nas minhas linhas te confesso...


CRÓNICAS

colaborações 

Revista Vicejar

Memórias... e outras coisas...

freire.cunha@gmail.com

Existo... Logo, penso!

REVISTA VICEJAR

Nunca me pareceu tão conturbado como agora, este mundo em que vivemos. Nunca, como hoje, me deparei com pessoas tão ávidas de encontrar um milagroso GPS que lhes indique o caminho para o equilíbrio emocional que anseiam recuperar. Desorientadas pelas estradas da vida onde, como nómadas, foram montando tenda aqui e ali num processo de sobrevivência, muito mais interior do que exterior. Perdidas como náufragos, à espera que uma qualquer luz ao fundo do túnel lhes venha sussurrar ao ouvido que são tudo menos a escuridão que reside dentro delas.


E creio que essa aventura começa a ter consequências desastrosas. A um náufrago, qualquer tosco pedaço de madeira lhe parece tábua de salvação. E por aí andam à deriva muitos toscos pedaços de madeira com fétido cheiro e sentido de oportunismo, a luzir esperanças falsas e descabidas.


A consciência e conceção do todo que nos rodeia e afeta, é o resultado de uma aprendizagem tanto intelectual como emocional. O desejável seria que qualquer alteração fosse sempre no sentido da expansão e não da limitação. Na história evolutiva do ser humano, razão e emoção têm vindo a caminhar de mãos juntas e seria benéfico, inclusive essencial para todos, que assim continuasse a ser.


Mas em anos recentes tem vindo a instalar-se um estranho modelo de transformação e reforma da psique, que parece deixar uma elevada quantidade de gente em alucinado estado de embriaguez mental. Dele a derivar uma sui generis fuga à realidade e exacerbada empolação do ego. Tornou-se moda deixar de pensar. A entrada apetecível que consta no cardápio miraculoso do dia a dia, dá-se pelo nome de “Sentires”.


Assim me respondeu com ligeira prontidão certa pessoa, há uns tempos atrás, quando a indaguei sobre o que pensava em relação a determinada questão, que ela não pensava nada, ela sentia… Eu, por minha vez, senti que começava a pensar que a dita pessoa ou considerava possuir certo défice cognitivo (o que não acreditei muito ser o caso) ou padecia de proeminente nível de ignorância. E neste campo, é preciso ter algum cuidado porque a ignorância (não a que é fruto da falta de conhecimento porque não se teve oportunidade de ir mais além, mas sim aquela que é exibida orgulhosamente alto e bom som por aqueles que, ignorantemente, a confundem com caridosa humildade), essa ignorância, como dizia, é como o bocejo. Contagia.


O pensamento revela-se como uma das competências mais importantes para o ser humano avançar. Uma indispensável ferramenta de evolução. Importa reconhecer que nos movemos através do nosso pensamento e com ele aprendemos a contemplar, questionar, buscar respostas e a tomar decisões na busca de uma direção.


Descartes tinha a certeza de que a única certeza absoluta que temos é a da nossa existência, quando nos legou o seu “penso, logo existo”. Pois diria eu que se existimos, temos a obrigação de pensar. Ainda que pensar exija esforço, disponibilidade, tempo e até algum sacrifício. Afinal, obriga-nos a sermos responsáveis por quem somos e pelo que andamos por aí a fazer, escondidos dos outros e de nós mesmos, por baixo de ilusórios sentires que queremos acreditar nos tornam iluminados e iluminam os nossos trôpegos caminhos.


Procuremos estar atentos: num espaço repleto de corações sequiosos de alimento para a alma, qualquer parca e desnutrida comida enlatada e pronta a servir, toma o gosto de iguaria.


É, portanto, urgente pensar.


A capacidade de pensar, de questionar, refletir e concluir, é fundamental para a formação de opiniões próprias válidas. E é o pensamento que nos permite ajuizar sobre os nossos sentimentos e emoções. Não o contrário. Como tal, pensar permite-nos construir o caminho para o desenvolvimento da necessária inteligência emocional, da qual os homens e a nossa sociedade parecem andar cada vez mais vazios. Principalmente aqueles que vivem na certeza absoluta e inquestionável de possuir certificado na matéria.


