matreira por onde andará?
Num futuro perto, Sebastião de novo a encontrará…
E era assim, uma vez, nesta grande cidade,
Três almas distintas na sua patética vaidade.
A Conclusão:
Qualquer semelhança com a realidade
Nesta espécie de conto de cristalina verdade,
É pura obra de acaso e de ficção,
Pois esta humanidade chega já como feliz inspiração.
Apenas uma história escrita com sátira e arte,
Ao jeito irónico de quem com ele faz tanto alarde.
Ainda que o que os prenda a este final, com vontade,
Seja constatarem que, de melhor inteligência, lhes falta a capacidade.
É que na viagem dos dias, são as gargalhadas divertidas
Quando é gozo feito com o caminhar de outras vidas…
Por isso, assim possa também, todo o palhaço rir de si mesmo
Sem eufemismos e da língua sem testo.
E limpe a boca da encoberta perversão
Com que vai agasalhando a sua alma e o coração.
REVISTA VICEJAR
Assim passaram pouco mais de três anos do meu percurso pela Revista Vicejar, após convite de um dos seus fundadores para colaborar com esta excelente “colecionadora” de belíssimos textos: Paulo Cesar Paschoalini. Hoje, um grande amigo de longa distância, mas sempre próximo do coração. Ser humano de M maior, porque revestido de uma nobre humildade e elevada sensibilidade, qualidades raras que em poucos podemos vislumbrar, numa sociedade fortemente lesionada nos seus sentimentos e na sua ética.
A ele agradeço e agradecerei sempre, profundamente, a confiança depositada em mim e nesta minha forma de expressão, com a certeza de que a oportunidade que me foi concedida, em paralelo com o privilégio inestimável de todo o seu apoio, têm constituído, garantidamente, uma experiência feliz e enriquecedora, de enorme crescimento pessoal, que permanecerá comigo infinitamente.
Mas não me basta apenas desempenhar, com orgulho, o papel de colaboradora na Vicejar. Também aqui procuro, regularmente, o aconchego da leitura e o consolo na qualidade do que leio. Num tempo de saber que se vai construindo em terreno cada vez mais inóspito, e espaços onde predomina a iliteracia de uma cultura aleijada e vastamente despida de conteúdo, é gratificante encontrar-me, sempre que me é possível, com a qualidade das palavras e emoções descritas e a notável mestria de quem, ao meu lado, segue este mesmo caminho. Cada autor no seu estilo único e particular, com a peculiaridade da sua escrita, vão contribuindo para um mosaico de perspetivas e narrativas que nos permite descobrir, enquanto leitores, mundos interiores repletos de vivências, de sonhos e diferentes perceções.
Mundos esses que são, para mim, uma bonita fonte de inspiração. Porque, talvez inocentemente, acredito que o mundo literário deverá ser mesmo assim, não somente uma busca sôfrega por aplausos com o intuito de massajar a vaidade do ego, mas também, muito e sempre, a capacidade de perceber no outro os seus dons. Aprender e inspirarmo-nos neles com humildade genuína. Não ser feliz nas palavras apenas quando a nós mesmos nos dizem respeito, mas também ter a dignidade de apreciar, compreender e nos deixarmos encantar com o mundo de quem lemos, quando é ele que, tantas vezes, afinal e tão certeiramente, nos lê por dentro.
Infelizmente, o mundo das artes, particularmente o da escrita, mencionando aquele que me é mais próximo, muitas vezes idealizado como um santuário de sensibilidade, lugar onde as almas se podem encontrar para partilha de experiências, ideias e reflexões, acaba por ser mais um espelho quebrado a refletir fragmentos de vaidades e hipocrisias. Ainda que, diria Álvaro de Campos, cansado de semideuses, “são todos o ideal, se os oiço e me falam, quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?”.
Virginia Woolf que, nas suas obras e ensaios, tão profusamente explorou a complexidade das relações humanas e as inconsistências entre o discurso e a prática, objetivamente considerou que “escrever é como um fio que segura o tecido da vida, mas muitos se embaraçam nele, perdendo-se no seu próprio reflexo”. E assim temos esse universo da arte onde se espera encontrar o espírito altruísta que deveria vestir a alma do artista e nele nos deparamos com atos que desmentem a sensibilidade poetizada pelos seus protagonistas. As belas metáforas e as narrativas que projetam, mas que escondem uma postura de superioridade e uma luta incessante pelo reconhecimento. A ironia cruel do escritor que prega a humildade e a compreensão, mas que, efetivamente, abriga em si o profundo desejo de ser idolatrado. A presunção do presumível guardião da verdade e da beleza, a erguer muros intransponíveis enquanto percorre o labirinto do seu próprio narcisismo e sucumbe à ilusão da sua grandeza. O amor à arte frequentemente superado pelo amor a si mesmo.
Já Manoel de Barros, no seu estilo característico de poético olhar agudo, escrevia sobre a superficialidade de muitos e a falta de substância na produção literária. Dizia ele, no seu Caderno de Mudas, que “a beleza das palavras não preenche o vazio que está por trás das palavras”. E que “é por isso que temos poetas que não sabem o que dizem, escrevem palavras bonitas, mas o que está dentro é um buraco negro”.
Num acréscimo doloroso a estas constatações, é preocupantemente reveladora a notável inveja, camuflada sob os falsos elogios, incapaz de suportar as capacidades, potencialidades e brilho alheios, sombra constante nas relações entre tantos artistas. É lacónico Bukowski, cujas obras, seguindo uma abordagem honesta e dura, foram uma crítica contundente aos falsos intelectos e à superficialidade que encontrou ao longo da vida, ao afirmar ter acreditado que ser escritor significava ser honesto mas descobriu, posteriormente, que é mais sobre saber mentir bem.
Porquanto, a crítica supostamente construtiva, e que poderia e deveria constituir-se como alicerce de crescimento, transforma-se no ataque disfarçado, fruto de uma visceral insegurança pessoal. Os trajes elegantes feitos de palavras floridas, a mascarar a pequenez do caráter e a promessa de uma fraternidade literária a dissolver-se face à crueza das relações.
Não bastasse já todo este cenário dantesco, deparamo-nos ainda com uma outra realidade aniquiladora das potencialidades inerentes ao verdadeiro saber e genuíno sentir de quem se move a gosto - ou contragosto - por estes meandros artísticos. Uma realidade contra a qual, a peleja exige forças descomunais: a posição marcadamente excludente levada a cabo pelos pequenos grupos e por elites que, com as mãos e o pensamento fechados em torno de estéticas específicas e critérios ideológicos, ignoram a diversidade e a inovação de quem se apresenta fora dos principais circuitos ou permanece distante da moda institucionalizada.
Evidentemente, quando a consagração artística não depende de talento mas, substancialmente, da habilidade em navegar por relações de poder e dentro das “redes certas”, a obra perde toda a sua relevância e a criação é concebida para satisfazer tais elites, desligando-se aquela do seu efetivo valor e sentido fundamental e que é, claramente, o de buscar um propósito mais elevado, sacrificando-se, pois, toda a integridade criativa em nome da aceitação social e do sucesso comercial. Um sistema opressor do talento genuíno, o qual empobrece fortemente a cultura!
"Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz”, a afirmação que já ressoava como espantosa verdade, na Tabacaria de Pessoa! Mestre na palavra terá sido igualmente Emerson, ao referir que "o grande homem é aquele que, no meio da multidão, mantém, com perfeita doçura, a independência da solidão". Porque toda a arte, a escrita, a poesia, têm que ser orientadas por princípios de excelência e não por vãs políticas ou modismos vazios.
Deste modo, o mundo das artes, ao mesmo tempo que encanta com a sua aparente beleza, desilude com a realidade crua e nua dos bastidores. Como bem escreveu Oscar Wilde, “raramente a verdade é pura, e nunca é simples”.
Do descompasso entre a escrita e o comportamento dos autores emerge o dito popular de que nem tudo o que reluz é ouro, pelo que, no teatro de vaidades onde a máscara e o rosto se confundem, resta ao verdadeiro amante da arte navegar com discernimento, separar o trigo do joio e fazer pela diferença.
Mas tão só, isso não basta. Urge a coragem para deixar de lado o politicamente correto, a conversa afiada no banco do cafezinho da esquina, a maledicência pequenina das redes sociais e a indirectazinha cobarde do “cabe a carapuça a quem a enfiar”. É imperiosa a ousadia de ir além das convenções que se julgam estabelecidas, desafiar sem receio de ferir suscetibilidades, enfrentar com dignidade e lutar com franqueza, pelo rigor e por uma mudança de mentalidades e de práticas, para que o mérito artístico seja o principal critério de reconhecimento, e não a adesão a círculos de influências.
Mais uma vez, Oscar Wild estava certo ao lembrar-nos que "a maioria das pessoas morre como imitadores, não como criadores." Portanto, há que dizer um NÃO retumbante e implacável a essa franca traição perpetrada - e perpetuada - à essência própria da arte que, enquanto construção genial e autêntica, permanece enforcada e a agonizar, submissa, aos pés da mediocridade de uns quantos grupos elitistas, amiudamente provincianos, e da sua crítica vulgar e trivial, ainda que por eles legitimada e que, tantas vezes, não é senão o resultado de um fracasso reunido para julgar os que se arriscam, como sabiamente identificou Henry Miller.
Afinal, e Nietzsche que me perdoe por reinventar as palavras que lhe cabem, mas o que se faz por amor… deve estar sempre além do mal.
Agora e por fim, a todos deixo o meu honesto e fidedigno abraço poético.
REVISTA VICEJAR
"Só as emoções fazem de nós heróis de carne e osso,
em todas as suas dimensões."
- João Morgado, 'Diário dos Imperfeitos' -
O cenário era desolador. O dia a nascer, caiado de nevoeiro e cinza negra, após uma noite de luta aberta contra o lume das chamas que lavraram a terra e o céu e abafaram as vozes dos homens. O silêncio, magistral. Só o crepitar fumegante onde antes havia som, luz, toque.
Sentados lado a lado, conseguia escutar-lhe a respiração a cavar-lhe os segredos acordados sobre o peito.
Largos minutos depois, falou. Mãos a deslizarem-lhe sobre o rosto enrugado. O olhar a morrer-lhe lentamente na penumbra do cansaço. O mundo inteiro a gritar-lhe dentro da alma.
Escolhera a que, segundo o coração um dia lhe segredara, acreditava ser uma das profissões mais nobres do mundo.
- Pergunto-me se terá valido a pena... – Voz cadenciada, como quem saboreia uma lentidão amarga – Quando era miúdo, sabia que o meu futuro seria ter a maior missão que um homem pode ambicionar: salvar vidas. Sabe, sempre achei que não se tratava apenas de viver a aventura, mas sim viver aquilo que realmente nós somos. E eu queria ser um herói.
- E não é? – Questionei.
Sorriu-me. Ou seria um esgar de revolta... Pensei depois.
- Os heróis são perfeitos. Hoje... Hoje, eu apenas conto todos os fracassos que alcancei. – Sussurrou, a soluçar a dor contida na garganta – A vida de quantos vi partir? Quantos me ficaram nas mãos? Quantos matei com um coração que deixou de sentir?... Depois de tantos anos, percebo que preciso de sonhos para poder viver. A realidade mata.
Os heróis são perfeitos...
Nessa manhã, foram estas as palavras que me tocaram.
Há pessoas que nunca tiveram que encarar a morte nos olhos. Nascem, vivem e, num repente, o silêncio adormece-as sem que nem disso se apercebam. Outras, vislumbram-na dia a dia como se ela fosse uma carruagem da vida em câmara lenta, cujo fim será sempre cedo demais. Ele era um desses heróis. Um herói que decidira abraçar uma missão sem ponto final.
Os heróis são perfeitos...
Será? Ou será que, tantas vezes, somos tão somente heróis sem poderes? Ter uma missão talvez seja a missão de todos nós. Mas, se calhar, nem sempre estaremos certos dos objetivos dessa missão. E, porventura, será por isso que o fracasso nos dói mais.
Aquele homem acreditara sempre que a sua missão era salvar vidas. Assim, salvar de uma forma perfeita, exemplar. Contar-me-ia ele depois como recordava tantas vezes, com a agonia a apertar-lhe o peito, aquela mãe que lhe morrera nas mãos, enquanto tentava salvar-lhe a vida. A vida dela, naquele momento toda sua, a esvair-se-lhe por entre os dedos, sem que ele nada conseguisse fazer.
Mas acredito que, nesse tempo, nem o filho que lhe tirara do ventre o fizera perceber o verdadeiro objetivo da sua missão. Quisera ser perfeito e não entendera que conseguira cumprir a sua missão de salvar vidas. Quisera ser perfeito e não compreendera o objetivo dessa missão. Desde que aquela mãe em paragem cardiorrespiratória, entrara dentro da ambulância e para ela voltara todas as suas forças, o objetivo da sua missão fora salvar-lhe a vida que tinha dentro dela. Quisera ser perfeito e não conseguira perceber que a vida acontece quando se aceita um fracasso onde coube uma grande vitória. E, ainda que a dor da realidade nos mate por dentro, é necessário seguir em frente, cientes de que muitos objetivos cumpridos compõem uma grande missão. Porque assim é a vida e não existem heróis perfeitos.
Haverá, sim, heróis sem poderes. Heróis que se desmancham por dentro e por fora para salvar vidas que não são suas. E que, quando fracassam, se permitem seguir caminho. Porque, por vezes, é apenas o fracasso que nos concede a conquista de outras vitórias.
- Depois de tantos anos percebo, por fim, que afinal preciso dos meus fracassos para poder viver.
Não mais nos cruzamos. Mas desconfio que depois desse dia, o coração lhe voltou a sonhar...
REVISTA VICEJAR
Nunca me pareceu tão conturbado como agora, este mundo em que vivemos. Nunca, como hoje, me deparei com pessoas tão ávidas de encontrar um milagroso GPS que lhes indique o caminho para o equilíbrio emocional que anseiam recuperar. Desorientadas pelas estradas da vida onde, como nómadas, foram montando tenda aqui e ali num processo de sobrevivência, muito mais interior do que exterior. Perdidas como náufragos, à espera que uma qualquer luz ao fundo do túnel lhes venha sussurrar ao ouvido que são tudo menos a escuridão que reside dentro delas.
E creio que essa aventura começa a ter consequências desastrosas. A um náufrago, qualquer tosco pedaço de madeira lhe parece tábua de salvação. E por aí andam à deriva muitos toscos pedaços de madeira com fétido cheiro e sentido de oportunismo, a luzir esperanças falsas e descabidas.
A consciência e conceção do todo que nos rodeia e afeta, é o resultado de uma aprendizagem tanto intelectual como emocional. O desejável seria que qualquer alteração fosse sempre no sentido da expansão e não da limitação. Na história evolutiva do ser humano, razão e emoção têm vindo a caminhar de mãos juntas e seria benéfico, inclusive essencial para todos, que assim continuasse a ser.
Mas em anos recentes tem vindo a instalar-se um estranho modelo de transformação e reforma da psique, que parece deixar uma elevada quantidade de gente em alucinado estado de embriaguez mental. Dele a derivar uma sui generis fuga à realidade e exacerbada empolação do ego. Tornou-se moda deixar de pensar. A entrada apetecível que consta no cardápio miraculoso do dia a dia, dá-se pelo nome de “Sentires”.
Assim me respondeu com ligeira prontidão certa pessoa, há uns tempos atrás, quando a indaguei sobre o que pensava em relação a determinada questão, que ela não pensava nada, ela sentia… Eu, por minha vez, senti que começava a pensar que a dita pessoa ou considerava possuir certo défice cognitivo (o que não acreditei muito ser o caso) ou padecia de proeminente nível de ignorância. E neste campo, é preciso ter algum cuidado porque a ignorância (não a que é fruto da falta de conhecimento porque não se teve oportunidade de ir mais além, mas sim aquela que é exibida orgulhosamente alto e bom som por aqueles que, ignorantemente, a confundem com caridosa humildade), essa ignorância, como dizia, é como o bocejo. Contagia.
O pensamento revela-se como uma das competências mais importantes para o ser humano avançar. Uma indispensável ferramenta de evolução. Importa reconhecer que nos movemos através do nosso pensamento e com ele aprendemos a contemplar, questionar, buscar respostas e a tomar decisões na busca de uma direção.
Descartes tinha a certeza de que a única certeza absoluta que temos é a da nossa existência, quando nos legou o seu “penso, logo existo”. Pois diria eu que se existimos, temos a obrigação de pensar. Ainda que pensar exija esforço, disponibilidade, tempo e até algum sacrifício. Afinal, obriga-nos a sermos responsáveis por quem somos e pelo que andamos por aí a fazer, escondidos dos outros e de nós mesmos, por baixo de ilusórios sentires que queremos acreditar nos tornam iluminados e iluminam os nossos trôpegos caminhos.
Procuremos estar atentos: num espaço repleto de corações sequiosos de alimento para a alma, qualquer parca e desnutrida comida enlatada e pronta a servir, toma o gosto de iguaria.
É, portanto, urgente pensar.
A capacidade de pensar, de questionar, refletir e concluir, é fundamental para a formação de opiniões próprias válidas. E é o pensamento que nos permite ajuizar sobre os nossos sentimentos e emoções. Não o contrário. Como tal, pensar permite-nos construir o caminho para o desenvolvimento da necessária inteligência emocional, da qual os homens e a nossa sociedade parecem andar cada vez mais vazios. Principalmente aqueles que vivem na certeza absoluta e inquestionável de possuir certificado na matéria.
Não me julgue, pois, o leitor uma negacionista das emoções. Muito pelo contrário. Admiro e aplaudo essa nobre capacidade de ser capaz de sentir. Essa sensibilidade para desabrochar como flor de lótus no meio do lodo, que tanta falta sempre tem feito à humanidade.
Mas procuremos não colocar a carroça à frente dos bois. Sentimos porque existimos, mas percebemos que existimos porque (nos) pensamos e com essa capacidade de pensar nos descobrimos como seres únicos, com características, competências e limitações próprias. Só dessa forma, disponíveis para refletir sobre a compreensão de nós mesmos e do mundo à nossa volta, efetivamente crescemos e evoluímos.
Antes de conseguir voar, tem que se aprender a caminhar sobre terra firme e é o pensamento que nos permite consegui-lo. Só depois estaremos à altura de alçar voo por mares mais profundos.
Em jeito de conclusão, e salvaguardando o pequeno animal que de nada tem culpa, não sejamos como galinhas, com as nossas despropositadas ânsias de mostrar ao mundo grandiosos diplomas de vida. Saibamos (re)aprender a pensar para sentir e viver com sabedoria.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Há diálogos que se fazem sempre no lugar de dentro. O lado mais fundo que o amor desconhece, quando vive apenas com o sabor vazio das agonias e do sol que nunca despertou.
E, no enanto, grita como se fosse gente! Rio-me.
E dizem que sou louca porque me rio da força que lhes morre todos os dias e não sabem.
Abraçam mágoas e desalentos nas sombras frias do que não são. Passam distraídos, a cantar enganos, pelas rochas e pelo chão do tempo enquanto gozam o suor que nunca lhes caiu do rosto.
Não entendem os loucos de si. Aqueles que espreitam os segredos da terra com o cuidado de um pólen macio. E nele se deleitam, invisíveis, porque não precisam de ser vistos para existirem nas cordas musicais da esfera viva.
São poucos e tímidos os tontos lúcidos! Uma espécie em vias de extinção, creio. Acusados de matar palavras ocas e singelezas impostoras.
Mas desse leito entorpecido continuo a preferir as distâncias que nunca se fazem tarde.
É assim, em mim, que me adormeço em liberdade.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Há, nos versos com que desenho as páginas do meu livro, tanta coisa escrita que gosto de olhar com coração de criança. Aquele com que se aprende a ler o verdadeiro alfabeto da amizade e do amor. O meu livro de bonitas lembranças e esperançados sonhos, onde o menos bom não deixou de existir, mas aprendo a deixar riscado. Que fique somente a lição que hoje me salva. E todos aqueles de quem gosto. Porque onde está o meu coração, aí mora o meu tesouro.
Gosto de ti…
Gosto de ti, que me entraste pelo espírito dentro com a tua positiva loucura e me fazes refletir, livre, um momento, em tantos momentos, e nos fizeste descobrir irmãos num abraço fraternal. Tu, que me fizeste saber, com paciência e carinho, que o fundamental é o diálogo de alma para alma, mesmo que, por vezes, nele habite silêncio.
E de ti que, quando caem as primeiras chuvas e tudo adivinha inverno, me embalas o coração triste e me garantes que as sombras não choram eternas e a harmonia do peito será em breve.
E de ti, que me inspiras o sentimento humilde dos instantes, de ti que tens o aroma quente da fogueira e da chama que aquece, que me aconchegas entre as duas mãos por inteiro. De ti, que tens cheiro a lar e me fazes sentir família e casa. E aumentas um momento de saudade, apenas pelo carinho que ofereces.
E de ti, que me ensinas que Deus é um ser muito simples que nunca precisamos de explicar. Porque é ar, é água, é terra e fogo. E me fazes saber que ele é mão que me sustenta na poeira e na alegria de todas as horas que também me esqueço de viver.
E de ti, que és essa força extraordinária e quase inabalável, que confia sem lamento e se entrega ao cumprimento da vida, por vezes, a ignorar(-te) quem carrega a morte nos braços.
E de ti, com a tua sensível genuinidade a que não seria capaz de ficar indiferente. De ti, que tens a espessura do mar nos lábios e o hálito fresco das águas, de ti que me repete o pensamento e me sabe ler a alma na sua total nudez, com a distância dos olhos.
E de ti, que és o caminho da ponderação e a cascata silenciosa onde me deixo escutar para, depois do descanso, encontrar os braços da coragem e regressar ao porto seguro de onde, tenho a fiel certeza, nunca quererei partir.
E de ti, minha fonte de inspiração, que tens a vontade escrita no rosto, de ser ainda muito além e lutas todos os dias para abrir as portas que se fecham, na medida exata da imensidão que transportas no regaço.
E de ti, voz que chora e grita no canto da alma, mas sempre flor a brotar, à espera que a esperança se erga mais uma e outra vez. Em ti, sei que sou perfume e pétala nunca esquecida.
E de ti. Sim, também (muito) de ti, que tropeças nas histórias que tens dentro do corpo cansado e não tens coragem de me contar. Mas que não deixa de me iluminar com uma palavra e mais nada, ou com o silêncio e mais nada.
Gosto de ti, e de ti, e de ti.
Gosto de vós porque me completam, porque são tanto do que em mim posso encontrar. Vós, que me fazem perceber que o universo pode ser, assim, tão pequenino num sentido deslumbramento, quando o muito é aquele tão pouco de que apenas preciso para seguir a viagem com a melhor bagagem. Com um sorriso que basta. Um abraço que chega. E me deixa ter nas mãos, simplesmente, o mundo todo.
E o que eu gosto de ti, hoje, é essencialmente esse abraço apertado que se torna laço a cada ano que passa. E me faz perceber que a vida é-nos, essencialmente, a vida dos outros em nós e, a amizade, a melhor ternura iluminada por outra claridade.
Hoje, falo-vos baixinho entre as lágrimas de chuva que escuto cá fora. E digo-vos que gosto de vós. Que são Únicos e que, perto de mim, nesse fio invisível que enlaça e no reflexo do que me encanta, fazem crescer o sentido mais meigo e profundo do que entendo ser a verdadeira religião.
E agradeço-vos. Porque é o amor que fica.
É o amor que fica sempre na memória… e no coração.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Foi há muitas estações atrás que o meu caminho se cruzou com o de um amigo que me ficou, para sempre, no coração e no meu mundo.
Coincidentemente, foi também por alturas desse mesmo encontro que perdi o meu único avô, com quem partilhei um percurso inteiro, até ao instante da sua morte, com a longa idade de noventa e seis anos. Uma relação nem sempre feliz, nem sempre justa, com umas quantas mágoas e amarguras à mistura, como é devido a todas as ligações daqueles que verdadeiramente se amam, mas nem sempre o conseguem expressar com a vontade desejada.
No entanto, recordo com nostalgia que, a poucas horas da sua partida, me foi oferecido um privilégio que, poucas vezes, a vida tem a gentileza de nos conceder. Enquanto deitado no leito do hospital, foi possível aproximar-me dele, olhar o seu rosto débil e cansado pousado, tranquilamente, na almofada. E, nesse momento, quase involuntariamente, a minha mão tocou, gentilmente, nos seus traços e expressões tão cheias de fragilidade. Senti-o estremecer nesse meu toque de despedida quando virou os olhos, silenciosos, na minha direção. Percebi, então, no preciso momento em que ele entregava o seu corpo à morte e eu, o meu espírito às mãos do perdão, que o toque é uma forma de amor que cura muitas feridas e permite que a paz nos invada, silenciosa e docemente, como um lenitivo e um ato de gratidão.
Há algumas semanas atrás, e após todo esse longe em que o tal meu amigo veio ao meu encontro, na mesma altura em que o meu avô partia, tive oportunidade de ouvir a sua voz ao telefone. Uma voz que, perdida no tempo, quase não reconheci. A verdade é que, ao longo de quase duas décadas, todo o nosso contacto se resumira a uma distância de meio metro, separados pela tela de um computador. Notícias e sentimentos partilhados num universo invisível, só assumido nas letras trocadas através de um teclado.
É verdade que o som da sua voz, volvidos tantos anos, deixou o rasto de uma comoção única, que me fez recordar, subitamente, a citação de Clarisse Lispector, “e receber o telefonema de um amigo, e a comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que prazer de os outros existirem e de a gente se encontrar nos outros.”
Sim, creio que ouvir a voz de um amigo saudoso respirar no nosso interior, é como um florir de primavera no peito da saudade. Reencontramo-nos numa estranha, mas deliciosa música de afeição e bem-querer, que nos perdura infinitamente.
Mas o certo, porém, é que os afetos têm e precisam também, muito, de uma profundidade sensitiva.
E esta é a mensagem que, na memória, te quero deixar ficar hoje. A ti, meu amigo. E a todos os que devem perceber a urgência dos seus gestos simples, mas maiores, na solidão daquele que é o mais íntimo firmamento de cada ser humano.
Mostrar-te que, apesar da tua voz soar plena e imensa aos meus ouvidos, uns centímetros de separação não chegam ainda ao lá atrás onde, um dia, te descobri em sorrisos e alegrias. Emoções que hoje, já te não vislumbro, sejam essas sombras fruto de acanhamento, dúvidas, incertezas ou a necessidade de te recolheres nos teus silêncios.
Meu amigo, que nunca o teu sentir perca o olhar da sensibilidade. Que ele possa sempre alcançar a importância de um abraço que, quando toca com calor a mão do outro, lhe oferece uma parte de ti mesmo e de tudo aquilo que de melhor és.
Na dimensão de cada toque, que nos faz estremecer por dentro, o afeto perde a transparência e ganha todas as cores que nos iluminam com o rosto da ternura, no encontro de sintonia perfeito. E faz-nos crescer até ao infinito da nossa humanidade.
Habita um dom nas nossas mãos!
Porque quem nos toca nos deseja com ele, porque o toque é um abrigo na nossa fragilidade, é tão bom, é tão essencial quando a pele se nos descobre a dizer as palavras que o coração quer falar, “estou aqui para ti; escuta-me: quero-te bem!” Ou ainda, “parte em paz”.
Afinal, é pelo contacto do tacto que sentimos, pela primeira vez em nós, o pulsar da vida…
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Alfred Adler, o conhecido psicólogo austríaco, referia que as únicas pessoas normais são aquelas que não conhecemos bem. Porque a verdade é, muitas vezes, uma terrível arma de agressão…
A loucura causou-nos sempre enorme pavor. Parece-nos destruidora da nossa identidade. Por conseguinte, torna-se-nos urgente justificar essa loucura da qual sabemos não conseguir fugir, com a reinvenção de uma total e completa normalidade (e tantas vezes, paranormalidade) que em nós permaneça porto seguro. Porque será sempre mais fácil apontar a loucura dos outros do que ter coragem suficiente para ir ao encontro da nossa.
Recordo parte da letra de uma canção dos Fréro Delavega, extinto duo musical francófono: “Quando vêm as tristezas/ Os maus tempos/ Os medos tomam-me de novo/ E à distância eu ouço/ O canto das sereias” (“Quand viennent les peines/ Les mauvais temps/ Les peurs me reprennent/ Et au loin j'entends/ Le chant des sirènes”).
As sereias. A ilusão da beleza e do canto que enfeitiça os homens até que se percam no fundo… de si próprios. Diria eu que é tarefa de valentia para muito poucos, demorarmo-nos pelos espaços do tempo num toque imprevisto com o reflexo das trevas que nos compõem. Há sempre, escondidas, figuras com quem preferimos não nos encontrar. Lugares de escuridão súbita onde habitam os fantasmas que nos conhecem por dentro.
Viver numa realidade de luz construída por nós mesmos, à nossa medida, que se nos encaixa como um perfume perfeito, é inebriante. É bonito. Faz-nos socialmente elegantes e poderosos. E exigirá com toda a certeza um dispêndio de energias muito inferior, quando comparado com o esforço hercúleo necessário para ficar cara a cara com os demónios que vemos com um rosto igualzinho ao nosso, quando ao espelho nos descobrimos pelo avesso desses sentidos que julgamos como sendo os mais nobres e corretos.
Parece que nos basta o alarido dos sentimentos vazios com que tantas vezes nos vamos vestindo. E nele resistimos de olhos fechados. Até quando?
Queremos viver à boleia de uma utópica saúde mental que esconda o nosso verdadeiro ‘eu’ e nos permita fugir do caos interior em que diariamente nos rebolamos quase até à exaustão. Questiono-me se não será esse o caminho exatamente oposto àquele que deveríamos seguir. É que, enquanto nos inventamos nesse mar de distâncias que nos consolam, mais visível me parece que nos vamos afogando nas ondas da vida, como os marinheiros que seguiam o canto das sereias. Paradoxalmente, crentes de nos encontrarmos inseridos, em pleno, nesta realidade que, aos quatro ventos, pregamos como irreal.
Mais um outono avança por nós e enquanto nos afundamos nas areias movediças a virar as folhas para enganar o tempo, será sempre mais suportável rasgar as páginas do nosso próprio livro e acreditar que, passado o inverno, novos tempos surgirão debruçados sobre uma primavera de cor que nos iluda os infortúnios.
Em prol de uma verdadeira saúde mental e de um efetivo sentido de humanidade, para quando terão as sombras hora marcada na nossa agenda demasiado distraída?
REVISTA VICEJAR
Aqueles que são Nossos...
São aqueles a quem agradecemos por sermos nós.
São o Amor que nunca se perde com o tempo.
A história que nos abraça devagarinho num eterno “preciso de ti”.
Os beijos que nos sabem a luz, de braço dado com o lado esquerdo do nosso peito. E nos contagiam a vontade de sorrir, apenas pelo modo genuíno com que são capazes de nos olhar.
Os que se procuram em nós e, às vezes sem querer, nos fazem morrer por amor.
Todos os abraços onde descansamos as lágrimas e acordamos o riso.
O trabalho mais gratificante de uma vida inteira onde o tempo investido não compensa em dinheiro, mas nos enche a casa e os bolsos de outro infinito valor.
Muitos dias, o equilíbrio na balança entre sensibilidade e bom senso. Por isso, todos os ‘eus’ que não temos medo de emprestar e, mesmo que nos sejam devolvidos rasgados, reaprendemos juntos a costurar sem remendos, como uma grande colcha (im)perfeita, feita de pequeninos afetos.
São o sentido certo para o tanto que nos faz falta.
O sempre tudo nos dias onde cabemos menos.
Aqueles com quem nos sentimos imensos na nossa pequenez perdida de um “preciso do teu colo”. O lugar-sol nos caminhos tortos da vida e o abraço único que nos pode levar ao céu.
São os nossos olhos cheios de sonhos na esperança de acontecerem. O orgulho e a vaidade das nossas vitórias.
São os que nos obrigam à coragem de lançar voo sobre as tempestades. E a rede que nos pesca, quando a fragilidade das asas não suporta os maiores ventos e marés.
Por isso, são os que nos ensinam o direito às derrotas e ainda a certeza de que, no comboio da vida, nunca nos deixam sós na próxima estação.
Aqueles que são Nossos... são a pele que trazemos em nós e o corpo que nos veste a alma.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Todos os anos, no dia do aniversário dela, a lembrança avivava-lhe a memória…
Não era apenas nesse dia. Recordava-se dela sempre, sem paragem no tempo. Um feito que antes nunca acreditaria ser possível. Mas existem pessoas assim. Pessoas que em nós se encerram como madrugadas anunciadas que não mais voltam a adormecer. Um doce lume que nos incendeia e, todavia, nos dá vida.
Ela era esse anjo que, ironicamente, o queimava por dentro. Inesperada e teimosamente, no perfume da paz que lhe trazia, obrigava-o a um encontro no espelho com todos os seus demónios. Tornara-se-lhe difícil compreender a ambivalência deste sentimento do qual nunca mais se livrara. Um misto de punição e deleite, talvez.
Por isso, era só nesse dia, quem sabe como se oferecesse também um presente a si mesmo, que se permitia deixá-la pousar-se-lhe, livre, sobre as linhas do pensamento.
Poucos sabiam, como ela, do coração de menino que lhe habitava o peito, das ânsias e sombras adormecidas nas paredes interiores do seu mundo. Mas todos lhe conheciam o génio forte e desbravado, as manias imprevistas que o deixavam ausente dos outros em horas mortas. Como tal, não lhe estranhavam a ausência, todos os anos, nesse dia.
Pela noite dentro, portas trancadas ao mundo, a solidão do escuro na sala e na alma. Apenas uma garrafa de vinho solta na mão e o brilho da lua por companhia. Os passos, conhecia-os de memória. Aproximava-se da janela como se tivesse um receio tolo de que, em algum lugar, ela lhe adivinhasse as emoções. Prendia o olhar no infinito e, nessa intimidade cúmplice que partilhava somente consigo, pedia emprestada aos mistérios da noite, uma poesia para lhe oferecer. Sabia que essa seria sempre a prenda mais linda, e única possível, que conseguiria alguma vez conceder-lhe.
Uma lágrima, lenta e mansa, teimava nas curvas do mesmo caminho. Tão pobre se sentira quando, incrédulo, percebera que ela acreditara mais nele do que ele próprio alguma vez conseguira. Pois tão mágicas lhe soaram aos ouvidos, as palavras com que ela o abençoara: “se um dia entrasses nos meus olhos, encontrarias a beleza que vejo dentro dos teus”.
Não precisava de mais vozes, bastava-lhe apenas a dela. E a sua, a contar-lhe que a vida é o produto de todas as escolhas. E o medo, um dia, decidira por ele.
Preso ao luar, erguia o copo no ar. Um sorriso salgado nos lábios.
- Um brinde a ti, Paloma!...
No seu coração de criança, gostava de acreditar que, num longe distante, o vulto da mulher que passou, feliz, pelos seus sonhos sem lhe dizer adeus, escutaria esta oração.
Quem sabe, talvez ela escute. É que o maior perdão… é feito de silêncio.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Não me recordo do dia exato. Sei que era manhã. Uma manhã que anunciava o sabor quente de dias de sol. E junto ao mar, a brisa tinha aquela doçura da primeira leveza de uma estação sempre bem-vinda, com esse profundo cheiro a algas e sal a invadir-nos por dentro. Há sensações que o tempo não apaga. E há imagens que a memória não esquece nos espaços interiores que nos habitam. Como aquela. A ambulância a chegar silenciosa, tão silenciosa como todos os olhares que para ela se voltaram inquiridores. Ambulância e silêncios, um paradoxo que o pensamento tem dificuldade em emoldurar.
Seria porque o instante fosse diferente, seria porque o cenário tinha uma magia capaz de contradizer as hipóteses mais óbvias, a verdade é que, apesar das certezas sobressaltadas dos presentes, o momento não parou nos gestos de quem passava. A vida urgia urgências por cumprir.
E ali, mesmo à beirinha do muro caiado de branco, naquela manhã de ameno sol, sobre a voz de um azul e verde-água vestidos de infinito, o jovem de corpo débil e rosto frágil, deitado numa maca e amparado pelos braços solidários de um bombeiro, levantou os olhos desmaiados para o horizonte à sua frente. Não sorriu. Não o conseguiria. Apenas… suspirou longamente.
Gostaria de acreditar, para alívio da minha consciência adormecida sobre um coração tantas vezes ingrato, que quase lhe senti o respirar das emoções que na alma se lhe despertaram. Emoções tão dele. Revelações tardias de obrigados que ficariam por dizer à vida. Ou talvez não… Talvez agradecimentos de despedidas e gestos não deixados por cumprir.
É nestes momentos, quando o destino nos obriga a presenciar o inesperado lado humano da humilde redenção, que deveríamos encontrar a oportunidade de compreender os que nos rodeiam, entrar-lhes nas veias, no sentir-lhes do mundo, para que todas as inseguranças que nos compõem pudessem servir de lição ao ego que julgamos, tantas vezes, engrandecer-nos.
E o que sentiria a mulher ao lado daquele jovem? A que, num gesto de amor, lhe segurava a mão. Mãe, esposa, irmã, amiga… Creio que o coração de qualquer uma delas certamente ditar-lhe-ia a mesma dor e, simultaneamente, o mesmo sorriso triste que lhe visitava o olhar.
E depois do adeus, a ambulância partiu novamente adormecida no mesmo silêncio com que chegara. O mundo, a vida… continuaram.
Não gosto da expressão “último adeus.” Se é um adeus, então é porque será sempre o último. Antes disso, há vida. E da vida só nos despedimos quando dizemos adeus. Adeus, simplesmente. Não haverá outro. Por isso, sempre preferi dizer “até já”. Até já, mesmo quando só volte a ver-te num dia sem tempo. Até já, mesmo que nunca mais. Porque desconheço o futuro. E ainda bem, não gostaria de sabê-lo. Não me pertence enquanto não me acontecer. E a acreditar que existe, dá-me sempre alento para todos os “até já” que me moram na esperança do peito.
Não sei da Fé dos Homens. Acredito que cada um tenha a força da sua. Eu tenho a minha que, nessa manhã de sol, me fez perceber definitivamente a importância do adeus. Continuo a duvidar que possa ser o último porque a vida continuou para mim. Mas a dele, daquele jovem, talvez tenha partido pouco depois.
Amparado pela sua fé. Com o mar dentro dos olhos… Para sempre.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Existem momentos da vida que nos acompanham permanentemente, pelas emoções do instante que despertaram. Parece-nos que os trazemos aconchegados nos cantinhos da memória, só para nos oferecer um abraço de calor quando o tempo frio teima em despir-nos as esperanças.
São momentos que nos fazem recordar o que realmente vale a pena. Temos muitos, silenciosos, dentro de nós, à espera que lhes demos as mãos, de vez em quando. Mas somos crescidos demais para os escutarmos, porque apenas nos sussurram de mansinho ao lado do pensamento. E nós, já sabedores de todas as vidas, porque somos crescidos, perdemos há muito essa sabedoria tão particular de ouvirmos a nossa vida que, curiosamente, parece ser a única que desconhecemos.
Gosto de recordar o espanto da minha infância, como se o mundo se me tivesse revelado por inteiro, num dia de inverno em que a minha amiga Fatinha, levou para a escola a sua caixa de vinte e quatro marcadores coloridos. “Foi o meu tio que me ofereceu!”, disse-me com a sua voz terna, de menina, a rebentar de orgulho e uma certa pontinha de vaidade.
Os meninos da aldeia não tinham, assim, um “rico tio” como a Fatinha. Eu também não tinha. Por isso, com os olhos emocionados, a espreitar pelo canto da caixa de madeira, onde ela acomodara os seus magníficos marcadores coloridos, perguntei-me de imediato se a minha amiga saberia do fantástico tesouro que tinha em sua posse. Eu, que adorava desenhar e pintar, via ali todas as cores que poderiam dar encanto aos meus mais bonitos sonhos artísticos de criança, esculpidos a lápis de carvão numa simples folha branca de papel.
E o sol entrou-me pelo rosto dentro, desdobrado num gigantesco sorriso com sabor a verão, quando ela me garantiu que, sempre que a professora nos mandasse fazer um desenho, partilharia comigo tamanha raridade.
Gosto de recordar com saudade este instante. Um dos muitos que me permitiu à memória aprender lições imprescindíveis sobre o que realmente importa.
E o que importa? Importa esse olhar de criança, esse sentir de criança. Esse descobrir da simplicidade da vida com uma admiração tão imensa, que apenas o silêncio é possível de nascer como resposta capaz de ser proferida. Não vá aquele assombro assustar qualquer adulto que passe por perto. É que os adultos não sabem ler as emoções ditas no silêncio. Porque cresceram, ficaram cegos.
Para as crianças, o relógio do tempo não tem ponteiros. Já os adultos, só conseguem ouvir o som do tiquetaque. Para as crianças, o tempo é despreocupado, tranquilo, tem um compasso próprio. Para os adultos, parece que cada dia é uma réstia de passado, com ansiedade de futuro, num tempo que os atravessa cada vez mais depressa.
Enquanto as crianças constroem as suas estórias de forma poética, sem medo, e com elas voam para um mundo feito de arco-íris ao encontro da Terra do Sempre, são os adultos quem corre em passo acelerado em busca da Terra do Nunca, carregados de histórias que não os deixam sentirem-se em paz com eles mesmos.
As crianças seguem rumo a onde o vento as levar, num constante entusiasmo pela viagem. Os adultos, somente viajam ao ritmo do seu dorido “e tudo o vento levou”…
Já dizia Rubem Alves, entendido em coisas de crianças, que “viver ao ritmo de alegrias e tristezas é ser sábio”, e que “sapio, em latim, quer dizer, eu saboreio.”