Não me julgue, pois, o leitor uma negacionista das emoções. Muito pelo contrário. Admiro e aplaudo essa nobre capacidade de ser capaz de sentir. Essa sensibilidade para desabrochar como flor de lótus no meio do lodo, que tanta falta sempre tem feito à humanidade.


Mas procuremos não colocar a carroça à frente dos bois. Sentimos porque existimos, mas percebemos que existimos porque (nos) pensamos e com essa capacidade de pensar nos descobrimos como seres únicos, com características, competências e limitações próprias. Só dessa forma, disponíveis para refletir sobre a compreensão de nós mesmos e do mundo à nossa volta, efetivamente crescemos e evoluímos.


Antes de conseguir voar, tem que se aprender a caminhar sobre terra firme e é o pensamento que nos permite consegui-lo. Só depois estaremos à altura de alçar voo por mares mais profundos.


Em jeito de conclusão, e salvaguardando o pequeno animal que de nada tem culpa, não sejamos como galinhas, com as nossas despropositadas ânsias de mostrar ao mundo grandiosos diplomas de vida. Saibamos (re)aprender a pensar para  sentir e viver com sabedoria.


Heróis perfeitos

REVISTA VICEJAR


"Só as emoções fazem de nós heróis de carne e osso, 

em todas as suas dimensões."

- João Morgado, 'Diário dos Imperfeitos' -


O cenário era desolador. O dia a nascer, caiado de nevoeiro e cinza negra, após uma noite de luta aberta contra o lume das chamas que lavraram a terra e o céu e abafaram as vozes dos homens. O silêncio, magistral. Só o crepitar fumegante onde antes havia som, luz, toque.

Sentados lado a lado, conseguia escutar-lhe a respiração a cavar-lhe os segredos acordados sobre o peito.

Largos minutos depois, falou. Mãos a deslizarem-lhe sobre o rosto enrugado. O olhar a morrer-lhe lentamente na penumbra do cansaço. O mundo inteiro a gritar-lhe dentro da alma.

Escolhera a que, segundo o coração um dia lhe segredara, acreditava ser uma das profissões mais nobres do mundo.

- Pergunto-me se terá valido a pena... – Voz cadenciada, como quem saboreia uma lentidão amarga – Quando era miúdo, sabia que o meu futuro seria ter a maior missão que um homem pode ambicionar: salvar vidas. Sabe, sempre achei que não se tratava apenas de viver a aventura, mas sim viver aquilo que realmente nós somos. E eu queria ser um herói.

- E não é? – Questionei.

Sorriu-me. Ou seria um esgar de revolta... Pensei depois.

- Os heróis são perfeitos. Hoje... Hoje, eu apenas conto todos os fracassos que alcancei. – Sussurrou, a soluçar a dor contida na garganta – A vida de quantos vi partir? Quantos me ficaram nas mãos? Quantos matei com um coração que deixou de sentir?... Depois de tantos anos, percebo que preciso de sonhos para poder viver. A realidade mata.

Os heróis são perfeitos...

Nessa manhã, foram estas as palavras que me tocaram.

Há pessoas que nunca tiveram que encarar a morte nos olhos. Nascem, vivem e, num repente, o silêncio adormece-as sem que nem disso se apercebam. Outras, vislumbram-na dia a dia como se ela fosse uma carruagem da vida em câmara lenta, cujo fim será sempre cedo demais. Ele era um desses heróis. Um herói que decidira abraçar uma missão sem ponto final.

Os heróis são perfeitos...

Será? Ou será que, tantas vezes, somos tão somente heróis sem poderes? Ter uma missão talvez seja a missão de todos nós. Mas, se calhar, nem sempre estaremos certos dos objetivos dessa missão. E, porventura, será por isso que o fracasso nos dói mais.

Aquele homem acreditara sempre que a sua missão era salvar vidas. Assim, salvar de uma forma perfeita, exemplar. Contar-me-ia ele depois como recordava tantas vezes, com a agonia a apertar-lhe o peito, aquela mãe que lhe morrera nas mãos, enquanto tentava salvar-lhe a vida. A vida dela, naquele momento toda sua, a esvair-se-lhe por entre os dedos, sem que ele nada conseguisse fazer.