O que pensam, tantas vezes, os adultos sobre o que as crianças pensarão sobre as suas vidas? Eu responderia, seguindo o dito popular, que “em terra de cegos, quem tem um olho é rei”. E creio, portanto, que será com elas, as crianças, que mais temos a aprender sobre estes assuntos do coração. Aí, nesse universo descomplicado que é muito menos ‘faz de conta’ do que o nosso, elas são reis e rainhas. E sabem, melhor do que ninguém, que tudo o que é demasiado pequeno para ser descoberto à vista desarmada, é o mais primordial, necessário e absoluto e, exatamente por essa razão, não pode ser escutado senão através da emoção.
A criança rainha que um dia fui ensinou-me mais esta, entre tantas matérias que fui aprendendo. Nos tempos de hoje, agrada-me sentir que o “… meu corpo de adulto pelo tempo foi esculpido, embora me sinta criança, num corpo crescido, com roupas de adulto, mas espírito despido…”, como escreveu o meu amigo Paulo Cesar, que tem cor de poeta na mão e olhar de criança no coração.
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
- José Saramago -
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
As coisas bonitas que em ti eu vejo
não têm corpo, não têm nome.
São pretérito perfeito do meu presente
na imperfeição do que a tua alma sente.
Como o sopro de vida que não conténs,
a força que te veste o corpo
a luz que se te solta do peito
o curso de um destino que não se detém
o abraço que nunca te morre
a coragem que sempre descobres
o tempo dos sonhos que despertas
o teu coração puro e nobre
o agasalho que te mora no olhar
a fonte onde buscas a fé.
O tudo que sempre foste.
O tudo que ainda és.
As coisas bonitas que em ti eu vejo
são os milagres raros do mundo
que me ofereces, como se fossem um beijo.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Adivinha-se como num céu de sombras que o encobrem.
Uma nuvem permanente e imortal em fios estendidos pelo tempo da vida. Numa linha infinita, lenta, adormecida, como um cigarro na ponta dos dedos tomado pelo vagar do esquecimento.
Os sons que decoram o espaço onde sustenta a existência do corpo, são invisíveis, impermeáveis e distantes, agarrados por uma corda que poderia soltar a qualquer momento. Mas não o faz. Porque tem medo da verdade, da solidão inacabada que o devora pelos olhares magoados e vazios dos que o aguardam.
Deu-se a si mesmo um sorriso irónico, enquanto abanou a cabeça desmaiada de tantos pensamentos a arderem-lhe na palidez seca das têmporas.
Quantos amores bêbados de mentira perdidos por este mundo cansado! Juntasse-se-lhe a eles, com pompa e circunstância, e fariam a festa de um circo com muitas palmas.
Sim, talvez fosse mais feliz assim, cheio de palavras inúteis, vozes lúgubres ou tontas e palcos feitos de cartas. Casas de príncipes sem reino, onde o engano é pilar construído por ilustres inverdades.
Inventaram-no dessa forma, trôpega, quando veio ao mundo, ou ter-se-á adornado a si mesmo das vestes simples que lhe deixam a alma tão a descoberto de tantos frios?
Talvez nunca o saiba com toda a certeza. Seriam precisas muitas vidas, dissera-lhe, um dia, uma velha cigana. Afinal, quantas línguas falas, meu filho? Questionara-o na sua voz rouca, com a mão desprendida sobre os olhos longínquos dele.
Nesse momento, soube por fim que, aqui nesta viagem, seria sempre um fiel desconhecido, de malas feitas, por estrada nenhuma…
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
No momento em que dou início a esta crónica, levanto o olhar, num mero acaso, em direção à janela da sala. Avisto a beleza fascinante de um horizonte magenta, com aquela mistura certa de azul e vermelho capaz de transformar qualquer pôr do sol numa incomparável e pura obra-prima, pincelada pela divina natureza.
Admiráveis e, simultaneamente, surpreendentes estes insólitos ocasos de cor e luz que o mês de janeiro nos pode proporcionar. Tempo de dias cinzentos, num dos meses mais frios do ano, principalmente no norte do país, em que o corpo pede o calor da lareira e, tantas vezes, o semblante nos divaga, melancólico, pela chuva que vai caindo sem cessar.
Singular contraste de atípicos céus luminares de inverno com a rotina desenfreada que vamos vivendo. Enquanto esta luz do céu de janeiro se vai espalhando em matizes de ouro e rubro em muitos nasceres e términos dos dias, acompanhamos uma sociedade mergulhada em sentimentos depressivos e de ansiedade, num panorama pouco esperançoso e impeditivo de alternativas para se reinventar, de modo a seguir em frente.
Incongruências de um universo tão soberbamente organizado que, sem bater à porta ou pedir autorização, nos oferece aquela bofetada sem mão e abana as estruturas deste nosso pequenino mundo, do qual sempre nos fomos considerando, cada um e todos juntos, senhores e reis.
Entretanto, continuamos a construir novos percursos, deitados nesta cama de incertezas sobre os contornos de batalhas que desejamos vencer. Talvez porque confiar é tudo o que nos resta na procura desse equilíbrio tão fundamental à nossa existência.
Encontrar a disponibilidade de um momento, ainda que fugaz, para pousar o olhar sobre o harmonioso e acolhedor cenário artisticamente pintado com estas inusitadas cores de janeiro, poderá, afinal, neste frio inverno da vida, ser simplesmente esse agasalho confortável com sabor de uma verdadeira canja de galinha para nos aquecer a alma.
Em jeito de despedida, hoje, dir-vos-ia, como a compositora e cantora polaca, Hania Rani, na sua canção ‘Leaving’ (tema que apresenta no álbum, Home):
“Are you leaving?
(…)
The doors are open, remember to take care”…
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
O que procuras tu, no céu, nestes dias que, às vezes, te parecem muito mais frios por dentro da alma do que por fora do corpo?
A que te referes quando apontas lições sobre o ser interior e profundo de cada um?
Sabes, talvez seja tempo de aprenderes com as crianças. Não com aquelas a quem instruis sobre o amor e depois carregas pela mão à procura do presente mais caro e brilhante, como as cores do pai Natal.
Aprender com as outras crianças. As que ainda não te ouviram dizer tanta coisa e fazê-lo de outra maneira (sempre me soou tão irónico quando um adulto diz, convictamente, a uma criança que é um pecado feio mentir…).
É tempo de aprenderes com as crianças a quem faltam palavras mas, quem sabe por essa razão, lhes sobra em sentimento.
Com as crianças que não precisam de deitar os olhos ao céu para confiarem que os prodígios se fazem na terra. A elas, por aqui, tudo lhes prende o olhar, tudo é sensação. Oferecem a ternura fiel e autêntica, sem ensaios. Aquela que lhes pertence, assim como lhes pertence o amor que sentem pelos que são tão seus.
Pormenores a quem só dá valor quem encontra valor no interior de si mesmo, porque vive cheio de uma matéria invisível aos olhares que andam sempre focados na luz efémera do que está por fora.
Aprender, assim, com as crianças, que sabem da única crença que nos deveria ser permitida.
Acredita, seria como agarrares um tesouro com as mãos, que há tanto tempo só conheces pelo nome de saudade, e guardá-lo como memória futura.
Mas sabes, para isso, precisas de recuperar a humildade perdida no tempo. E não continues a confundir a humildade com a falta de dinheiro, com a pobreza ou com a simpatia envernizada.
A humildade é um sentimento genuíno, cabe dentro de pobres e ricos e faz-se de gestos naturais, porque espontâneos. E intemporais, pois o que é hoje, continua a sê-lo de igual modo amanhã.
A humildade é a oração de todos aqueles que não precisam de rezar. Todos esses que não olham para um Deus, lá em cima, que lhes soa intocável, mas veem Deus tão pequeno que lhes cabe no tamanho do coração.
Esses que são feitos do verbo Amar, que é o princípio de todas as coisas.
Curiosamente, não é quando se mede a distância entre nós e o céu, mas sim quando se observa a distância que vai dos nossos pensamentos e palavras aos nossos atos, que se avalia a dimensão de profundidade e a capacidade de interioridade. O que talvez seja o mesmo que dizer, da consciência efetiva de quem se é enquanto pessoa.
Há movimentos que nos fazem sair para lá de nós. Deslocarmo-nos de nós em direção aos outros. É neles que encontramos a certeza de falar da verdadeira cumplicidade dos abraços.
E se assim fosse de cada vez que olhamos para o céu, não somente no Natal, mas ao longo de muitos anos e de uma vida, não haveria tanto desconcerto entre tudo aquilo que gostaríamos de ser e tudo o que, efetivamente, tantas vezes apenas somos.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
“Eu achava que religião não era para garantir o céu,
depois da morte,
mas para tornar esse mundo melhor,
enquanto estamos vivos”
- Rubem Alves -
Se existem momentos na vida das sociedades, que pressuponham a existência de Deus, esta época será um deles.
Chegados a esta altura do ano, imagino sempre, inevitavelmente, o que Deus quererá dizer-nos quando os homens afirmam o convite que Ele, um dia, nos dirigiu no sentido de olharmos e venerarmos a exaltação do Criador que ofereceu o Filho em sacrifício pelos nossos pecados (São João 3:16, Porque Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o Seu Filho único, para que todo o que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna).
A reflexão, a humildade, o recolhimento, a procura efetiva sobre o sentido de existência… por onde andam? Acreditar-me-ei cega de fé porque não os vejo no meio de tamanha turbulência de festas e iluminações antecipadas?
Escreveu, certa vez, Marie von Ebner-Eschenbach, que “haveria muito menos mal no mundo, se o mal não pudesse ser feito sob a aparência do bem”. Sinto-me levada a concordar com cada letra da escritora.
Nada melhor do que esta quadra para confirmar como a relação tida com as palavras é tão diferente da relação tida com as ações.
A realidade espiritual adorna-se de rituais pouco vividos e ainda menos sentidos.
Os dias transformados em mais uma passagem que desgasta e satura. O encolher de ombros, a indiferença, a sensação aborrecida do dever cumprido, o cansaço da partilha fingida, a passividade na intenção de oferecer o que se possa ter de melhor. Talvez porque, lá dentro, residam somente sombras e névoas que impedem de ver outra luz que não seja a que se julga luz própria.
No fundo, um tempo e lugar estranhos onde do amor muito pouco se experimenta.
A bem de ver, presépios, palhinhas, manjedouras, cordeirinhos, não fazem milagres. O milagre acontece quando o fazemos acontecer, por nós e, muitas vezes também, em nós. O milagre acontece quando celebramos a fé que nos impele a caminhada, a esperança de tornar melhores os instantes simples, a ousadia de tocar o outro e por ele fazer a diferença num ato que poderá parecer insignificante mas que, apesar do pouco, se torna sublime.
Para quando abrir a alma a uma relação de intimidade connosco mesmos? Com frontalidade, sem o coração posto num protagonismo descabido e que muito pouco alimenta o que existe de verdadeiro bem no interior do peito?
Interessarmo-nos, verdadeiramente, mais por nós do que por aquilo em que desejamos encaixar-nos para mostrarmos aos outros um suposto ‘eu’ convencionado?
Perceber que nesta órbita onde queremos tanto acreditar não existirem impossíveis, só a consciência do quanto somos limitados, pode permitir-nos alcançar esse ponto de felicidade pelo qual tão desesperadamente ansiamos.
Sentimentos puros e autênticos: os únicos que podem e merecem ser oferecidos em nome de Deus, os únicos que nos podem transformar num presente exclusivo.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
“A aranha sobe pelo fio da própria baba.
É a imagem do bajulador, que não tem outro meio para subir”
- Vitor Caruso -
O dia 9 de dezembro foi a data instituída pela ONU, com a assinatura da Convenção das Nações Unidas, para relembrar o Dia Internacional Contra a Corrupção.
Corrupção faz-me recordar uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, do seu livro ‘Último Volume’, onde o escritor nos encaminha para uma deliciosa reflexão sobre o engraxanço nas relações sociais. Crónica de um livro já bem velhinho, mas tão atual no conteúdo, como é bom de reparar a quem a ela tiver acesso.
Nessa altura, achava o autor que, em tempos idos haveria um número reduzido de engraxadores, embora dignos do nome, porque finos na perceção do sentido de oportunidade, já que então, a atividade não seria socialmente bem aceite.
Mas o esforço na profissão deu lugar a um aperfeiçoamento que parece até bem recompensador. Ao ponto de os não versados nesta matéria, principiarem a ter enormes dificuldades para vencerem na vida. Dirá o escritor que o culambismo estará como o saber falar em inglês, para a nossa sobrevivência na sociedade.
Ora, diria pois, que por trás de um graxista viverá sempre um letrado na mentira, um mestre na arte das relações públicas da maledicência velada, um oportunista pequenino que aguarda alcançar o patamar dos supostos grandes, onde se entenderá, quiçá, mais realizado e feliz.
O humorista brasileiro, Jô Soares, terá dito certa vez que “gente falsa não fala, insinua. Não conversa, gera intriga. Não elogia, adula. Não deseja, cobiça. Não colabora, interfere. Não participa, se infiltra. Não sorri, mostra os dentes. Não caminha, rasteja pela vida sabotando a felicidade alheia e sobrevivendo dos seus restos”.
Após trinta anos volvidos sobre a crónica de Miguel Esteves Cardoso, assistimos ainda e, porventura cada vez mais, a estas ambiciosas tentativas de tantos subirem mais e mais um degrau, atuando por meio da lisonja, numa ode à cultura da sicofantia, que inunda particularmente alguns contextos sociais e que soa de forma visível na prática da vida quotidiana de muitos.
Estaremos todos dispostos a compactuar com o sistema instaurado? Será que o culambismo deveras compensa?
Cita um provérbio hindu que “as línguas dos bajuladores são mais macias do que seda na nossa presença, mas são como punhais na nossa ausência”. Lembremo-nos, então, que “são os que hoje te dão a mão e amanhã o punhal no coração” (Hugo Amaro, crónica de opinião, JM, outubro de 2020).
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Sentado num banco, entre as folhagens e as sombras despertas, pensa. Sim, ele ainda é capaz de pensar. Só os mortos deixam de o fazer. Enquanto for vivo, mesmo que as ideias lhe venham à cabeça, baralhadas ou dispersas, e mesmo que mais ninguém o compreenda, haverá espaço para o entendimento. Ainda que seja simplesmente o seu.
E o que pensa ele? Que há uma certa magia no encontro com as solidões do outono, quando o sol é ténue e morno. É um sol que ilumina sem aquecer e, por isso, quando o corpo lhe toca em tudo o que vive, reflete-se como num espelho onde ele se revela.
Experimenta a pulsação da estação como se bebesse instantes felizes do presente. Como se estivesse a saborear, com o prazer da lentidão, um cálice de um vinho amadurecido pela longa viagem e que degusta com agradável conforto.
Aprecia a memória de tudo aquilo que no passado o perturbou e hoje constata, com um riso de palhaço antigo que, afinal, lá onde foi e aconteceu, perdia-se demasiado em tolas ânsias de sofrer.
No outono, os olhos sobre as coisas são-lhe mais demorados. São como os olhos de um bicho atento.
Acarinha-se nas brevidades belas e descomplicadas e nelas descansa os sentidos.
As fervorosas certezas afloram-lhe na rugosidade das mãos onde o toque da ternura já só consegue ser naquilo que a pele esconde por dentro.
Fica calado. Contempla sem cismas. Para cá dos lábios consumidos pelas horas de muitos anos, não encontra dentes que saciem a fome, mas habita o sabor sábio de outros órgãos, como os da alma.
Tornou-se um poeta de si que se salva, todos os dias, pelo que ri dele próprio.
Não sabe quanto mede ou quanto pesa. Nem isso o preocupa, porque não lhe apetece chorar lágrimas secas sem sal.
E enquanto saboreia o vagar que se lhe oferece para contar as folhas que caem das árvores e no chão adormecem contentes, descobre que, por trás da luz caída do momento, vai espreitando um outro brilho. A claridade privilegiada do luar.
É um espanto que o inunda e, sem querer, tantas vezes, o leva a ser menino outra vez. Dispõe-se, por isso, a somar de novo as estrelas. São a essência que lhe alimenta um sonho.
E ri-se sozinho. Todos imaginam que os velhos não sonham. Mas ele sonha, sim. Ele acredita e ninguém disso queira fazer prova contrária, que ali, naquele fundo de céu negro a aparecer no horizonte, aguarda-o quem outrora o abraçou e amou como mais ninguém fez.
Um dia chamou-a de ‘minha andorinha’ porque lhe veio morar no coração numa tarde de primavera. Já não lhe sente o nome. Lá em cima, vê somente uma espécie de pássaro vestido de branco, com asas que respiram o ar que ele também acolhe. Confia que, mais cedo ou mais tarde, voltará a esse princípio.
É que os velhos descobriram que há um encanto nascido dos mistérios. Ciência que os novos ainda não alcançaram. Lembra-se de uma famosa e inteligente senhora, muito assertiva por sinal, que viveu lá para os lados da Áustria e que, certa vez, ditou uma sentença que ele leu e nunca esqueceu. Afirmou ela que é na juventude que aprendemos, mas é com a velhice que compreendemos. Ora aí está toda a verdade. É como a verdade dele. A sua crença é suficiente para o trazer feliz.
O outono é um tempo simples.
Agora, consciente de que amanhã não estará de partida para muitos lugares, espera a noite com tranquilidade. Quando ela chega, aninha-se sobre os pedaços que a vida construiu, sem lhe acrescentar diferentes paisagens porque ao fechar os olhos percebe, sereno, que lhe é permitido esquecer o futuro. Agora, por fim, pode sentir apenas a existência.
REVISTA VICEJAR
Não sou de pressas. Corro devagar. Lá chegarei.
E se não chegar, terei tido fôlego para respirar o que é belo.
A minha alma não tem urgência de rasgos aflitos. Sou feita de lembranças. Miudezas guardadas em cada emoção onde me afundo. Sorrio ao tempo que vem de longe para me cumprimentar. Apertamos as mãos, cordiais, e tratamo-nos por tu como velhos amigos.
Ontem contei-lhe do segredo escondido debaixo daquela pedra. Quem sabe, no futuro, uma criança pobre lhe dedique um pontapé e faça dela uma bola. As crianças só brincam a sonhar. Mas tu já te esqueceste da beleza desse suspiro, não é?
Entretanto, ainda bem que há homens grandes que sabem fazer girar o mundo como uma roda veloz. Dizem que é para acontecermos. Reconheço-os e abençoo-os. Se calhar, sem eles eu não existiria. Só gostava de não morrer infeliz como uma máquina de tanto fazer. É que, enquanto uns inventam sabedorias, outros conhecem as palavras pelo corpo e casam com elas para lhes dar um nome. Olha a sorte que temos por todos sermos presentes da vida!
Hoje, acordei-me tarde, porque sabe bem a preguiça quando é lenta. O sabor das coisas é mais visível quando os sentidos não estão cansados e o paladar tem outro timbre para provar o que haverá de ser saudade.
Quando abri a janela do quarto havia dois pássaros a cantar no quintal. Escutei-os, sozinhos, depois da névoa que amanheceu. Também eles gostam de ficar na cama à espera dos braços do sol. Pareciam namorar por cima do vento e dos homens, mas nenhum lhes prestava atenção. Porque os homens, e as mulheres também, vivem instantes importantes onde as grandezas inúteis são tudo o que os leva a um estranho lugar chamado nada. Acreditam que sabem da felicidade porque a conhecem só assim.
A menina, arrastada pela mão do pai, a caminho da escola, chorava os vazios que ele não compreendia. Não chores, minha pequena, é um tudo dor e um tudo passa. Amanhã serás mais bonita, sem as tuas tranças e o teu vestido bem posto e saudarás as recordações desse chão quente que os teus pés, agora, tocam.
O cão da Alice ladrou três vezes e o gato da D. Marta espirrou, arrepiado (já viste um gato espirrar?). É o que acontece sempre, quando o carteiro Luís aparece. Conhecem-lhe de cor os passos e acho que inventaram esta coincidência só para se avisarem um ao outro, nos cantos opostos onde moram.
A Alice sonha com o carteiro Luís quase todas as noites e há anos que arranja coragem nos olhos para o convidar a tomar um café com ela.
A D. Marta não sonha com ninguém. O marido era sargento. No trabalho comandava as tropas e, em casa, a mulher. Como não podia bater nos soldados, batia nela. Ela tornou-se a tela de um pintor sádico. Já ele, um dia, acordou morto. A D. Marta voltou a vestir-se de branco, guardou os sonhos numa gaveta velha sem memórias e fechou-se nas paredes do silêncio com o seu gato. Só a veem quando vai à missa, espaçadamente, e cumprimenta o padre com respeito e sem palavras.
O jardim da Dra. Aurora chegou-me da janela, entreaberta, à espera que a tarde descesse. Ela nunca está em casa mas as flores da cidade decidiram habitar todas ali. São luz e cheiro. Possivelmente algum jardineiro encantado (porque nunca o vi) lhes dê as mãos. Invisível aos olhares e sempre atento ao que torna os dias mais lindos.
Gosto de jardineiros. Falam com as plantas e não são tratados como loucos. Não há loucura por trás do exercício de uma função que se pratica com desvelo. Os loucos, como eu, falam apenas sozinhos e ouvem o que os outros não vislumbram. A loucura que não é normal, assusta.
Uma vez, roubei uma rosa negra ao jardim da Dra. Aurora e coloquei-a numa jarra. Ofereci-a, como se fosse uma prece de agradecimento, àqueles que já me partiram. Como a D. Marta, sou viúva. Afinal, a viuvez mais feliz, é ser ausente de todos os que não se amam. Será por isso que também gosto de me vestir de branco.
O velho relógio de pêndulo do Sr. Tomé, que está acomodado paredes meias com o meu quarto, fez soar nove badaladas. Desprendeu-se a noite. É hora de abraçar as sombras e agasalhar tudo o que puder no lado de dentro da voz. Aquilo que talvez possa vir a construir-se som infinito, como as letras dos poetas incógnitos que, quando morrem, se tornam deuses.
Quando cerrar o pensamento, vou querer sonhar com o carteiro Luís e as cartas de amor que a Alice nunca lhe escreveu. Dizem que o amor é o único ponto da alma que nunca foi final. E eu acredito.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
E se o (teu) amor falasse, o que te diria?
Que dias felizes não ficam suspensos nas sombras do sol.
Que o caminho ao lado de alguém não é um deserto sem cor.
Que quando corres para um abraço não recebes a força impune de um braço.
Que a dor e o grito são desespero e não o alimento de cada dia.
Que a vida não se faz de um mundo de ausências dentro da alma.
Que não podes adormecer debaixo das pancadas que entendes como beijos.
Que ficar nua não é permitir que um outro te desfaça a carne e a essência.
Que as emoções mais íntimas não são feitas de sangue.
Que sobre o teu corpo não devem morar somente pele e sonhos desfeitos.
Que permitires que te comam o espírito e o corpo não saciará a fome desse Ninguém.
Que ser humana não é um nada que te anula.
Que noites brancas não são sinónimo de noites sem luz.
Que a morte talvez possa apanhar-te enquanto dormes.
Que estas pedras onde te deitas não vão transformar-se, como por magia, em flores.
Que os desejos dentro do teu peito não devem ser apenas saudade.
Que não podes viver de janelas trancadas com vergonha de quem melhor te merece.
Que instantes bonitos não são porta de entrada para desceres ao abismo.
Que não podes ficar rendida ao que nunca tiveste.
Que dentro de ti existe uma obra que almeja ir ainda além.
Se o amor falasse, dir-te-ia…
Que o primeiro amor que casa contigo é o que nasce do teu próprio coração.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Era um burro, o Carlitos.
Não atinava com as letras e os números faziam-lhe caretas e brincavam-lhe com o desejo de ter boa cabeça. Era assim desde a escola primária.
Primeiro, a família depositou a esperança. Depois, veio a desesperança. Não havia porque insistir e a vida trazia mais o que pensar, do que as veleidades do menino que já nasceu torto, valha-o Deus.
Era um burro, o Carlitos.
E no fundo da sala deitava a atenção aos cadernos dos outros para não falhar as respostas. As respostas das fichas, porque aos porquês do pensamento ralo que todos lhe apontavam, não havia quem lhe soubesse responder.
Deixou de acreditar que valia a pena perguntar. Passou a crer nas razões que todos desconheciam. Parecia ainda mais burro.
O Carlitos e o lugar de sobras que lhe calhava nos grupos de trabalho, enquanto os colegas discutiam uma língua distante que ele não entendia.
O Carlitos e a nenhuma vontade de agarrar os trabalhos de casa pelos punhos e sacudi-los até que chovessem resultados.
O Carlitos e as tentativas frustradas de chamar a atenção com os números dos pais. Os outros números, aqueles que muitos acreditam fazer a diferença na superioridade dos homens. Números tão altos que ele tinha motivos para não saber nem precisar de contar.
Além do mais, havia o Zeca. Ah! O Zeca! Pois isso é que era. O Zeca sim, esperto como um alho. Outra sorte lhe coube na família. O que não sabia, fingia. Queixumes e queixinhas, ser o mais novo dava-lhe honras com direito a pedestal. Se havia azar, a culpa era do Carlitos. Afinal, era burro.
O Zeca, estilo gabarola e de muita letra, a sacudir os braços e os sorrisos na vaidade dos seus poucos anos. O Zeca, no palco das festas, a papar os prémios todos da escola. O Zeca e os aplausos da mãe, os aplausos do pai, do avô, da avó, do tio, da tia, dos primos, do outro pai, da outra mãe, dos quase irmãos; a plateia era grande. O Zeca e as vitórias de quem tudo sabe e tudo consegue.
O Carlitos e o desinteresse de todos. O Carlitos e o silêncio por dentro que não preocupava a ninguém.
Para desapertar o coração, encontrou solução. Mãos nos bolsos, pés na bola e a cabeça no ar, à espera que o futuro lhe ditasse o caminho. Soou-lhe essa a melhor, a única opção.
O Carlitos tão pequenino, enquanto os adultos de casa iam ficando cada vez maiores. Em matéria e orgulho. Orgulho da carteira cheia que tudo salva, orgulho do Zeca.
As vergonhas escondidas e os negócios de vento em popa.
E pelas obras se vê como Deus mostra a sua benevolência a quem dá de comer a tanto pobre, pensavam. Só os invejosos nunca lhes compreenderão as lutas e os esforços de um trabalho feito com alma e à conta de muito madrugar. Os empregos que oferecem, o pão que põem na mesa dos que lhes vêm bater à porta à procura de um lugar para poderem alimentar os seus.
Com o dispêndio de tanta caridade oferecida aos outros, não é a eles que lhes cabe a obrigação se a escola não presta para ensinar o Carlitos a ser homem. Pela humanidade já fazem muito. E pela sua carteira também, que o Senhor é benévolo para com os que praticam o bem.
E o Carlitos cresceu. O Zeca também.
Carlitos, o burro, que decidiu pintar para afogar sonhos sem pouso.
No dia em que, numa aula de artes, desenhou um círculo preto numa folha branca e escutou o professor, irónico, dizer-lhe que fizesse o favor de usar as tintas porque elas preenchem buracos fundos, Carlitos percebeu que as cores podem tapar o escuro que mora dentro de cada forma.
Quis, então, dar préstimo às mãos, já que a cabeça não parecia ser o melhor lápis de que dispunha. E com elas começou a pintar. De azul, verde, amarelo, vermelho… fazia-as deslizar sobre os papéis, sobre as telas, sobre tudo o que não tivesse vida. Sentia-lhes a textura e o cheiro a comporem o vazio que foi ficando cada vez mais pequeno.
Enquanto o Carlitos foi ficando cada vez maior. Uma altura, um senhor engravatado aplaudiu-o. No mês seguinte, novas ovações de outros senhores engravatados a caírem sobre as suas imagens catárticas, na galeria onde as expôs.
No ano seguinte, saltou o mar com elas nas mãos. Lá fora, do outro lado do oceano, também haviam senhores engravatados que se reviam em precipícios preenchidos por inspirações coloridas.
Alguns anos depois, quando regressou, soube que lhe choraram a ausência.
Os avós adoeceram novos. O pai sempre tivera outros rumos. E a mãe não aguentara o tamanho do pesado fardo da caridade, pouco mais habituada que estava senão a usufruir das divinas recompensas, perdida e achada entre luxos e publicidade fotográfica, de riso bem composto, como garantia ao mundo, de próspero sucesso e afortunada felicidade.
Zeca, o inteligente. Só ele podia salvar o negócio familiar que, em tempos, conhecera melhor fortuna. Mas o Zeca… Ai o Zeca! O Zeca que era esperto como um alho, quis confirmar que filho de peixe sabe nadar.
Entre papelada burocrática e diplomacia telefónica, de ideias criativas, só a imaginação a fugir-lhe, célere, para os arrebiques com que pudesse conquistar os folguedos, os amigos e os amores. Cruel fatalidade para um empreendimento construído com bravura no meio de tantas dores de cotovelo e invídias alheias.
Desamparadas pelos algozes do inesperado, parece que as ovelhas brancas do rebanho se haviam tresmalhado ainda mais.
São agora as pinturas e os louvores do Carlitos que as acodem num gesto de misericórdia.
Era um burro, o Carlitos.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Entrei na pastelaria do mercado municipal, desvio obrigatório em cada manhã, no trajeto para o trabalho. Cuidado todo posto na descida do degrauzinho impertinente, onde já escorregara vezes sem conta, como se ali estivesse de propósito para me deixar sem vontade de continuar caminho.
Ao canto do balcão, o Baunilha, bicho amarelo de pelo sedoso, a dormitar sonhos de gato. Deduzia eu, pelo som do ronronar consolado do preguiçoso.
Mais ao fundo, numa mesa afastada, como não poderia deixar de ser, o Alfredo Couraça, do talho, de dedo em riste, sentado em frente à D. Júlia, a florista.
— Note o que lhe digo, menina Júlia, note o que lhe digo…
Mulher cheia de graça. Só ela para lhe ouvir com paciência de santa, o debitar das frustrações de uma vida inteira por resolver.
Às vezes, naqueles momentos mais lúcidos de filosofias existenciais, chegava a pensar que o Alfredo poderia ter sido meu irmão.
— Bom dia, Sr. Óscar! Bem-disposto? Sai já o cafezinho…
E ali estava, à minha frente, como sempre, o Natalino. Todo simpatia logo pelo anunciar da manhã e uma genica interior que lhe fazia o corpo balouçar, como se fosse um cata-vento, em horas de borrasca, a dar vazão à clientela matinal costumeira.
— Bem-disposto? Até estava, pois estava…
Senti a rabugice habitual a ceifar-me a língua. Raios. Será que um homem não tem direito a acordar de bom humor, ali como o Natalino?
Ver o dia raiar com o maldito nevoeiro, todo estropiado da cervical e dores nos joanetes. Não há disposição que perdure.
Natalino ignorou-me e prosseguiu, a empurrar a chávena na minha direção. O sorriso sempre aberto, como se fossem braços esticados, prontos para me consolar.
— Ora então, conte lá coisas…
Não consegui mentir. Refilei:
— Olhe, já perdi o dia. Encontrei-me acolá com um colega que não via há anos e ele, desconcertado, atira-me que me julgava já aposentado.
Respondeu-me com um levantar de sobrolho. Compreendi-lhe o pensamento.
— Uma machadada no meu ânimo, não lhe parece? Julgam-me assim tão velho das canetas? – Inquiri, a antecipar a sua compreensão para as minhas preocupações, fruto do espelho que, em casa, me encarava o bigode e os cabelos brancos. Já nem lhe falava do corpo que, perdida a agilidade, andava agora ao sabor de uma ferrugem tão indesejada.
— E ora então, que tem isso? Não se deixe manchar pelo tempo, meu amigo. — Amenizou o Natalino.
Pudera… queria ver quando chegasse à minha idade. Por certo, o riso iria descoser-se-lhe do rosto.
Sobre o balcão, o adoçar da bebida correu-me mal.
— Bolas, pá!... — Reagi com um salto tosco, a sacudir o casaco — Se um tipo não deita logo o pacote todo do açúcar na chávena, está bem tramado!
O Baunilha levantou o focinho, olhos quase fechados, para rapidamente voltar à indolência manhosa.
Lá fora, com o nevoeiro a dar tréguas e as nuvens de cara posta a prometerem instantes de desalento, o esquecido amola-tesouras passou a assobiar com a sua gaita-de-beiços e a tranquitana montada na velha burra que chamava de bicicleta.
A arte simples de afiar a vida e um modo inabalável de olhar para o dia que se segue…
Esvaída a meninice, seria esta a forma mais honesta de viver, aquilo que me faltava?
Sorrisos, com alegrias que poucos nos conseguem adivinhar.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Recordo-me de há uns poucos anos atrás, uma certa pessoa me ter atirado em cara uma famosa frase, numa atitude de prepotência de quem se imagina com grandeza de caráter por acreditar que dizer aos outros aquilo que gostam de ouvir, é a melhor forma de amar alguém.
Isto, acreditei, ainda que não se sinta nem se pense o que é proferido da boca para fora. Porventura, amavelmente cuspido entre dentes e um sorriso amarelo, somente com o intuito de ficar bem visto perante terceiros.
Uma dessas frases batidas de que o mundo se apodera e às quais se batem palmas nas redes sociais e que, sendo de alguém, são de todos e não são de ninguém. Citações que, de tão repetitivas, vão acabando por desgastar quem tem vontade e aptidão para pensar um pouco mais além.
Dizia-me a dita pessoa, que “devemos construir pontes e não muros”…
Recordo-me de lhe ter respondido, na altura, que de construção de pontes e muros muito pouco ou nada sabia pois que, na verdade, não sendo mestre de obras nem tão pouco arquiteta, os meus conhecimentos e aprendizagem ao longo da vida têm versado mais sobre a construção de relações. Relações Humanas. E que a existir alguma ponte ali, é apenas aquela que permitimos ser percorrida por quem realmente desejamos presente no nosso percurso.
Ontem, sem querer, um amigo trouxe-me à memória este episódio, quando me falou em raízes. Disse-me ele que, ao olhar pela janela do local onde se encontrava a trabalhar, reparou numa árvore com os ramos a balouçar, fruto do vento que se fazia sentir lá fora e que isso o fez pensar na importância fundamental de nós, humanos, criarmos raízes.
O que têm estas duas situações a ver uma com a outra? Tudo.
Pergunto se teremos consciência, cada um de nós, de como criamos as nossas raízes. E que espécie de raízes nos prendem ao solo da vida. Que tipo de relações escolhemos estabelecer com os que nos rodeiam, para edificarmos essas raízes que nos firmam em terra e nos dão a certeza de não virmos a cair face às intempéries?
De repente, ao escutar a reflexão desse meu amigo, apercebi-me de algo que talvez seja fundamental repensar.
Dei-me conta de que muitas pessoas que fazem parte do meu pequeno universo de relações, as quais defino, inquestionavelmente, como sendo verdadeiramente humanas, estão presentes há quase duas décadas ou ainda mais.
Por entre obstáculos, vicissitudes, afastamentos, regressos, risos e lágrimas, o facto é que essas pessoas, distantes ou mais próximas, permanecem ao meu lado. E nos tempos de contratempos, infortúnios, transtornos, aborrecimentos, tribulações e atrapalhações, são elas as raízes da minha árvore que, do outro lado da ponte que lhes permiti atravessar, nunca deixaram de me segurar em chão firme.
Entretanto, outras foram transpondo igualmente a ponte a que lhes dei passagem e na árvore se foram instalando. Umas, como folhas que me abrigam o corpo das chuvas de inverno, algumas como flores delicadas que me perfumam os ramos como em instantes de primavera. Umas que me fazem sorrir com o seu canto sonoro em cada manhã, outras que, como pássaros livres, me encantam com o seu destemido voar.
Com elas me abraço, com elas aprendo, com elas me vou tornando na pessoa que gosto de ser.
Dizer o que se sente e o que efetivamente se pensa sem medo de ficar só, acreditar que não é preciso agradar a todos para se ser generoso e ter dignidade e que o amor-próprio não se constrói com pontes que, um dia mais tarde, facilmente desabarão, não se trata apenas de um ato de coragem. É também um desafio à honestidade interior de cada um. Um repto à capacidade de construção dessas raízes que nunca permitirão à árvore açoitada pelo vento, perder o seu equilíbrio e a sua solidez.
Direi, pois, com comprovada confiança e convicção: procuremos todos construir raízes e não pontes.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
- Olha a velha Pepa! Foge qu’é bruxa! - gritava a rapaziada em desgovernado alarido, sempre que a viam passar pelos caminhos da aldeia. Já trôpega do corpo inteiro, cabeça enfiada debaixo de um lenço cor de escuridão, a tossicar maldições, em sussurro, contra a canalha atrevida e despropositada.
Onde iria a velha Pepa, por esses dias frios de outono, quando passava, quase muda para o mundo, com a vagareza de quem já conhecia o amargo sabor de um século de vida?
Que a desgraçada da morte a levasse de uma vez, pensava muitas vezes com os vetustos botões, já descascados, da intrépida casaca, companheira de incontáveis invernos. Que fazia ela aqui, a dever agora tantos anos à cova, vítima de tamanhas e inclementes dores e desalentos?
E praguejava para dentro, com o pensamento entrecortado por duas ou três ave-marias que a protegessem das mordazes e implacáveis vozes dos maganões que, assim, a atormentavam sempre que por ali tinha precisão de passar, para o cumprimento da sua longa missão.
Benzia-se uma e depois outra vez e arrepiava caminho até se tornar invisível aos olhares que a perscrutavam.
A verdade é que nunca ninguém se atrevera a segui-la com o intuito de lhe adivinhar o destino. Talvez fosse o medo de confirmarem os feitiços que a centenária cuspia do olhar, segundo rezavam os mais velhos.
O certo, é que também nunca ninguém a vira regressar do lugarejo onde pudesse ter ido conceber estranhos sortilégios.
Era um mistério, porque no ano seguinte, lá a viam de novo a tremelicar passos pesados por baixo dos pés rombos.
E a velha Pepa, que se entendia mais velha do que o mundo, desaparecia exatamente da mesma forma sinistra como surgia, sem que alguém lhe conhecesse a história.
Até ao dia em que não voltou.
Um ano e outro ano e mais outro e a velha Pepa não tornou a dar sinal de presença.
O povo, com intenção de lançar luz sobre o fenómeno, ainda que alguns mais desinteressados encolhessem os ombros enquanto profetizavam a morte da velha, destacou dois ou três rapazolas arrojados para descobrirem do segredo que lhe alimentava a curiosidade.
Já com as gentes cheias de preocupação e sobressalto, foram precisos alguns dias até que aqueles regressassem com notícias.
Tinham encontrado lá para as bandas dos confins da aldeia, escondido e tenebroso lago, com que poucas almas, mesmo atentas, dariam de caras. Enterrada nas margens, vultosa cruz de madeira anunciava que ali houvera morte certa há um horror de anos atrás. Jocelino Ventura, o nome gravado em epígrafe.
Adiante, um tortuoso caminho coberto de matagais, conduzira-os a uma inóspita casa. Com cheiro a almas penadas, garantiram. Lá dentro, entre antiguidades e lixo acumulado, vários retratos de onde se destacava bonito casal e uma criança de tenra idade. Por trás, a referência, em letra miudinha, à nobre família Ventura. Junto ao retrato, coçado diário a revelar trágicas desventuras.
Vivia feliz o casal Anastácio e sua esposa Josefa Ventura, com o enlevo próprio de pais afortunados pelo único filho, o pequeno Jocelino, até ao dia fatídico em que desprevenido tiro, dado pelo próprio pai, em tarde de caça e lazer, caíra sobre o corpo leve do menino. Descomposto e desvairado pela amargura do destino, e a prever a loucura em que a fatalidade atiraria a mulher, o infeliz homem premiu o gatilho sobre si mesmo, logo depois de deitada a alma da criança nas águas daquele lago.
A vida morreu para a pobre mãe naquele dia. E, em cada ano que o tempo a obrigou a abraçar aquela dor, D. Josefa tornava sua a missão de, pelas alturas em que o infortúnio fazia memória, derramar as suas lágrimas amargas sobre a cova do único amor que pudera sentir, pedindo clemência ao Senhor pela cobarde desumanidade do marido.
Estupefacta com a inusitada história, a aldeia inteira pediu perdão ao espírito de D. Josefa pela maldade das suposições e dos impropérios sempre proferidos. O retrato do casal, colocado junto ao altar da igreja, passou, então, a relíquia do local com desejo de absolvição pelos atos praticados. De bruxa, D. Josefa subiu ao estatuto de santa.
Como o rasto lhe foi perdido, todos acreditaram que também partira.
Mas nunca ninguém conseguiu compreender porque motivo, pelos dias mais frios de cada outono, a névoa erguida do lago, acordava todas as noites vestida de um fogo azul, com surpreendente odor a condenação.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
“Todo jardim começa com uma história de amor, antes que qualquer árvore seja plantada ou um lago construído é preciso que eles tenham nascido dentro da alma. Quem não planta jardim por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles… e não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses…”
- Rubem Alves -
Sentes-te preso aos confins do mundo
onde o voo não mais teve lugar.
Perdidas as batalhas e as guerras
que o calor da pele te fizeram sangrar,
bateste os punhos contra a corrente
ao som crescente de uma dor maior!
E agora…
… caído no silêncio de vozes mudas
num ritmo que se afigura tão inferior.
Mas sabes…
o que a memória apenas deve guardar de nós
é esse rasgo de conforto e de esperança
que um dia nos acolheu
com uma força desbravada de perseverança,
os gestos e os afetos escolhidos
na palma da nossa mão, que abraçava os instantes
e lutava por horizontes julgados já perdidos.
Quando pintávamos as paisagens do mundo
com as tintas da emoção e o deslumbramento
de um coração inocente de criança
que alimentava todas as expetativas do momento.
Vê :
no outro lado do espelho
o reflexo de um horizonte
que te parece agora efémero.