Mas acredito que, nesse tempo, nem o filho que lhe tirara do ventre o fizera perceber o verdadeiro objetivo da sua missão. Quisera ser perfeito e não entendera que conseguira cumprir a sua missão de salvar vidas. Quisera ser perfeito e não compreendera o objetivo dessa missão. Desde que aquela mãe em paragem cardiorrespiratória, entrara dentro da ambulância e para ela voltara todas as suas forças, o objetivo da sua missão fora salvar-lhe a vida que tinha dentro dela. Quisera ser perfeito e não conseguira perceber que a vida acontece quando se aceita um fracasso onde coube uma grande vitória. E, ainda que a dor da realidade nos mate por dentro, é necessário seguir em frente, cientes de que muitos objetivos cumpridos compõem uma grande missão. Porque assim é a vida e não existem heróis perfeitos.

Haverá, sim, heróis sem poderes. Heróis que se desmancham por dentro e por fora para salvar vidas que não são suas. E que, quando fracassam, se permitem seguir caminho. Porque, por vezes, é apenas o fracasso que nos concede a conquista de outras vitórias.

- Depois de tantos anos percebo, por fim, que afinal preciso dos meus fracassos para poder viver.

Não mais nos cruzamos. Mas desconfio que depois desse dia, o coração lhe voltou a sonhar...


Ser Mulher

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Março, mês de Mulher-Primavera

Mimosa flor dos canteiros do mundo

Maravilhosa criação de jardineiro minucioso.

Maviosa é a doçura da Mulher-Menina

Meiguice inocente

Magia das mãos e do olhar que toca a alma.

Majestosa presença que encanta e seduz

Memória sem tempo, será sempre, 

ao doar-se Mulher-Beleza.

Maternal o suspiro que carrega no peito

Memorável nas marcas que acolhe, 

dos filhos concebidos na dor:

Mulher-Mãe.

Merecedora de mérito nas mudanças que ousa

Mestre nos modestos milagres que alcança

Maior é a coragem que beija a Mulher-Madura.

Luminoso o sentir e o saber

do nome que melhor a define: Mulher.

Apenas Mulher.

.

Sem pedir perdão à vontade de sonhar, seguimos.

Muito mais do que caule ou o sedento virar de uma página incerta, somos este estado de semente pura em permanente amanhecer.

Não queremos apenas o que é belo. Bebemos o que tem vida e lavamos as passagens do que foi nada.

Só as águas brancas dos dias nos completam e nos acordam os olhos com o desfolhar pacífico do céu. E é nelas que inventamos as folhas peregrinas, onde desenhamos a humanidade perfeita de Ser Mulher. Essa alvura que nos toca em chãos de fogo e nos abraça o olhar, quando nos bastam os silêncios de uma flor para nos confirmar a certeza de que, desprendidas dos dias, seremos sempre uma promessa de eternidade.

 

A única sílaba da vida

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Para ti, que nunca alcançaste o soberbo olhar da mais profunda e única sílaba da vida, digo-te que aprendas. Porque vale a pena e serás, talvez, mais feliz. Que um mundo de poesia é apenas isto.

Fazer dos gestos uma paixão com ardor, fazer da arte que em nós vive, o sentimento maior.


No íntimo, e ainda à flor da pele, a certeza dos caminhos que trilhamos sem a mentira de mostrar alegrias em todos os instantes e horas. De não querer nada em grande, nem de mil fingimentos para anestesiar os vazios da solidão e do que vem. Mas morar em dias simples e leves e cheios daquilo que nos faz tão bem.


Ter em si a diferença especial de quem nos traz ao colo e nos mostra o brilho da luz, com o carinho genuíno que seduz.


Um mundo de poesia é sempre cá dentro. No embalo do coração e do silêncio, onde pertence a visão mais clara do muito que tão poucos vêem.


Abrir a janela do peito e permitir a respiração que nos torna capazes de dizer não à palavra oca e ao sentimento vão. E entre as escolhas de um amor tão raro, o nosso, aprender a conjugar o verbo “doar-se” por inteiro e sem pressa, aos braços de quem parte e de quem nos regressa.