E pincela com a grandeza desse passado,
um futuro ainda vivo, que se perpetue e renasça
nas sombras do sentimento, transfigurado.
Pois é neste momento
quando as palavras se te perdem e misturam
num duro sabor de marfim,
que a vida te pede, num eco sem fim:
rasga as correntes do labirinto em que te prendes
e resgata esse, afinal, tão nobre Dom de Ti.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Viu-se menina, num mundo imaginário,
onde todas as formas tinham cor.
Mas a vida, é somente uma maneira frágil de existirmos.
E os sonhos, o nosso coração à deriva a espreitar
desejos esquecidos pelo mundo…
A montra da ilusão
encantou os olhos da menina!
…
A boneca de cera que sorria
derreteu-se nos olhos da menina,
o comboio de papel que corria
fugiu dos olhos da menina,
o cavalo de madeira que galopava
perdeu-se nos olhos da menina,
o vestido de cristais que brilhava
apagou-se nos olhos da menina.
E a menina, olhou os sorrisos de outras crianças
que levaram a sua montra da ilusão perdida.
E olhou as suas mãos
cheias de vazio e de nada…
E gritou:
“Ninguém quis oferecer-me
os meus sonhos de menina!”
A montra da ilusão
encantou os olhos da mocinha!
…
O livro de História que se abria
fechou-se nos olhos da mocinha,
a casa da aldeia que habitava
longe ficou dos olhos da mocinha,
a terra onde nasceu e onde morava
afogou-se no mar dos olhos da mocinha.
E a mocinha, olhou outras raparigas
que viviam dentro da sua montra da ilusão.
E olhou em seu redor
para o silêncio amargurado…
E falou:
“Ninguém soube oferecer-me
os meus sonhos de mocinha.”
A montra da ilusão
encantou os olhos da mulher!
…
O país onde feliz ela sonhava
explodiu nos olhos da mulher,
o sorriso dos pais que adorava
morreu nos olhos da mulher,
a luz da madrugada que se avizinhava
escureceu nos olhos da mulher,
os ideais para os filhos que tanto amava
saltaram dos olhos da mulher.
E a mulher, olhou o céu sagrado por cima de si,
com duas lágrimas de sal e poeira.
Desaparecera a sua montra da ilusão.
E apenas murmurou:
“Ninguém conseguiu viver
os meus sonhos de mulher...”
REVISTA VICEJAR
Ter uma alma que se formou a partir não de uma, mas de várias sementes que, em algum momento, foram plantadas em diversos jardins do mundo, pode ser um privilégio. Pela vida, o germinar de sentimentos, abraçados a memórias tão variadas quanto a brisa dos ventos, torna-nos viajantes de sonhos. Nas mãos transportamos uma espécie de voo de esperança.
Seria esse o legado que a minha mãe de África pretenderia oferecer-me antes de, um dia, termos ambas seguido adiante por outras jornadas e peregrinações.
Recordo a Amélia, que cuidou de mim ainda em flor. A bisneta de um verdadeiro viajante de sonhos que, na altura, já havia partido para outras dimensões deixando aqui ficar o brilho negro dos olhos profundos e o sorriso branco, gigante, do rosto de Amélia.
Sentada ao seu colo, e ao som de um sotaque tão característico, ouvia-lhe as muitas histórias que recordava do bisavô, quem ela dizia ter sido um velho ancião de forte e corajoso coração banto, sabedor de muitas verdades que só os espíritos mais iluminados têm a honra de possuir dentro de si.
“Temos qui contá estórias porque a verdade, às vezes, dói muito!”, aconselhava.
E acrescentava que as histórias fazem nascer em nós uma outra humanidade que nos transforma em pessoas mais felizes. Por isso, o bisavô ensinara-lhe que, quando descobrimos sonhos ao olharmos para uma noite estrelada sobre os planaltos, experimentamos a alegria da vida noutros reinos distantes.
Penso que o que o velho ancião, que agora desconfio ter sido, porventura, um valoroso xamã, terá ensinado a Amélia quando era ainda criança e que ela queria transmitir-me também, era essa sabedoria de que nos fala a natureza na sua relação com algo superior.
Apesar de muito pequena, sentia que as histórias dos sonhos da minha mãe de África, ou do bisavô dela, me tranquilizavam o espírito rebelde da minha primeira infância. Contava-mas, principalmente, depois de dar solução às minhas aventuras mais afoitas e desculpas disparatadas que a faziam arregalar os olhos e colocar a cabeça entre as mãos para, logo a seguir, as sacudir em gestos largos pelo ar: “Chiii minina! Bassopa… Ni ta kuba! Suca, suca… É maningue canganhiça aqui!!!”.
A seguir, ia buscar um pequeno tambor de madeira que guardava num velho armário e nele fazia ressoar ritmado batuque, enquanto entoava estranho cântico com o qual, imagino, pretendia enviar para longe abominados espíritos que me pudessem perturbar.
Outras vezes, garantia a minha presença junto dela enquanto as suas raízes xamânicas nos envolviam num perfumado banho de ervas com aroma adocicado, numa espécie de ritual de purificação.
Depois das histórias, invariavelmente, seguia-se o nosso ansiado passeio do dia. O olhar doce dela contemplava-me de alto a baixo e rematava sempre com orgulho, enquanto me prendia os cabelos soltos com o ganchinho em forma de flor: “Ya, xonguila! Podemos ir.”.
E íamos de mãos dadas. O corpo de Amélia ainda roliço, debaixo das capulanas coloridas e os cabelos já esbranquiçados escondidos por lenços estampados de várias cores, não lhe denunciavam a idade.
Por vezes, seguíamos a pé pelas avenidas enfeitadas de acácias que pareciam pender dos telhados do céu, ao encontro do pôr-do-sol e do ranger das tábuas de madeira, sob os pés e os corpos dançantes dos homens e mulheres, a libertarem o suor da alma e as vozes alegres ao som da marrabenta. Aqueles movimentos e sonoridades quentes, à luz do sol poente, enfeitiçavam-me o olhar de menina e ali me deixava encantar no sentir despreocupado de um infinito que me era ainda tão incompreensível.
Outras vezes, Amélia apertava-me a mão e fazia-me correr, às gargalhadas, para apanharmos o autocarro. “Anda minina, machimbombo foge, não espera, não!”, gritava, em tom estridente.
Viajávamos até ao bazar da cidade. Pelo caminho, guardo a sensação do calor húmido que me corria pelo rosto. No ar, o cheiro do caril acabado de cozinhar, do milho torrado, dos cajus assados e o aroma fresco das catembes, trazido pela distância das ruas onde as palmeiras faziam sombra.
Lá chegadas, ouvia a voz divertida da Amélia, “Hawena ntombi! I malè muni?”. E, por entre todo aquele ambiente tropical, nunca deixava de haver à minha espera o sabor inesquecível de uma manga ou papaia maduras, um sumarento e refrescante ananás ou maracujá, ou a textura macia dos abacates que faziam as minhas delícias.
Como um instante entre a terra e o céu. Assim é uma das mais bonitas formas, que encontro, de recordar as minhas origens…
Sou privilegiada por ter vivido os meus primeiros anos de vida ao lado de uma alma tão pura como a de Amélia, que soube, com a sua humilde sabedoria, tornar-me igualmente uma viajante de sonhos.
Nesses tempos, fugindo constantemente à desesperança e fúria dos homens, Amélia, a minha mãe de África para quem fui a única filha que teve, trouxe-me os ensinamentos do seu bisavô.
Um bisavô que não foi apenas um simples narrador de grandes histórias, mas terá sido também um poeta, um músico da vida que, na sua ancestral sapiência, descobrira, lera e resolvera alguns dos mais profundos enigmas do mundo.
Com ele, Amélia aprendera que não deveria existir distinção entre os homens e a natureza. Afinal, se somos uma parte de Deus, então os homens e a natureza abraçam em si o mesmo coração. E, por essa razão, todos os homens deveriam empenhar-se em falar uma língua da mesma cor.
Porque, “Quem mata os sonhos não é Deus, minina… são os homens.”.
Hoje, com uma emoção que não descubro em palavras e uma gratidão imensa por ter nascido naquele magnífico continente e te ter tido junto a mim, Amélia, quero dizer-te, seja qual for o ponto do firmamento em que te encontres neste exato minuto e seja qual for a matéria de que agora sejas feita:
Mamani, nitlanguelile! Kanimambo.
REVISTA VICEJAR
Ouve meu pequeno menino de ouro
a canção que te deixo entre as mãos.
Um cristal de pergaminhos em notas soltas
que guardarás nas tuas memórias
com o cuidado que qualquer tesouro merece.
Um dia, talvez hoje,
vou olhar contigo a dança das nuvens
e a transparência límpida das marés
a deixar corais na areia que os teus pés descobrem,
com a surpresa da ternura que toda em ti me encanta.
Um dia, talvez hoje,
vamos correr juntos nas calçadas das ruas.
Quem sabe, atrás de pombas brancas ou de cavalos alados
nascidos pela pureza das tuas fantasias de pequeno grande herói.
E colher a serenidade dos frutos maduros com cheiro a verão
acabados de apanhar no fresco pomar da mais pura terra verde.
Um dia, talvez hoje,
vou ensinar-te a descoberta dos planetas de luzes fugazes
e dos firmamentos que os seres indomáveis percorrem.
A tocar a melodia dos sons que abraçam a terra,
a esculpir com as tuas impressões digitais
as teias da vida a acordar o teu sono de menino.
Um dia, talvez hoje,
vou mostrar-te o idioma de mil línguas que comandam o universo
e o poema dos momentos a dois
como a arte de ser mais além do tempo.
Porque por um momento, talvez amanhã,
sentirás a urgência de reinventar o avesso dos dias
sem desencantar a doçura de um olhar
tão cheio de esperanças e de pressas desbravadas.
E não te desconheçam as forças das causas sem leme
nem te desenganem os gestos que escravizam a alma e o corpo
e iludem as lembranças despovoadas de amor.
Porque só tu, na extensão do meu Ser
me ensinas assim a despedir-me de mim
para soletrar todos os mundos de que além serás feito.
A perceber que na exaustão das batalhas que em mim se venceram
ainda há encantos que o coração reconhece.
Meu pequeno menino de ouro…
… Que as asas da tua liberdade
sejam um dia maiores do que o vento e o egoísmo dos homens.
REVISTA VICEJAR
“… às vezes, a imaginação consegue mudar tudo…”
(Carlos Lascano, no trailer de ‘Lila’)
Pelo avançar dos dias surgem-nos, por vezes, coincidências às quais podemos chamar, no mínimo, de curiosas. Ainda assim, gosto de pensar que serão, porventura, muito mais do que isso.
Foi, quem sabe, uma dessas coincidências aquela que me sucedeu quando, há tempos atrás, uma pessoa me falou numa bela estória de fantasia, enquanto me garantia que, se não a conhecesse, a iria apreciar bastante. “Porque nela te revi.”, disse-me.
E certa de que quem isto afirmava me conhecia suficientemente bem para fazer tal constatação, foram poucos os minutos que demorei a descobrir do que se tratava.
Com os olhos postos no monitor do computador, a emoção ganhava terreno à medida que o coração se envolvia na ternura das imagens que visualizava. E as memórias faziam-se presentes, ao transportar-me para a minha infância e para a minha boneca de eleição e estimação que me ofereceram ainda criança, e à qual, assim que a vi e sem hesitação, dei o nome de Lila.
Lila cresceu ao meu lado, amiga de confissões e confidências. Com ela partilhei o jardim secreto dos meus sonhos, o meu desejo maior de transpor a realidade e, através de um simples desenho, transformar a vida numa aguarela. Porque, afinal, a imaginação é essa sensível arte de ser capaz de viver de mãos dadas com a própria arte.
Lila, a boneca em que me inspirei para escrever histórias de pessoas feitas de luzes e sombras delicadas, que dão esperança aos outros para avançar e brilhar no mundo e para o mundo.
E assim, o meu espanto aumentava à medida que descobria as estórias dessa outra “Lila”, naquela curta-metragem, de 2014, dirigida pelo produtor argentino Carlos Lascano, onde cruzamos os sentidos com uma rapariga que detém em si a capacidade de tornar o mundo um lugar mais especial. A enternecedora história de Lila, a menina que vê com os olhos da alma.
A simplicidade imaginativa e inocente de uma sonhadora que, através do desenho, transforma a tristeza em alegria com o desejo das mãos e do coração, em uníssono. Magia apenas ao alcance de quem consegue brindar a vida com fantásticas matizes coloridas e a certeza confiante de conseguir transpor o impossível.
A criatividade e a ilusão num mundo real. E a vida deixa de ser apenas num mundo para passarem a ser mundos de vida. Os mundos de vida de Lila que, com o silêncio agasalhado no olhar, namora a pureza das próprias quimeras e cuja felicidade lhe nasce da linguagem interior, revelada no dom de semear o perfume dos seus sentimentos mais nobres.
Lila segue, meiga, entre a última estrela da noite e a primeira respiração do entardecer, a colorir a alma dos que a rodeiam, com o encanto do feitiço na pontinha dos dedos. Desse modo se vai compreendendo também a si mesma na emergência dos afetos.
Um olhar sobre os gestos mais simples da vida e talvez todos fossemos capazes de algum dia, tal como Lila, ser fazedores de histórias. Das extraordinárias histórias que guardamos dentro de nós, a esperar um sopro que lhes dê vida. Porque, acredito, é da vontade e das aspirações que o coração do universo ganha outra dimensão.
A minha Lila viveu até há uns poucos anos atrás. Mas também teve que partir, como partem todas as mais bonitas conquistas que nos iluminam a vida. O mais incrível é que, dentro do seu vestidinho azul salpicado de pequeninas flores, tinha igualmente o mesmo rosto alvo, os mesmos olhos verdes e os mesmos cabelos louros da Lila de Lascano. Uma boneca com semblante de menina.
Em ti, Lila, encontrei a pureza que tão só o enlevo dos devaneios compreende e contigo abracei a minha infância de doces e sentidas afeições que continuam, ainda hoje, a sorrir-me. Naquele dia, vieste recordar-me a beleza dessa memória.
REVISTA VICEJAR
“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
…
E o coração está seco.
(…)”
Revia, há dias, o poema Os Ombros Suportam o Mundo, do inesquecível Drummond de Andrade, escrito no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial. Leitura interiorizada e começo a compreender, talvez, as emoções que têm vindo a assaltar-me o espírito nos últimos tempos. A fuga ao que faz ruído avassalador, a solidão presa no tempo, a ânsia superior de silêncio e de uma paz luminosa sem cores que possam ferir.
Porque o tempo de Drummond é um tempo presente.
O leitor não precisa de viver o momento do poeta para sentir a profundidade atemporal dos seus poemas. Cada pedaço de um passado é sempre presente dentro de quem sente o que lê; cada letra desenhada no pensamento, uma lição antecipada do futuro. Afinal, a vida é um ciclo e nós, em cada instante, a sua fala renovada.
Desumanamente continuamos a aprender a sobreviver a imprevistas mudanças mundiais e estupidamente premeditadas. Permanentemente nos confrontamos com a vulnerabilidade da vida, com a inevitabilidade da morte. O ódio invade todos os nobres gestos mais comuns e cada dia é um mérito à capacidade de reaprender a viver.
Tenho-me perguntado, vezes sem conta, onde cabe o coração de um poeta no meio do vendaval, da atrocidade, da lama e da destruição? Parece ser claro que é, tantas vezes, por entre o caos que a poesia dispersa todas as certezas da sua voz.
Mas a capacidade de criar começa a ficar comprometida face a uma violenta paisagem tão destituída de cor. Como conjugar o sentimento com a insensibilidade nascente que suporta a dor tamanha do sofrimento? Onde encontrar os paliativos para uma dor que os olhos obrigam o coração a ver e um quase ódio começa a emergir da impotência de pouco poder fazer?
Teria razão Pessoa, na sua Autopsicografia, quando dizia que um poeta é esse fingidor que chega a fingir a dor que deveras sente?
A alma de um poeta e essa contradição que lhe mora dentro do peito, de um coração que nunca para, mas cujo salto constante para fora o deixa exausto e desarmado. Sequiosa de impulsos num caminhar pelo tempo, agitada, sobressaltada, a alma de um poeta recheada de ecos e um coração que, por vezes, apenas ambiciona a leveza da pausa para se encontrar com o seu próprio olhar, com o seu próprio reflexo.
Sabiamente desconfiava Drummond que “todo o ser humano é um estranho ímpar”.
Hoje, porventura possa cair num sono lento e dentro dele sonhar que, entre luz e sombras, às cegas na perceção que tem de si mesmo, um poeta floresce sempre com renovado perfume no seu entendimento próprio do mundo. E feliz na ousadia de despontar sobre o tudo ou sobre o vazio do nada, onde despe o seu ventre quente de emoções. Afinal, é no fundo do seu silêncio que todas as palavras lhe nascem.
A verdade é que a curiosidade natural recai sobre o desnudar de um corpo. Mas a verdadeira beleza desprende-se na audácia de mostrar a alma nua aos olhos do mundo.
E se a poesia se degusta pelos sentidos e não pela razão, verso onde a realidade é pensamento tornado sentimento, com esse dom de aproximar corpos e preencher vazios, talvez por um minuto, talvez agora, talvez hoje apenas, aconchegado no leito de quem nele se revê, resta ao poeta, na sua desordem, a resposta à questão que grita por entre as sensações silenciadas: “posso fugir das minhas palavras para o teu abraço”?
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Foi há muito, muito tempo, na ternura desprendida da infância, quando o horizonte nos parece ainda tão grandioso mas, ao nosso lado, sentimos aquelas mãos maiores do que o mundo a guardar-nos de todos os medos.
Tardes de chuva em que não havia muito o que fazer e eu ficava sentada no sofá da salinha pequena, de carpete verde, escura, e um gira-discos muito antigo, daqueles que já nem nesse tempo se viam mais em lado algum. Tinha mão de mestre e um som preciso que saía, claro e límpido, a invadir com permissão o cantinho aconchegante desse espaço sagrado. Um tempo feito de cada instante demorado onde eu, de olhos postos no vidro da janela, apreciava o escorrer lento das enormes gotas de água doce.
Aquelas tardes todas inteiras de sábado, só para mim, a ouvir os velhos discos de vinil do meu pai.
As minhas pequenas mãos de menina acolhiam com suave calma, para não estragar a beleza do tesouro, as capas espalhadas no chão, enquanto os olhos decifravam os enigmas por trás das imagens brilhantes. Figuras sedutoras para a fantasia de quem gostava de imaginar as histórias por trás de cada uma.
Admirava o d’A Mulher do Chapéu Verde. Assim dei o nome ao disco da famosa grande orquestra de Paul Mauriat, que mostrava na capa o rosto de uma linda jovem com brincos e um enorme chapéu de palha verde na cabeça. “Un Jour un Enfant”, era o título.
Depois, o desejo de continuar a escutar, passava para o d’A Mulher das Sandálias. Tão bonita, pensava a minha inocência, aquela menina da fotografia, de cabelos compridos com um vestido branco e sandálias de enormes saltos, sentada sobre uma velha mesa de madeira. E os meus ouvidos iam apreciando, com agradável encanto, Pop Corn, If I Were a Rich Man e Um Canto a Galicia, pela mestria condutora de Shegundo Galarza, nos seus “Êxitos Para Dançar”.
Puxavam-me ainda a sensibilidade “Os Bairros Pobres da Cidade”, de Nelson Ned e outros temas tão distantes e tão diferentes entre si, como a “Paloma Blanca”, que me soava a uma certeza inabalável de paz e amor, ou “O Professor de Violino”, a deixar-me sempre, sem que soubesse a razão, uma pequenina lágrima no cantinho dos olhos.
Hoje, quando o vento traz às madrugadas a chuva que desce solta pelos beirais, nascem-me caras saudades daquela infância musical tão cheia dos carinhos e abraços do meu pai. Ele, tantas vezes sentado ao meu lado no sofá da salinha pequena, a escutar a par comigo esses acordes onde redescobria as suas memórias mais doces.
Um pai que, tal como eu, falava pouco com a voz e muito mais com o olhar. Nele, as palavras vestiam-se dos silêncios que tão bem me revelavam a dimensão do seu amor por um filho.
E no meio de todo aquele ambiente adocicado e nostálgico de tardes que me confortavam o coração de criança, nunca esquecíamos, por fim, uma memorável canção. Uma que era especial porque era tão nossa: “20 Anos”, do José Cid.
A canção que, hoje, me traz a lembrança dos dias em que caminhávamos de mãos dadas quando o meu pai, sempre sereno, me acompanhava pelos caminhos bordados de primavera, em direção a nossa casa, depois de um dia de escola. A canção que me recorda o baloiço que o pai, de afável riso no rosto, empurrava e sentada nele a menina de tranças, feliz, brincava como quem corria atrás de uma ilusão.
Juntos, em muitas outras tardes, pelo seguir da vida, cantámos tantas vezes a canção…
Passaram muito mais de vinte anos. E ele já não existe para me ver.
No entanto, imensos são os momentos que, em pensamento o contemplo, sorrindo, como quem se vê a um espelho pela manhã. São os seus traços e o seu modo tão único de sentir, a flor que me ofereceu e que desponta agora no meu coração.
O tempo que passou não volta, não. Mas sabes, pai? Pouco importa, pois recordar é viver.
E sim, foi há muito, muito tempo… Mas para nós ficou esta canção.
www.youtube.com/watch?v=ySZMehEPdUU
(Vinte anos)
REVISTA VICEJAR
Recordas-te? Deverias recordar-te… Eu nunca me esqueci. Carreguei as memórias na alma para além da vida. Talvez para que a lembrança da dor fosse apagada, talvez para que, enfim, a paz pudesse ajustar-se ao coração. Talvez para acreditar num outro caminho que não tivemos oportunidade de viver e que me traga de volta à criança livre e pura que cheguei a ser, antes de partires. Talvez ainda para te mostrar que continuarei sempre aqui.
Vejo uma estrada de terra batida a prolongar-se até à curva da encosta e que começa a descer num declive que, entre tantos outros caminhos, conduz à colina que é janela para o mar. Aquele mar imenso onde naquela madrugada te vi partir sem que o soubesses. Para sempre. Porque não tiveste coragem para te despedires. Não tiveste coragem de me olhar nos olhos e dizer que terias que ir, que chegara o momento inesperado e nunca desejado de servir outro mundo maior, outras conquistas tão diferentes daquelas que me ensinaste com a pureza dos teus gestos e o brilho da alma que te tornava tão especial.
Partiste com o peso da culpa, maior do que o teu próprio peso. Ainda sinto a dor imensa que se me afundou pelo coração dentro e o negro infinito de um futuro ausente de ti. A dor da separação abrupta. Assim te pareceu mais fácil para mim. Assim, sem lágrimas. O coração que não vê também não dói. E, no entanto, sabias como estavas enganado. Porque a dor acompanha-te até hoje e só a imagem da minha presença te sossega o espírito, te acalma os momentos difíceis. Foi desse modo que procuraste a força nos dias escuros que viveste depois. Acompanhado com a minha imagem e a confiança de que, quem sabe, no futuro o teu regresso viesse pedir o meu perdão.
E ali estava eu, debruçada sobre o vazio e o olhar na vaga distância que se perdia no horizonte, a questionar-me na minha cabecinha de criança sobre o porquê. Por que é que o Deus que me ensinaste a amar através dos seres, da natureza que tocavas com as mãos e a alma, te tinha agora levado até sempre? Sinto ainda a aspereza das lágrimas silenciosas a descerem-me sobre o rosto. O silêncio interior, a dor cruel da solidão.
Lembraste da nossa casa? Do lado direito da estrada a caminho da colina, a casa de pedra, amarela, os canteiros onde a mãe depositava todo o seu carinho, as árvores do lado esquerdo da parede debaixo das quais, por vezes, nos sentávamos a rir enquanto apontavas para o céu e dizias que era a obra-prima de Deus. E abraçavas-me com todo o calor. Sentia-te a minha rocha, a proteção de todos os males.
Do outro lado da estrada, uma vedação e para lá dela um bosque. Um bosque frondoso com caminhos que se redescobriam a cada momento perante os nossos olhos. Percorremo-los tantas vezes e de todas elas encontrávamos sempre um segredo oculto. De cada vez, obrigavas a que a minha atenção recaísse sobre um pormenor novo, como um renascimento da natureza a cada visão.
Tinhas essa magia dentro de ti e sabias transmiti-la como ninguém. Foi contigo que aprendi a amar as árvores, as folhas, o brilho do sol, o som das águas, todos os seres. Ainda guardo tão nitidamente aquela imagem: uma flor entre o verde, tu quase em silêncio, a apontar-me uma borboleta com as asas a tremerem levemente. E murmuraste: “Repara como é linda e majestosa, podia ser criança na sua simplicidade e inocência, rainha na sua beleza e deusa na sua força de ascensão pelos ares!”.
Ensinavas-me cada segredo da vida que guardavas no coração como um tesouro encantado. E tudo eu absorvia como se adivinhasse que seria a tua herança no dia em que partisses. E via em ti o herói, o protetor dos caminhos que atravessaria.
Muitas noites, saíamos de casa às escondidas e levavas-me pela mão por entre esses caminhos dos bosques. Ensinavas-me o brilho da lua entre as copas das árvores e das nuvens mais escuras. Dizias-me que a natureza à noite também é perfeita e sábia e que os seus mistérios mais ocultos são revelados nessas horas. Eu não sentia medo.
Recordo-me do teu rosto sereno, cabelos e olhos negros. Recordo-me do meu rosto tranquilo ao teu lado. A sorrir em volta dos meus tão curtos anos de vida, mas com tanto já no interior de mim: o teu legado. Recordo-me do teu abraço apertado e do teu sorriso enquanto pronunciavas “és a minha pequenina, estarei sempre aqui, sempre que precisares e jamais deixarei que algum mal te aconteça”. A promessa que nunca pudeste cumprir. Que ainda hoje não consegues cumprir.
Tudo o que aconteceu após a tua partida se me apagou do pensamento, exceto a dor. Não tivemos oportunidade de nos despedirmos desta caminhada. Talvez um dia seja o reencontro. O nosso. E o teu.
Sabes? Às vezes, a incerteza também é sinónimo de esperança.
REVISTA VICEJAR
É possível um amor assim?
Nunca se tinham conhecido e conheciam-se há muitos anos.
Nunca se tinham tocado e todos os toques eram para eles respiração.
Seria possível um amor assim?
Dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano… pela vida.
Nesse dia recordaram o primeiro momento como se fosse o último. Olhos nos olhos. Olhos na pele. Olhos no silêncio.
Ele menino. Ela menina. Olharam-se pela primeira vez e o coração falou.
Ele estendeu-lhe o carrinho de brincar, ela sorriu e o olhar agradeceu. “Queres ser minha namorada?”. E a pergunta ficou.
Todos os dias se encontraram naquele jardim.
O carrinho passou a flor, a flor despertou o encanto e o encanto vestiu o canto esquerdo do peito e fez-se som.
Todos os dias se sentaram naquele banco do jardim, onde o primeiro dia tinha nascido com um “sim”.
Um dia o olhar dele perguntou, “Posso tocar na tua mão?”. Ela sorriu e a pergunta ficou.
E pela viagem dos anos continuou.
Um dia ele não sorriu. O olhar dela sentiu. Souberam da despedida.
Seria possível um amor assim?
Ele tocou no rosto dela e, no último dia, descobriu que ela era como ele sempre a tinha imaginado.
Ela tocou nos lábios dele e descobriu que ele era como ela sempre o tinha sonhado.
Duas lágrimas, então… O coração de ambos nunca os tinha enganado.
E a vida parou.
“Queres seguir viagem ao meu lado?” E ela… não negou.
O amor entre um homem cego e uma mulher surda, descobre-se pela voz do coração. Para ser entendida, a linguagem dos sentimentos basta-se no silêncio de si própria.
Sim, é possível um amor assim…
REVISTA VICEJAR
Há encontros que são urgentes e que, pela sua emergência, se tornam inadiáveis.
Por isso, num tempo que se faz novo, é tempo de reinventar o tempo e construir uma nova linguagem da vida. Um universo a moldar-se pelo inverso.
Um edificar de outros versos capazes de versar um diferente sentir, num silêncio que nos desafie o sentido maior de nos vermos crescer.
Porque apenas quem se descobre no silêncio abre a porta ao que lhe fala de si, do que é e do que pode ser.
Não um qualquer ser, mas um ser que se encontra consigo próprio, nessa forma que lhe é tão própria de se redescobrir.
É na pausa da música que as falas se entendem, quando falar só se concretiza por um modo único de calar.
Não esqueçamos que o futuro começa sempre em cada hoje pronto a viver. E em cada noite em nós, poderá existir ainda a esperança dos dias nos sorrirem mais próximo.
Somos artesãos permanentes de uma obra inacabada.
Por isso, num tempo que se faz novo, é tempo de reinventar o tempo pelo silêncio que, ruidosamente habilidoso, nos possa desconstruir a solidão com a força de um abraço dentro do olhar, a tocar como se fossem mãos.
E o coração livre, capaz de voar sobre o fio da coragem, numa espera de novos dias com asas.
Então, por fim, talvez possamos voltar a pousar, serenos, na luz desse alguém que nos reacenda a pele.
REVISTA VICEJAR
Mudara havia pouco tempo para a pequena cidade. Tinha sonhos que só o sonho alcança. Queria ver novos mundos, descobrir novos rostos e abarcar em si saberes e muitas, muitas recordações. Era jovem e a juventude é sempre o apelo maior ao desejo de liberdade e grandes aventuras. Por isso estudara para ser alguém, sempre crente da sua força de acumular vitórias. Só o conhecimento nos torna grandes, confessava a si mesma nos dias em que o sorriso parecia querer fugir-lhe. Para poder acreditar sempre e mais uma vez. Agora, finalmente, sentia-se grande. Até o “Dra.” era já título, como laço a enfeitar o nome. Aprendera muitas lições de cor para o conseguir agarrar.
A vaidade é um sentimento curioso. É exatamente do tamanho daquilo que a vida nos ensina.
Era dezembro. O frio enregelava a pele e fazia correr para o aconchego da lareira acesa, onde as paredes cantam a música com essa cor dos afetos que chamamos de lar. Paragem rápida na padaria que ficava no percurso e uma corrida para escapar à chuva miudinha, de um princípio de noite que começara a chorar. Ao sair, novamente os pés em sintonia a caminho do carro estacionado uns metros à frente.
Mas eis que o olhar pousa súbito sobre o escuro, debilmente alumiado debaixo da ponte próxima. Um contentor de metal com afável lume a arder, a pintar sombras num rosto solitário. O pobre homem sopra brandamente as mãos e esfrega-as uma na outra, como se, assim, as pudesse aquecer mais do que o próprio fogo.
Pela noite dentro, essa imagem de solidão ficou-lhe presa na alma. Vários foram os finais de dia em que voltou àquela padaria. Já não era o aroma do pão quente que a demorava no trajeto de regresso a casa. Agora ficava uns minutos dentro do carro, protegida do frio, a olhar o outro lado da rua. Aquele outro lado do seu mundo. A ganhar coragem.
Recordava as palavras de um amigo a garantir-lhe, certa vez, que a miséria assusta mais do que a maldade. Porque a maldade tem olhos que encantam e tem voz que seduz, dissera-lhe ele. A maldade tem força, a miséria não, basta-se a si mesma no seu vazio e desalento. A miséria não assume outra forma que não seja ela própria. E o susto antecipado de um medo em nós, muito antigo, bem escondido. Por isso lhe fugimos de cada vez que o olhar se confronta com ela.
Mas também alguém lhe dissera que se existem mundos que nos separam, haverá sempre presente um coração que nos une. Porventura a razão pela qual, nessa noite ainda mais gelada de dezembro, quando a chuva miudinha ameaçava voltar a cair, os passos não correram para o carro estacionado. Em vez disso, atravessou a estrada e parou debaixo da ponte. A hesitação a abrandar-lhe o respirar…
A voz do rosto solitário fez-se, de repente, ouvir, sem que dele se levantassem os olhos escondidos pela névoa do crepitar do lume no velho contentor.
- Aproxime-se menina. Não lhe faço mal!
E continuou, sonora e firme:
- Sei que há já uns dias me observa do outro lado da rua. Vou dizer-lhe uma coisa: a vida é como o amor, sente falta de um olhar onde possa agasalhar-se. Quando apenas existe silêncio, todas as portas se trancam dentro de nós. Por isso, seja bem-vinda ao meu lar. Como pode ver, as minhas portas estão sempre abertas. Está uma noite fria! Posso oferecer-lhe um pouco da minha lareira?
O coração pareceu parar de bater-lhe dentro do peito, face a tão humilde convite. E a intuição avisou-a que seria ela, a “Dra.”, grande de conhecimentos, que mais uma vez iria aprender a lição. Desta vez, uma lição bem diferente.
Estendeu as mãos sobre aquele confortável quente capaz de fazer esquecer todas as dores do tempo. Procurou perceber o olhar do homem que lhe oferecia, assim, na mais íntima emoção, singela hospitalidade para festejar o contentamento da chegada dela. Só então, com pasmo e sobressalto interior, percebeu que ele era cego.
E, de novo, como quem murmura um segredo, o sorriso dele mostrou que lhe entendera o espanto e a surpresa.
- Sabe menina, não tenha pena. Perder tudo na vida significa que também se perde o medo. Afinal, quando estamos nus de alma e corpo inteiro, nada mais há a ser roubado. E depois, existem lembranças que preferimos manter escondidas dentro de nós, lembranças que preferimos não voltar a conhecer-lhes o rosto.
Nesse momento, ela conseguiu perceber o significado da afirmação que um dia lera na passagem rápida por um qualquer livro, sobre a existência de chãos que, de tão férteis que são, erva daninha nenhuma neles consegue fazer morada. Talvez essa fecunda terra invisível seja a força, em comunhão com uma doçura inabalável, que nascem de longa e sofrida viagem às entranhas da vida. E a capacidade única de ali permanecer. Como descobriu neste homem de rosto solitário.
Afinal, o coração também é algo curioso. Cabe na palma da nossa mão, mas dentro do seu tamanho, está exatamente tudo aquilo de que precisamos.
Antes de partir, questionara-o como conseguia compreender tanto sem conseguir ver nada. Ele apenas respondera com um rasgado e sincero sorriso na boca, gasta pelo tempo:
- Não são necessários olhos para sentir. E para ver… não preciso deles. Tenho os olhos de Deus.
Nessa noite, antes de regressar ao interior, agora consideravelmente frio, da sua casa, ela deixara ficar nas mãos daquele homem o saco do pão morno que comprara na padaria. Consigo, trouxera uma lição com sabor perpétuo: há pessoas assim, não precisam de olhos para ver o infinito.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Sim, assim de repente, estranho título para uma crónica. Principalmente se vos contar que ele é o resultado da necessidade urgente que hoje senti, de escrever sobre o valor da empatia.
Talvez um pouco a propósito do nosso São Martinho, o jovem que um dia se tornou bispo de Tours, em França, e fundou o mosteiro de Marmoutier, na margem do rio Loire. Aquele que, segundo nos conta a lenda, quando num dia de inverno frio e chuvoso seguia pela estrada montado a cavalo, distribuiu o seu manto por dois pedintes a tremerem de frio com quem se cruzou e, então depois, desprotegido mas sem embaraço, seguiu viagem.
E o que é a empatia? (a saber, nome que só pela rima se cruza com a amável ‘simpatia’). Diz o dicionário que é uma ‘forma de identificação intelectual ou afetiva de um sujeito com uma pessoa, uma ideia ou uma coisa’. Diz-nos a psicologia que a empatia é a nossa identificação emocional com o ‘eu’ do outro. Em ambos os significados destaco a palavra ‘identificação’.
E porque o acaso nem sempre seja obra do acaso, deparo-me eu, ontem mesmo, paredes meias com um hospital, com lamentável cena que me entristeceu: homem de uma quanta idade, aspeto humilde, quase parente desta pobreza (in)visível que nos vai rondando. Ali estava, sentado numa cadeira de rodas, à beira da estrada movimentada, numa súplica surda para que o ajudassem a subir o passeio que lhe daria acesso a nova descida para a passadeira. Uma tentativa frustrada para alcançar o outro lado.
À minha frente, duas mulheres em passo acelerado, fruto do tempo em que tanto se acredita que se pode chegar a algum lado mais rápido do que o próprio tempo. A mais jovem a adiantar-se. Mas a adiantar-se para seguir o caminho dela, após ter olhado a interpelação do primeiro, do alto do seu pequenino mundo. E se tão bem olhou, melhor avançou. A segunda, ainda que lhe suspeitasse um momento de hesitação, sempre acudiu. Movimentos rápidos e rosto mudo, que se faz tarde, e o “passageiro” chegou célere ao destino pretendido.
Como nesta curiosa nova era em que vivemos, parece andar aí pelas bocas do mundo, aceso vírus denominado de ‘Amor’, vou-me perguntando algo desconfiada, onde anda metido que tão poucas vezes com ele me tenho cruzado. É que, de há uns anos a esta parte, muito se tem ouvido falar em amor. A ponto de já me soar a prece recitada de cor, ao jeito dos aprendizes a conjugarem os verbos: “eu amo, tu amas, ele ama, nós amamos…”.
Mas e esse amor? Onde mora, afinal? Porque também nunca, como na atual era em que vivemos (e posso dizer que este meu quase meio século de vida já me permitiu ir constatando alguma coisa), tal proclamado ‘Amor’ terá andado tão escondido das ruas da doçura.
Estou em crer que o indivíduo entra no corpo de cada um, mas tem dificuldade em sair. Põe-se a namorar à janela com o próprio umbigo, enquanto vai debitando prolixas palavras de encantamento e grandiosas lições de moral aos que passam e lhe sorriem, com o intuito de ser aplaudido… e muito amado. Mas se o convidam a fazer uma visita pela avenida dos necessitados, olha para o lado, a assobiar, em modo de quem não vê porque não é de cá e só estava de passagem.
A empatia, caro ‘Amor’, é como disse acima: identificação. E esta implica ação (boa ação) quando é chamada a sair de casa e a fazer-se ao caminho. Ao caminho da vida real. Sem ficções, sem festivais com foguetes e fogos de artifício, sem espalhafato, sem teatro, sem propaganda (da enganosa).
Porque em ti, caro ‘Amor’, o teu amor não pode ser somente palavra repetida até à saturação. Palavra banalizada. Palavra vazia. A tua empatia, ‘Amor’, tem que ser gesto e corpo presente. Querer estar. Querer saber. Procurar. Dar a cara, se tiver que ser.
Porque tu, caro ‘Amor’, deves fazer-te de sentimentos. Ter a maestria do toque, dos olhos que vão ao fundo da verdade. Deves fazer-te de respeito. Deves fazer-te de tantos adjetivos, mas sem pretensiosos objetivos. Mais do que confiança, deves vestir-te de autoconfiança. Senão, não és amor, mas apenas a falta gigantesca dele, à procura de ti próprio.
E nem precisas de saber fazer bem as contas porque tu, ‘Amor’, não existes por nem pela quantidade de gente que te rodeia. E, curiosamente, só quando consegues, efetivamente, dividir-te por muitos, passas a ser ímpar.
É mesmo aí, nesse exato ponto, que percebes que não precisas de ver a alma nua dos outros, para saberes dos seus sonhos. E descobres o que é a empatia.
Ficas a saber, ‘Amor’, que se para tantos a vida é uma fantástica e imaginativa história de amor feita de verborreia, para outros quantos, felizmente, ainda será uma obra construída com alicerces. Por isso, deixo-te uma sugestão: não faças de ti apenas uma lenda, como a de São Martinho. Afinal, ele existiu e reza a história… que soube amar.
REVISTA VICEJAR
Descobri o Paulo Cesar Paschoalini há uns tempos atrás. E digo descobri porque, de facto, nunca o conheci. Nunca nos vimos, melhor dizendo, para definir a conotação mais leve da palavra “conhecer”, pois que o conhecimento de alguém só é suscetível de se concretizar pela via da convivência ou, talvez, pela veia sensível do poeta. E se, por um lado, com a distância física de um oceano a separar-nos, o espaço permanece desde logo fora de questão, por outro, nem eu nem o Paulo Cesar nos definimos propriamente como poetas. Como ele próprio o diz, “sou apenas um sujeito que se deixa dominar por um determinado número de palavras”. E com ele concordo no que a mim me diz respeito.
Mas o certo é que, por vezes, nos basta apenas o descobrir, para compreender que pelos quatro cantos do mundo existem pessoas que, como as flores deste não-poeta, “ganham mais vida depois de admiradas pelos nossos olhos”. É que, pela proximidade que fui encontrando através das suas palavras, percebi neste ‘amigo virtual’ a mesma apetência por tudo aquilo que é o essencial da vida. A mesma leveza com que capta nos pequenos detalhes do quotidiano, o belo e mágico das entrelinhas que nos circundam, mas também as feridas e os absurdos dos tempos que nos esmagam a fé. Terá sido, porventura, pela concordância da rima neste sentir dos cenários do mundo e de um olhar de entusiasmo sempre novo de quem, em cada instante, renasce para a vida, que um dia o desafiei a contar(-me)-nos o que entenderia ele como sendo “As Cores do Silêncio”.
Acredito que o Paulo Cesar possa considerar ainda não ter tido a disponibilidade desejada para dar voz à proposta. Mas, eventualmente, não saiba que acabaria por fazê-lo recentemente.
“Olhando essa linda fotografia, acabei escrevendo isso:
As aves pairavam na luz,
realçando os tons do arrebol.
O bailado dourado seduz,
feito escalas aladas do sol.”