O eterno espaço que nos habita em abraços demorados, as manhãs e o anoitecer que são o chão da nossa estória. As voltas certas das palavras que o tempo cantou e não apagou da memória.


Esta é a mais profunda e única sílaba da vida. Compreende-a.

Que um mundo de poesia é a nossa sagrada paisagem interior, com tudo o que nos vale a pena. Que este mundo, só verdadeiramente o entende e sente… aquele que não tem a alma pequena.


Escreve-me uma carta...

REVISTA VICEJAR

Escreve-me uma carta, pediste-me. Escreve-me uma carta...

E eu escrevo. Com o toque da pele sobre a textura delicada do papel, escrevo-te uma carta. Escrevo-te uma carta com as palavras que não saberia pronunciar.

Poderia ser a primeira de muitas cartas.

Mas hoje, sabes, já não se escrevem cartas de amor, meu amor. Perdeu-se a magia única da surpresa do sorriso, o encontro das letras descobertas dedo a dedo, despidas linha a linha com a suavidade de muitas pétalas que caem aos pés nus de quem se ama.

As cartas tinham mãos que enlaçavam. Tinham corpo que se fazia presente sobre a distância das emoções ansiosas de chegar. As cartas eram os nossos olhos no coração do outro.

Traziam consigo a alegria de todas as esperas. Uma forma tão própria de abrir portas e janelas no interrompido destino do tempo. Um modo tão único de prever a voz que nos permanecia nas memórias mais doces. Um modo tão especial de não apenas tocar, mas de nos afundar em mãos imaginadas, em lábios silenciosos.

Escreve-me uma carta, pediste-me.

Permite-me, então, que o teu olhar se encerre dentro de mim e deixa-me dançar ao compasso do pensamento que cumpre as letras de toda a nossa intimidade. E nele, oferecer-te a soma de tudo o que te sinto.

Braço dado com a imaginação do teu suspirado abraço, como poética confidência, te confesso que o perfume da nossa carta ganhou forma no sentir do que, um dia, me sussurraste em surdina, enquanto elogiavas a minha forma sincera de sorrir. Um sorriso largo, livre, vivo. É assim que gosto de te ver, disseste.

Como gostas de me ver desprevenida debaixo do teu olhar atento. Cabelos desalinhados, alça à vista sob uma manga desavergonhada descida sobre o ombro. Um retorcer pueril de lábios que não adivinham os teus olhos de gato.

Como gostas de me ver no dedilhar dos poemas que duvidas que te escrevo.

Como gostas de me ver nas sombras e luzes das fotografias que afirmas não gostares de ver, só porque não foram pensadas apenas para ti.

Como gostas de me (escre)ver num umbral de páginas brancas onde um tinteiro de alquimia te serve de inspiração.

Foi quando te entendi a simplicidade que seduz. Foi apenas quando te entendi nos pormenores escondidos do que te comove.

Talvez agora descubra porque me amas e eu nem saiba.

Porque há amores assim, sem sílabas, amores que não sabem dizer.

Às vezes, seriam precisas cartas de amor, como esta, que me pediste. Cartas verdadeiras de amor, para (nos) aprendermos a escutar.


Nos silêncios moram as palavras

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Há diálogos que se fazem sempre no lugar de dentro. O lado mais fundo que o amor desconhece, quando vive apenas com o sabor vazio das agonias e do sol que nunca despertou.

E, no enanto, grita como se fosse gente! Rio-me.


E dizem que sou louca porque me rio da força que lhes morre todos os dias e não sabem.


Abraçam mágoas e desalentos nas sombras frias do que não são. Passam distraídos, a cantar enganos, pelas rochas e pelo chão do tempo enquanto gozam o suor que nunca lhes caiu do rosto.


Não entendem os loucos de si. Aqueles que espreitam os segredos da terra com o cuidado de um pólen macio. E nele se deleitam, invisíveis, porque não precisam de ser vistos para existirem nas cordas musicais da esfera viva.


São poucos e tímidos os tontos lúcidos! Uma espécie em vias de extinção, creio. Acusados de matar palavras ocas e singelezas impostoras.