Ali, a simplicidade breve e linda do seu comentário. Como se fosse legenda a captar a essência daquele momento de contemplação por mim registado em fotografia (no areal de uma pequena praia de Portugal, cujo nome aqui não traduzirá o enlevo do local; nem sempre ‘beleza’ tem que rimar com ‘grandeza’). E nessas palavras o toque da emoção, fruto do olhar que conseguiu em partilha escutar tão bem, afinal, as cores do silêncio…
Por isso hoje, neste texto, expresso o meu apreço ao Paulo Cesar, dando continuação ao repto que eu mesma lhe havia, antes, feito. E, desta forma, continuo viagem a partir desses acordes de mar e céu banhados, aqui, pela luz do meu outono dourado por gaivotas. Nesse silêncio que, como ele tão bem aponta, é preciso “para escrever aquilo que se quer gritar ao mundo”.
São as cores do silêncio que encontramos quando temos vontade de envolver o coração no nosso próprio abraço. Nelas, o sol se faz manhã em cada tecla de luz que entra, de mansinho, pelas frestas da persiana caída do quarto, a seduzir-nos o olhar. E esse ouro das vidraças acorda, tranquilo, a combinar tão bem com as emoções do dia. Quando as paredes murmuram baixinho que só precisamos de um ninho para nos aconchegar. E, de repente, a pele se levanta nos gestos sem toque que nos sabem àquela melodia da canção que nos fascina.
São as cores do silêncio que escutamos quando a música é pronúncia sem palavra a (de)cifrar a quietude dos instantes que nos falam. Ou quando roubamos uma fatia da imensidão azul para oferecer ao mar. Ou ainda, com os dedos soltos, pegamos numa lágrima e com ela pintamos a areia fina da praia debaixo dos pés.
São as cores do silêncio que nos tocam ao sentirmos a brisa, disfarçada de pássaro, a conduzir-nos o pensamento a todas as distâncias possíveis. Quando ouvimos aquele poema que dissemos num repente, inspirado nas saudades longas dos afetos que, um dia, nos mataram os vazios da solidão. E neles, descobrimos o segredo doce dos abraços feitos de encontros a abrir-nos as portas para entrarmos, sem promessa de saída. Ou quando pedimos ao vento que nos cante as lembranças que agasalham a mágoa dos que vimos partir e, com a alma ferida em sofrimento, fazemos da oração um destino à nossa espera e entoamos a prece que os guia de volta a nós.
São as cores do silêncio que nos envolvem quando nos entregamos à paixão apenas por um dia e, sem querer, dela nos perdemos sem saber que, afinal, o amor existia. E, enquanto sereno cai o gelo do anoitecer, a cintilar no frio do corpo adormecido, a noite acontece com veste de estrela para nos aquecer o sono que nos povoa de inverno.
E, por vezes, tantas vezes, as cores do silêncio são as cores do tempo em que o tempo nos sorri. As cores de um tempo sem pressa em que pedimos ao tempo que volte para nos visitar. E os sentimentos, de mãos às avessas com a razão, nos transportam assim, com branda quietude, por um mergulho da alma a recordar as cores das nossas memórias.
Felizmente, Paulo Cesar, ambos acreditamos que…
“Todas as coisas que existem,
mesmo as tidas como eternas,
mais dia, menos dia, passarão...
Contudo, as que forem ternas,
muito mais tempo ficarão!”
Como as cores do silêncio.
REVISTA VICEJAR
“Dois homens olham pela mesma janela. Um vê a lama.
O outro vê as estrelas!”
Frederick Langbridge
O que faria ele para te ver sorrir?... Ele, que tinha o brilho da manhã no olhar e as estrelas da noite nos gestos serenos que encantam. O que faria ele?... Hoje não o saberás, mas sabe sempre que a história em algum lugar se repete.
Ele, o velho Isaach, o ‘filho da alegria’ como o pai o chamava e que na memória carregou as palavras deste: “a luz com que vês os outros, é a luz com que os outros te veem a ti”. Um provérbio africano, contaram-lhe. Para ele, a maior verdade com que caminhou pelos dias.
Acreditava sempre que um coração nunca carrega demasiadas dores quando nasce para fazer sorrir quem encontra pelo caminho. Isaach olhava, olhava com muita atenção a alma de cada irmão e descobria no sol que ali habitava, o mundo que a fazia sorrir. E, então, sorria também, porque só assim ele sabia ser feliz.
E feliz era agora, mesmo naquela cama de hospital, de um branco mal lavado, para onde as sombras da velhice o atiraram. Ah! Mas Isaach sorria ainda! Porque mesmo no meio da escuridão, há sempre uma razão para olhar o infinito com a sabedoria que a vida carrega nos ombros. É que Isaach não estava só. Com os seus sorrisos viajava Maurício, pequeno de estatura e olhos cor de avelã por cima da pele branca. Mais maldita seria a sua sorte, pensava com pena Isaach em cada dia que passava, pois que este seu ‘irmão’ nem da cama podia levantar-se. As dores no corpo moído eram demasiadas para o seu peso leve.
Assim Isaach lhe descobriu também a alma com a magia do seu coração. E em cada tarde de nuvens ou nesga de sol, aconchegava-se na ombreira da única janela do quarto e desfiava os seus sorrisos sob os ouvidos atentos de Maurício.
- Hoje, meu amigo, vejo ali fora no jardim, uma borboleta delicada que pousa sobre um vaso de margaridas amarelas. São irmãs das rosas brancas que moram no canteiro ao lado. – Cantarolava ele, saboreando o doce de cada palavra - Parece-me que lhes conta agora um segredo… Talvez se tenha apaixonado pelo gaio de dorso rosado que ontem pela tardinha por aqui voou.
E pela aurora seguinte, as paisagens do olhar desdobravam-se em continuadas ternuras cheias daquela vida lá fora:
- Esta manhã, meu irmão, o sol espreita mais feliz! No parque ali defronte, aquele pai caminha com o filho nos ombros e a mãe, de mãos dadas com o cestinho do lanche, é toda orgulho e vaidade dos seus amores! Como dançam os carinhos que os três partilham!
Isaach espreitava o companheiro deitado no seu leito, junto à parede, de olhos fechados e um sorriso gigante, a deleitar-se no som destas imagens que tanto o faziam sorrir também por dentro…
Mas a vida tem sempre o seu desfecho. E numa tarde amarga sem rosto, Isaach não conseguiu levantar-se da sua cama. Entre um respirar delirante e uma prece de súplica, os seus movimentos presos não lhe permitiram tocar no botão que apressasse os enfermeiros em seu auxílio. Sabemos amigos, que o homem ama mas também inveja. Foi nesse sentimento mais baixo que Maurício, em silêncio, deixou partir o companheiro para que veladamente o seu lugar pudesse ocupar e, dessa forma, poder sorrir também pelo seu próprio olhar.
Na manhã de primavera que se seguiu, cama ao lado desocupada, Maurício pediu a gentileza de ser colocado junto à nobre janela do quarto. E, ali, em esforço soberbo para decifrar o mundo que apenas vivera em imaginação, apoiou-se sobre a cabeceira da cama.
Assim, também ele viu o que Isaach, tão humanamente conseguira, só para o ver sorrir: do outro lado da janela… apenas um velho muro em ruínas.
Inspirado na curta-metragem estado-unidense, The Hospital Window (SpiritClips, 2012), de Alexander Soskin, escrita por Terry Brutocao e Robert Fried.
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Isa Bel. Quando, um dia a conheci, senti de imediato que era daquelas pessoas capazes desse feito único de pousar o olhar nas estrelas. Penso que seria para as adivinhar. Porque soletrava o nome de cada uma, como se lhe fossem pertença do coração.
Perguntavam-lhe muitas vezes, porque perdia tempo a namorar com os sonhos. Respondia, com os olhos carregados de distâncias, que o tempo… Bem, o tempo serve para guardar vidas irrepetíveis. Por isso se perdia, assim, nele.
Vi-a, muitas vezes, presa nos timbres das sombras onde se permitia descansar das fadigas do espírito. Sabia que, por dentro, murmurava para si própria uma canção de embalar, cujas palavras só o silêncio tinha permissão para entender: “Os pássaros… é tão profundo o som naquele trinar a engrandecer o Ser de ser completo e inteiro!” E a tranquilidade era-lhe apenas isso, aquela música infinita num cair de tarde a aconchegar o horizonte. E um raio de sol que não lhe escondia o sussurro de um outono já a prometer-lhe a alma. O céu inteiro a olhá-la, oferecia-lhe esse instante com cheiro a lilases!
- Ainda sou livre de acreditar que a vida só vale a pena quando os sentidos saboreiam todos os detalhes de um único momento. – Declamava, baixinho, como se brincasse com as letras de um poema.
Sabia de cor todos os segredos da terra. Os muros e as cores, as árvores e os cheiros, a transparência da chuva e a exatidão dos insetos, a solidão das nuvens…
- Com eles, visto as roupas das minhas memórias no espaço exato de um momento. – Ouvia-a, certa vez, murmurar.
Desenhavam-se-lhe no rosto as palavras dos outros como uma brasa que queima por dentro. Às vezes mel. Às vezes fel. Se o mundo nos dói, não quer dizer que destrói… E seguia em frente. O mar dos braços num abraço a si mesma. É que Isa Bel tinha esse dom: a brisa do seu ser aquietava-se-lhe no calor de um simples toque, mesmo que ainda por inventar. Depois, livre, partia num baloiço à procura de todos os céus possíveis…
Diz que descobriu a esperança no dia em que levantou os olhos para sentir melhor o cheiro do vento. O instante em que ficou a saber que dentro dela, todas as almas podiam ser infinitas.
Por isso, foi ao senti-la silenciosa na lonjura daquela janela, que lhe perguntei:
- Então, qual o medo de sonhar quando se carrega, assim, a fé no olhar?...
Não me respondeu. Lentamente, limpou o canto das lágrimas.
Creio que todos os gestos guardam os segredos de uma vida.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Em cada noite lenta de sombras e espetros vazios, ele regressava a esses lugares de onde nunca conseguira partir. Vagueava ao acaso pelo norte dos caminhos perdidos, pela cidade poluída caída em desuso, pela tristeza e pelos vazios das vielas sem rumo. E num voo noturno, construía-se humano disfarçado com asas de esperança.
Era apenas assim que acreditava merecer a vida.
Por entre a misteriosa ponte de nevoeiro e agarrado aos pincéis em bruto da alma, pincelava a fé escondida dos homens quando parecia não haver mais nada… Letras soltas de aromas e silêncio: assim ele sabia construírem-se as palavras onde cabem todos os mistérios da vida.
Era aí, abraçado à leveza de um branco alvo que acolhe, que se preparava para nos fazer renascer no azul distante dessa imensidão que desejamos próxima. E num rosa sorriso de afetos revelados, transbordava a essência do vermelho coração, absorvendo-nos no verde futuro de uma outra dimensão.
E assim explodia no brilho dourado que emanava, a gratidão serena daqueles que, entre todos, o aceitavam.
Souberam depois que, nesses dias, ele se demorava sempre no limiar da luz confundida entre a noite e o dia, ao encontro de uma madrugada sem tempo, a tornar única esta sua promessa sem opções.
Ficou conhecido na cidade e no mundo: o ‘Pintor de Emoções’.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
(Uma história passada num Alentejo bem distante no tempo! Como o Manel das Ovelhas, moçoilo bem apessoado, ganadeiro de ofício, deu provas da sua valentia e assim conheceu e se apaixonou pela Chica do Brejo.)
… Continuação
Assim foi que pelos dias d’alumiada, já depois da hora do maior calor e numa tarde de céu cavado, o Ti Chumiço foi direito ao filho com a seguinte ordenança:
- A ver se t’avias ó cagarilhas, qu’hoje há balharico.
- Quer o mê pai que eu vá dançar nestes trambelhos? Atão nã se dá conta das minhas aflições? Tou lá eu capaz de tamanha façanha?! – Inquiriu o Manel, de cara posta.
- Por isso mêmo. – O Ti Chumiço rematou a lamúria - Endreta-te e agarra nos quatro arrátes, que se faz tarde.
Contrariado, mas obediente ao pai, o Manel lá foi para o baile que corria junto ao campo da bola.
E estas são coisas que nem Deus adivinha, porque foi nesse dia que ele arranjou áspera confusão que lhe valeu uma reviravolta na sua vida, tão achegada a malquereres.
Acabado de plantar os pés no bailarico e logo o Manel deu de caras, ali num ajunto de pessoas, com a Chica do Brejo. A linda Chica, que morava lá para os lados da Serra da Guarita, ali bem à sua frente, toda ‘empapoilada’! Moça vistosa e de modos agradáveis. Aos rapazes até se lhe lavavam os olhos quando a viam nos bailes, tal era a sua boniteza. Grande pedaço de tempo ficou ele, de soslaio, a admirá-la.
Eis senão quando, batendo com os olhos no Justino Estarola, o Manel deu fé de uma deslavada cena. O mariola, muito senhor dos seus botões, alvorado em parvo, a mandar as suas patouchadas à Chica do Brejo. Ela corada, incomodada com tal afrontamento e audácia que o outro fingia não perceber, alheio da sua descompostura.
- Olha nã querem lá ver o garganêro com as suas dezidelas parvas? Às tantas nã sabe ler! Haveras de pensar que todo o mato é orégão, seu sarnoso? - Grunhiu o Manel ao Justino, de peito empertigado.
Ao que respondeu o outro, com ligeireza, por entre sonora gargalhada:
- Nã me querem ver este agora? Tal tá a cachamorra! Tá visto que se a inveja fosse ‘tinha’ toda a gente era careca.
O Manel ainda se encrespou mais…
- Tu põe-te fino, ó Estino… Dou-te um estrompasso nesse focinho c’a ficas com a fronha toda esbolemada e vais daqui de esgalharêta, farsolo!
- És manilha pr’a isso! - Provocou o Justino.
Juntou-se logo o povo, aos dois que ali faziam uma grande estouraria.
O Manel, espadaúdo, maltês como um alarve e mal tomado com a ousadia do confronto, não se fez rogado e pespegou-lhe duas briosas galhetas.
Tal não foi o brilharete feito que o Justino Estarola caiu de pantanas no chão. Esbandalhado e não tendo mais remissão, abalou a correr desembestado, com cara d’asno.
Riu o Manel, muito orgulhoso da sua valentia.
- Ora munto bem fêto, nã viesse meter o bodelho onde nã era chamado! Veio p’lo burro e voltou p’la albarda!
Mostrou-se a Chica do Brejo, a modes que assarapantada.
- Ai! Que até se me deu um escalafrio, Sr. Manele! Grande surraço me pregou!
- As minhas desculpas, menina Chica. É qu’eu, quando vi o Estino assim a faltar-lhe ó respêto, eu fiquei que n’em sequ’é uma bala me passava!!! Tinha que dar-le uma abênçoa no caçoiro! Mas havera mesmo era de lhe ter dado um enxugo. - Adiantou-se logo, embasocado, o Manel.
Ficaram depois calados sem ter o que dizer, mas com os olhos de esguelha um no outro.
O cair da tarde tinha esfriado e a Chica, aproveitando-se da coisa e encolhendo o xaile nos ombros, com muita graciosidade largou um espirrinho atrofiado:
- Jesus Marizéi, menina Chica! – Abençoou o Manel de imediato e logo aproveitou a deixa para a conversa - A menina, por certo nã s’enterou, mas hê-de dezer-lho eu: o Estino Estarola nã tem tacto nenhum, nasceu ralo, o coitado! Aquele alganaiso nem uns bornicos sabe estrapolar. E anda sempre por aí de ventas no ar c’as moças da aldeia. Além disso, nã é home com préstimo pr’o futuro. Nunca coalha vintém, aquilo é chapa batida chapa lembida.
- Ai Sr. Manele, que d’homes desses até tenho rescunho! Home qu’é home, pr’a mim, tem que ser de bravura e de boa cabeça e nã andar pr’aí com imposturices. Saiba o Sr. Manele que eu sou chita que nã debóta!
E aproximando-se do ouvido do Manel, rematou baixinho, num riso nervoso:
- E sabe doutra cousa que lhe conto? Também sou solta de pé e perna…
O Manel, tirando educadamente o chapéu da cabeça, avançou:
- Pois olhe menina Chica, eu cá sou lá de trás das estevas e nã tenho letras… Mas ouça o que lhe digo: vou brigar por si.
E a Chica, embosiada, muito corada…
- Ó Sr. Manele, veja lá não esteja pr’aí de mangação comigo… Ora agora é que vocemessê me partiu! O Sr. Manele diz que nã conhece letra do tamanho dum burro, mas odepois, mais parece um poeta!
E foi assim, pela hora do lusco-fusco, enquanto o Tónho Gaitinhas tocava a moda desses tempos que, sem dizer palavra e com muito jeito, o Manel das Ovelhas, pegou na mão da Chica do Brejo e os dois, nos olhos um do outro, tiveram aquela dança só para eles.
Agora sim, pensava o Ti Chumiço, seremoniando: “O mê Manele tá capaz doutra!”.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Recordava-se, muitas vezes, com satisfação e saudade daqueles dias do calor de verão com sabor a pão quentinho das terras alentejanas. Ou do aroma agradavelmente perfumado dos coentros da horta do tio Jacinto. Era ali, nas férias todos os anos ansiosamente esperadas, debaixo de um sol dourado a convidar sestas preguiçosas, que ele sonhava com as antigas histórias que o tio lhe contava, sempre com aquele mesmo entusiasmo de uma primeira vez.
Logo no primeiro dia em que ele chegava, pela tardinha, o tio Jacinto sentava-se debaixo de um belo chaparro - senhor dos tempos e de longas esperas - próximo de casa. Chamava-o para o acompanhar e convidava-o a sentar-se ao seu lado, sobre as ervas secas. E então, com uma voz grossa e bem audível, como convém a um bom contador de velhas histórias, começava a ler o livro de capa preta. Atrás deles, andava sempre o seu companheiro de brincadeiras desses dias, o cão Tobias. Esperto como só um cão sabe ser, deitava-se junto de ambos e olhava fixamente para o tio Jacinto, com as orelhas arrebitadas como a adivinhar-lhe as palavras. Por norma, acompanhava-os depois nas largas sestas e era sempre o primeiro a adormecer, alheio à voz do dono e das cigarras cantadeiras.
Ler, julgava ele que o tio estava a ler… pois que ainda não aprendera as primeiras letras! Mais tarde viria a descobrir que, afinal, podiam ser histórias verdadeiras, aquelas do tio Jacinto. Histórias que, por alguma razão, não quisesse confessar como suas, mas que lhe estavam na memória. E delas fazia uso para encantar o sobrinho antes da sesta almejada, ali mesmo debaixo do chaparro.
Ficava-se a olhar para as mãos do tio, a folhear lentamente as páginas do livro, à medida que a história avançava. Recordava-se de pensar que nunca tinha visto mãos tão grandes em ninguém e ficar a cismar, silencioso, se no inverno o tio encontraria luvas que lhe servissem para o aliviar do frio. Agora entendia que, muito provavelmente, o tio Jacinto seria homem habituado às agruras do tempo num Alentejo de portas abertas às visitas de verão, mas onde a pobreza brotava em solos secos e nas vidas difíceis de quem habitava aquela casa o ano inteiro. Certamente, nunca sentira precisão de luvas.
De todas as histórias que ouviu do tio quando era criança, uma lhe pediu muitas vezes para repetir. Porque era uma história muito antiga. E, principalmente, porque dava uma curiosa história de amor. Daqueles amores de outros tempos, com personagens e dizeres que ele achava já não existirem. Sempre gostara de histórias de amor! Como a do tio Jacinto, por exemplo. O tio Jacinto também tinha uma longa história de amor com a tia La Salete. Mas isso, já são outras histórias que, talvez um dia, ainda nos apresente.
Por agora, fiquemo-nos apenas pela famosa história que lhe permaneceu escrita na memória, tantas vezes a ouviu sentado com o tio Jacinto debaixo do velho chaparro, antes da sesta que ambos tão bem acolhiam.
Uma história passada num Alentejo bem distante no tempo! Como o Manel das Ovelhas, moçoilo bem apessoado, ganadeiro de ofício, deu provas da sua valentia e assim conheceu e se apaixonou pela Chica do Brejo. Ora, então, vamos lá…
“Tinham o Ti Chumiço e a D. Benigna, razões de sobra para se lhes enevoarem os dias. Os quatro filhos que lhes couberam em destino, não deviam muito ao Senhor pelas boas qualidades.
A Mia Zé Ladravona, já mulher feita, uma pingalhona, mandonga e grande arengueira.
Lala Tola, moça alvoraçada, espalaiada, de bico torcido e rabo alcarado. Toda ela era ‘espevitice’, com o seu ar inchado, sempre de beiços pintados, a mangar com as vaidades pobres da irmã.
Nasceu-lhes depois Nelinha, Lembrisca de alcunha, com a mania da esperteza, mas rala de inteligência. Criança aselha e desditosa por natureza. Já mocinha, passava a vida a cirandar naquele gosto de mandriar, a fazer do cu três bicos para mexer as pernas e o corpo todo que lhe pareciam presos ao chão. Com esta, era sempre tudo feito à faca e por cima da burra.
Ora, tinha a Mia Zé grande malícia à irmã do meio pois que, sabendo-se ela rapariga sem talho nem maravalho, julgava a outra armada em pessoa fina, certa de que lhe morava um rei na barriga. E com isso não podia. Sempre de má mente e intricante, Mia Zé não perdia oportunidade de atalicar a irmã. Punha-se, então, a Lala Tola numa gritaria: “acuda-me nha mãe, que a nha mana tem sarrêra comigo!”
E assim andavam sempre as duas, a rastenhar como pardalas, com a raiva escondida, como quem olha os mares-de-leva.
À Nelinha, não lhe passavam despercebidas as querelas das irmãs e, sempre inteirada dos seus desacatos, escondia-se entre portas, a ver se as duas se pegavam. É que a páginas tantas, era mesmo um papelote vê-las naquela tourada desmedida. Logo saía da cozinha, onde a caçoula com a sopa fumegava no lume, a D. Benigna, aos berros:
-‘Alcará Maria’! Parece que têm o diabo no corpo! Raios m’a mim partam que nã sei que ganas me dão que daquém nada, alcanço um ramo de craquêja e chego-vos a roupa ô pelo! Prantem-se quétas, suas pespenêgas!
O Ti Chumiço intervinha de quando em vez, para acalmar a situação. É que isto de ter tanto mulherio à volta de um homem, não é tarefa com que seja fácil lidar.
- Ó diacho, mulher! Deixa lá as maganas e vai mas é arrepartir a ceia. Elas são estrafanáiras, mas são boas mocinhas!
- Lá tás tu sempre a detari água na fervura, filho! – Gritava a D. Benigna, ainda mais empestada. - Nã vês qu’elas são de má raça? Sempre c’as laimas em cima uma da outra?!
Pobre homem, o Ti Chumiço. Se dum lado lhe chovia, doutro lhe fazia vento. Valia-lhe o seu Manel, moço bem falante, de boa catadura e boa cabeça. Mas também de poucas sortes. Andava agora arredio por conta da ciumeira com a Laida, por quem tinha grande querença. Mas bem via que a rapariga não lhe deitava os olhos. Diziam à boca cheia pelos montes e vilarejos, que era amigada com o Sr. Justino Alves, doutor e de boas heranças, mas casado. O que, está bem de se ver, era escolha mal pensada da Adelaide, que se punha ainda mais nas bocas do povo. É que o passado também já não lhe era muito a favor, como a ver vamos…
Todos os dias, a caminho da lavoura, o Ti Chumiço ia primeiro à da sua comadre Gertrudes e lá com ela desabafava os seus rosários.
- Ai o mê Manele, Ti Estrudes, anda sempre ca crista tã pendida, pobre moço! Se nã anda mal achado, isto deve de ser por causa daquela esgróviada da filha do Ti Lúcio, que lh’ anda enfernizando a vida…. Atão na m’aparece agora em casa a modes que assergalhado, todos os serões? E noite adentro, eu e a nha Benigna, lá o ouvimos a gritar pelo gregório…
- Temos que lh’arranjar combalacho, é o que lhe digo, Ti Chumiço. – Respondia a comadre Gertrudes, a tomar as dores do afilhado.
O certo é que o caso estava bichoso e não dava esperança de melhoras.
A D. Benigna, que pouco jus fazia a nome tão cheio de delicadezas, era mulher de muito génio que não ia em corridas de ganso.
- Essa pindura da Laida nã tem sobernação nenhuma! Foi enganada por um figurão e teve um filho que foi fêto p’lamor Deus, fora a mãe dela qu’ era uma mulher séira. E o mocinho, coitado, sendo criado ôs pontapéje duns e doutros? Agora anda outra vez nessas lides! Essa é moça com um’aduela a menos, que apanhou o nosso Manele com’um lapardão!
E D. Benigna chegava-se à frente, pois tinha que dizer das suas razões: que punha as mãos no lume que aquilo eram coisas feitas pelas artes do mafarrico e que tinha que ir bailar as encruzilhadas. Ainda haveria de encontrar para o filho, mulher rijinha que fosse capaz de estragar meias-solas. A ela, ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha.
Ao Ti Chumiço, aquelas palavras assentavam-lhe mal e arreganhavam-se-lhe os dentes:
- E tu a dar-lhe e a burra a fugir! Cala-te pr’aí mulher, nã me faças azoinar com essa escagalhoada! Ainda arranjas lenha p’ra te quêmar.
- Fia-te lá na virja e nã corras. - Afiançava a D. Benigna, certa dos seus desvelos de mãe - Falar com o nosso Manele, aquilo agora é como quem lava a cabeça a um burro e o manda p’rô espojêro. Olha qu’é preciso orêlo, home! Ele há munta manêra de matar pulgas e essa Laida sabe munto bem em que mato faz a lenha! O nosso Manele é um moço bem cuidado, mas nengueim as veste que nã as borre. Se nã fores tu, hê-de eu tirar-lhe as ganfanas. Cuida do que te tou dizendo.
O Ti Chumiço mancou, por fim, a preocupação da mulher e conhecedor, em primeira mão, dos seus maus fígados, lá se lhe meteu na cabeça que haveria de arranjar solução para o caso.”
Continua …
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Assim falou ele com os sapatos cinzentos de pó e os cabelos dormentes a estremecerem-lhe em desalinhos e nós.
E os olhos azuis… Aquele azul de céu que parece feliz!
A barba rara aqui e ali, a tocar-lhe a boca por baixo do nariz.
A flor amarela ao peito com aroma de amor-perfeito.
E ela toda vestida de novo, o cravo esquecido no cabelo, fugiu do calor a corar sem saber se dizia sim ou se o fazia esperar.
É que a boca falava que não. Mas os olhos azuis, os dele, já lhe faziam morada no coração.
A Rosa formosa, de jeito catita, lá aceitou a dança bonita daquele serão.
Tremia risonha e alegre com cautela no pôr do pé, não fosse o decote pequeno, resvalar rendido aos olhos do Zé.
Tinha estrelas o adro da igreja, branquinha, a brilharem-lhes nos sorrisos cor de fé!
E assim parece que as histórias de uma vida, um dia foram escritas mesmo antes do mundo ser criança.
Porque 50 anos depois daquelas palavras ditas, o Zé ainda murmura cheio de orgulho, aos ouvidos da Rosa:
“A menina dá-me a honra desta dança?”.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Do alto da janela da minha memória vislumbro um olhar que abarca próximas recordações, tão languidamente quentes que adoçam o coração…
Um sol que adormecia a madrugada e vinha de mansinho. Espreitava a varanda ainda cheia de silêncios, a deixar a alma envolver-se, docemente, nos acordes cintilantes dos primeiros gorjeios dos pássaros encantados. Porque encantado era esse mundo pleno de sonatas e pasodobles que só a luz do paraíso interior de uma criança permite alcançar.
Do alto da janela da minha memória invade-me a fragrância fresca do café acabadinho de aconchegar na quietude da velha cafeteira de alumínio. E do ovo frito que a frigideira deixava repousar no calor de uma chama vestida de diáfanos azuis e dourados. Acordes de vozes a despontar lá longe nos campos, à velocidade cadente dos tratores que sulcavam a terra húmida do orvalho da noite. Sons cantantes que, num crescendo lento, desapareciam pela branca brisa da manhã. E depois… O momento antecipado à distância: a hora de saborear aquele pão quente e estaladiço que o padeiro deixara pendurado no antigo portão de metal, colorido de mil tons…
Assim eram também de mil tons os espantos que a natureza me oferecia aos assombrosos sentidos de pequeno ser. Rasgos anilados de um céu que parecia tão perto de tocar. Cor de esmeraldas as árvores que a montanha ao redor abrigava no seu êxtase protetor. Sombras de terra pálida, as altas espigas do centeio que os pés enlevados exploravam, num caminho imaginado para o mar, entre risos e gargalhadas que todos soltávamos ao vento.
E assim se percorriam livremente as certezas de um presente infinito, sem espaço nem hora, sem futuro nem tempo. Apenas o sentir dos momentos, dos lugares, daqueles de quem nunca nos despedimos porque estamos sempre certos de voltar.
Ficam as memórias do alto da janela da minha casa, com sabor a castanhas assadas na fogueira da cozinha velha, caiada do negro carvão. E da chaminé. A secular chaminé que recebia a primavera a beijar as rosas soltas no intocável canteiro do jardim. Do meu passado.
Como Alberto Caeiro, “da mais alta janela da minha casa, com um lenço branco digo adeus aos meus versos que partem para a humanidade”.
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Encostou-se ao beiral da janela a olhar lá para baixo, numa atitude de indiferença face ao infinito. O rosto, porém, revelador de vastos, profundos e secretos pensamentos a invadirem-lhe a alma.
Um dia normal, como todos os outros. O soar dos passos apressados dos transeuntes na calçada da avenida; o buzinar constante dos automobilistas enfadados de engarrafamentos e trânsitos bloqueados, sentidos proibidos espalhados em cada esquina, estacionamentos atolados e um ou outro polícia desorientado no meio da confusão, a soprar avidamente o seu apito; o vendedor de ‘banha da cobra’ a apregoar mais um novo (ou velho) produto milagroso no mercado. O eco longínquo dos comboios a passar lá longe, na estação dos caminhos de ferro, com passageiros silenciosos, perdidos na vaga distância de um tempo imparável.
E ela ali, encostada à janela, qual estátua. O silêncio dentro de si.
Dera-lhe nesse dia para cismar em antigas “águas passadas que já não movem moinhos”. Expressão que a própria tinha o hábito de utilizar quando se dirigia à filha, sempre atrapalhada com os seus problemas existenciais.
A luz da última réstia de sol ainda lhe aveludava o olhar disperso no horizonte. Um brilho que já fora natural mas que há muito desaparecera. Quando? Nem ela mesma se lembrava, tantos os anos que haviam passado!
Estava sozinha em casa naquele final de tarde. Recebera um telefonema apressado da sua Alexandra, a informar que ia “jantar com o Raúl” (última conquista da filha, depois de um rol de lágrimas e deceções amorosas; uma dor que ela, tão pacientemente, no seu eterno papel de mãe que sofre em silêncio as desgraças da família, procurava sempre suavizar com palavras meigas e um sorriso de desveladas esperanças: “Não te preocupes, querida, um dia vai aparecer o homem que tu mereces...”). E assim passara anos, a viver as dores daqueles que amava, a aplacar tristezas, a cuidar da casa, da comida, da roupa, a fazer as contas à vida e a sonhar com um futuro sorridente para a única filha com que Deus a abençoara. Assim passara anos...
E ela?... Encostada à janela, naquele dia, lembrara-se dela! Há tanto tempo já não lhe acontecia lembrar-se dela que ficou surpreendida e até um pouco angustiada com o pensamento. É que ao lembrar-se assim dela, sem precaução nem anúncio prévio, trazia à memória recordações que julgava apagadas.
E foi quando o barulho de fundo da televisão ligada, para não se sentir tão sozinha, a transportou sem intenção para a sua juventude. Essa juventude que não pode deixar de comparar, agora, com o presente. A sua juventude... Uma lágrima rolou-lhe pelo rosto e nem sequer se deu ao trabalho de a limpar com a ponta dos dedos, como algumas vezes fazia, para o seu António não dar conta de súbitas tristezas que lhe invadiam o coração. Porque ela não podia... Era o baluarte da família e chorar em frente ao marido era dar-se parte de fraca!
Ah! O seu António… Tantos anos juntos!
Seria capaz de jurar que, se algum dia a filha se casasse, nessa condição não ficaria nem uma terça parte do tempo... Gostava de acreditar no contrário, mas ela via como as coisas funcionam atualmente. A sua Alexandra já tivera tantos namorados e nenhum lhe servira. Por qualquer razão pouco feliz, as relações ainda mal começadas já espreitavam o fim por entre gritarias, choros e muitas lágrimas de desânimo não escondidas. Agora, os jovens já não suportam nada. Tudo lhes serve de motivo para acabarem de vez com um namoro que parece começar da melhor forma possível, cheio de sonhos para o futuro, com muitos abraços, carinhos e beijos à mistura. E, de repente, pufff... O amor desaparece. Por tantas e inúmeras razões que encontram plausíveis, terminam tudo. E voltam a sair juntos... Como amigos! Enfim...
A verdade é que estas ideias, que lhe assomaram à cabeça, lhe trouxeram velhas lembranças. E não eram assim tão agradáveis! Se calhar, a Alexandra até tinha razão. Porque não haveria de procurar a felicidade que desejava? Encontrar, de facto, a possível pessoa certa?...
Ela não fizera nada disso. É certo que a vida e as condições eram outras. Mas casara cega. O seu António fora o primeiro e o único homem da sua vida. Alto, entroncado, voz grossa, chamara-lhe de imediato a atenção assim que lhe pusera a vista em cima. E ele também pareceu ficar agradado da companhia dela. Daí até ao pedido formal de casamento fora um salto.
E os anos passaram. E com o passar dos anos, os sentimentos esvaíram-se-lhe no fundo do peito dorido. Ela, que era tão sensível a um carinho de ternura. Ela, que era uma rapariga tão romântica e que adorava celebrar momentos especiais... Ela, que tinha tudo dentro de si, não encontrara nada cá fora. O seu António nunca lhe oferecera sequer, em todos estes anos de vida em comunhão, um único ramo de flores. E o aniversário de casamento? Se calhar, de tanto tempo sem ninguém para o recordar, até ela própria já se esquecera do dia. O único presente que se lembrava de ter recebido fora uma caixa de bombons. Oferecera-lho uma vez a filha, numa visita ao hospital, depois de uma operação às varizes.
O seu António estivera emigrado na Alemanha, estivera. Mas as cartas que lhe enviara haviam-se resumido sempre a meia dúzia de letras a perguntar pela saúde de todos, com o final certeiro: “Um abraço, teu António”. Palavras mágicas de cores douradas nunca ouvira do marido. E, lentamente, a chama fora-se apagando, até cair no hábito da rotina diária.
Era um bom homem, o seu António...
Mas matara os seus sonhos e fantasias de mulher.
Pelo menos hoje, a Alexandra, embora não encontre a pessoa certa, poderá levar sempre na lembrança momentos que lhe fazem saltar o coração. E a certeza de que, um dia, alguém se aproximou dela, a convidou para jantar e até será capaz de lhe colocar uma flor entre as mãos e murmurar-lhe gentilmente ao ouvido: “amo-te”.
REVISTA VICEJAR
Era uma vez um homem com um grande coração.
Tão grande, diziam, que de tão grande que era não lhe cabia na boca.
Pois certamente que não, porque lugar de coração é num peito gigante, tão gigante como o meu, respondia Fabião, o homem com um grande coração.
Era uma vez uma mulher pequenina e graciosa.
De uma doçura tal que, diziam, parecia comer mel.
Mel não comia, afiançava com um sorriso feliz de orelha a orelha. Era apenas a doçura da alma que a tornava graciosa.
Assim como o néctar de uma flor, gracejava ela, a Mimosa.
Um dia, o Fabião, o homem com um grande coração conheceu a pequena Mimosa, a mulher que era doce e graciosa.
Outra coisa não seria de esperar que entre este homem tão grande e esta pequenina mulher crescesse um amor com aquela doçura de uma união, que só cabe a quem é doce e tem um enorme coração.
Diziam eles que os afetos não se fazem de idades nem de vontades.
A união é composta por laços com abraços que só escutam a Música do Coração.
Cada nota desta melodia é escrita com amor na pauta da vida e o resultado final será a mais bela composição.
A Mimosa e o Fabião garantiam não serem necessárias muitas notas.
Basta que a música de cada um seja tocada nos compassos certos e os braços para oferecer e receber amor tenham a magia de estar sempre abertos.
Foi talvez por isso, por serem tão diferentes mas tão perfeitos que, ao tocarem o coração um do outro, a vida lhes concedeu a sua mais bela sinfonia, a pequenina estrela Lia.
E deste modo, ao compasso daquela Música do Coração foi acrescentado um ritmo mais profundo.
Para o Fabião, a Mimosa e a Lia, agora nascia a mais bela canção do mundo.
Mas houve, então, um dia que encheu de cinzentas nuvens o céu da primavera e os sorrisos dos homens se calaram na terra.
Do ar desapareceu a leveza da aragem, havia lágrimas nos rostos e os silêncios gritavam a Canção da Coragem.
Andava à solta uma estranha criatura que ninguém sabia de onde viera e todos tinham que fazer mudanças, velhinhos e crianças, porque o mundo adoecera.
O som da certeza já não cabia na palavra futuro e entre os braços dos homens ergueu-se um imenso muro.
Começou a Lia a aprender as contas e as letras com diferentes cores de outras paletas, uma nova simetria. E com a saudade pousada no regaço, tal como ela, os meninos reinventaram a beleza do sorriso que morava dentro de um abraço.
O pai Fabião, dono de um enorme coração, deu novos rumos aos desafios da sua lição e passou a ensinar, com outras formas de contar, a sua geometria de encantar.
A mãe Mimosa, pequena e graciosa, antigos traços redescobriu. Com outros lápis de carvão os coloriu. Assim registava as sombras da doçura dos corações que mais amava.
E a vida passou a ser um novo desafio, ora lenta ora rápida, como as águas que correm pelas sinuosas margens de um rio.
Foi nesses dias de inusitadas tormentas que a pequenina estrela aprendeu a mais rara e valiosa lição da vida dela.
Se nas dores do caminho remar sempre de mãos dadas com a mãe Mimosa e o pai Fabião, são precisas apenas duas notas musicais para que o sol se vire do avesso e, bem aconchegadinho, vá morar lá dentro do peito, nesse cantinho com aroma de buganvília e chá de tília, que é o sítio mais lindo desta família.
Com estas notas tocadas ao som da cor do amor, o Fa mais Mi será sempre igual a Lia.
É este o segredo da Música do Coração capaz de tornar o mais rigoroso inverno num suave e eterno verão.
inspirado nos momentos do Co(nto) da Vi(da) D(e) uma família feliz…
MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...
Todos o conheciam, o “Quim”.
Pelos dias, meses e anos da sinuosa caminhada desbravada, todos o conheciam, o “Quim”. Sorriso fácil, preso nas gargalhadas sonoras que brincavam com o velho cigarro ao canto da boca, numa melodia de voz executada em andamento lento. Olhinhos cintilantes em busca das miudezas do coração que tanta falta fazem aos afetos de um homem. Anedotas arrastadas pela noite fora com os compadres do coração. Picardia aqui, risotas acolá, cumprimentos com pitada de malícia adocicada a espreitar-lhe na curva dos lábios. Espelhava certezas, o “Quim”. Em cada gesto, um riso sem rancores, sempre com aquela mania linda de pôr a doçura ao serviço do elogio mais espontâneo. Era ele todo assim, o nosso “Quim”.
Todos o conheciam, o “Quim”. Nunca ninguém o vira chorar as mágoas da vida passada. Ou sequer lhe conheciam queixumes, daqueles que se esvaem em sombras de fumo pelo ecoar do tempo, ao quente da lareira, em frias noites de inverno. Nunca ninguém o descobrira a escolher os rios das paisagens, quando o afeto se tornava uma urgência e as palavras alheias eram tão somente meros acessórios, a desmultiplicar a constância da dor vivida em privado.
Mas o recôndito daquele olhar, esse, conseguissem os mais sensíveis vislumbrar, não lhe escondia a memória amarga e só dos enlevos que, no percurso acidentado da vida, ficaram por sentir, e do aroma doce das ternuras mais simples que fazem a grandiosa diferença. Perdido na indigência que aos outros é dado construir e feito de uma matéria infinita que apenas o seu coração abraçava… todos o desconheciam, o “Quim”.
É esta a estranha linguagem que os homens falam no silêncio da alma despida, a mais complicada de ler.
Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se foi descobrindo nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
Autora das imagens de capa das obras:
Cultura sem Fronteiras (coletânea de literatura e artes) - Editora Imagem e Publicações, 2021
Nunca é Tarde (poesia), de Maria Fernanda Moreira - Editora Imagem e Publicações, 2021
Anima Verbi (coletânea solidária prosa/poesia) - Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, 2023
Anunnaki e C.ª Lda.: Os Criadores da Raça Humana, de Rui Fonseca - Farol Lusitano Editora, 2024
Mar Adentro, Mundo Afora (poesia), de Paulo Cesar Paschoalini - Clube de Autores, 2024
Prefaciadora dos romances e das obras poéticas:
Amor Pecador, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021)
Pedaços de Mim, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021)
As Lágrimas da Poesia, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023)
Amar Perdidamente, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023)
Grito de Mulher, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023)
Redatora de sinopse da obra:
Faces do Tempo: Outros Rostos, de Luís Ochoa (Editorial Novembro, 2025)
Autora dos livros de poesia:
Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022)
As Dúvidas da Existência: na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024), em co-autoria com Rui Fonseca
Atualmente é colaboradora regular do:
. Blogue "Memórias... e outras coisas..."-Bragança
|"5l-henrique.blogspot.com/search?q=Por%3A+Paula+Freire|
. Revista Vicejar (Brasil)