Mas desse leito entorpecido continuo a preferir as distâncias que nunca se fazem tarde.


É assim, em mim, que me adormeço em liberdade.


Aos Maiores e Melhores da minha vida...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Há, nos versos com que desenho as páginas do meu livro, tanta coisa escrita que gosto de olhar com coração de criança. Aquele com que se aprende a ler o verdadeiro alfabeto da amizade e do amor. O meu livro de bonitas lembranças e esperançados sonhos, onde o menos bom não deixou de existir, mas aprendo a deixar riscado. Que fique somente a lição que hoje me salva. E todos aqueles de quem gosto. Porque onde está o meu coração, aí mora o meu tesouro.

Gosto de ti…

Gosto de ti, que me entraste pelo espírito dentro com a tua positiva loucura e me fazes refletir, livre, um momento, em tantos momentos, e nos fizeste descobrir irmãos num abraço fraternal. Tu, que me fizeste saber, com paciência e carinho, que o fundamental é o diálogo de alma para alma, mesmo que, por vezes, nele habite silêncio.

E de ti que, quando caem as primeiras chuvas e tudo adivinha inverno, me embalas o coração triste e me garantes que as sombras não choram eternas e a harmonia do peito será em breve.

E de ti, que me inspiras o sentimento humilde dos instantes, de ti que tens o aroma quente da fogueira e da chama que aquece, que me aconchegas entre as duas mãos por inteiro. De ti, que tens cheiro a lar e me fazes sentir família e casa. E aumentas um momento de saudade, apenas pelo carinho que ofereces.

E de ti, que me ensinas que Deus é um ser muito simples que nunca precisamos de explicar. Porque é ar, é água, é terra e fogo. E me fazes saber que ele é mão que me sustenta na poeira e na alegria de todas as horas que também me esqueço de viver.

E de ti, que és essa força extraordinária e quase inabalável, que confia sem lamento e se entrega ao cumprimento da vida, por vezes, a ignorar(-te) quem carrega a morte nos braços.

E de ti, com a tua sensível genuinidade a que não seria capaz de ficar indiferente. De ti, que tens a espessura do mar nos lábios e o hálito fresco das águas, de ti que me repete o pensamento e me sabe ler a alma na sua total nudez, com a distância dos olhos.

E de ti, que és o caminho da ponderação e a cascata silenciosa onde me deixo escutar para, depois do descanso, encontrar os braços da coragem e regressar ao porto seguro de onde, tenho a fiel certeza, nunca quererei partir. 

E de ti, minha fonte de inspiração, que tens a vontade escrita no rosto, de ser ainda muito além e lutas todos os dias para abrir as portas que se fecham, na medida exata da imensidão que transportas no regaço.

E de ti, voz que chora e grita no canto da alma, mas sempre flor a brotar, à espera que a esperança se erga mais uma e outra vez. Em ti, sei que sou perfume e pétala nunca esquecida.

E de ti. Sim, também (muito) de ti, que tropeças nas histórias que tens dentro do corpo cansado e não tens coragem de me contar. Mas que não deixa de me iluminar com uma palavra e mais nada, ou com o silêncio e mais nada.

Gosto de ti, e de ti, e de ti.

Gosto de vós porque me completam, porque são tanto do que em mim posso encontrar. Vós, que me fazem perceber que o universo pode ser, assim, tão pequenino num sentido deslumbramento, quando o muito é aquele tão pouco de que apenas preciso para seguir a viagem com a melhor bagagem. Com um sorriso que basta. Um abraço que chega. E me deixa ter nas mãos, simplesmente, o mundo todo.

E o que eu gosto de ti, hoje, é essencialmente esse abraço apertado que se torna laço a cada ano que passa. E me faz perceber que a vida é-nos, essencialmente, a vida dos outros em nós e, a amizade, a melhor ternura iluminada por outra claridade.

Hoje, falo-vos baixinho entre as lágrimas de chuva que escuto cá fora. E digo-vos que gosto de vós. Que são Únicos e que, perto de mim, nesse fio invisível que enlaça e no reflexo do que me encanta, fazem crescer o sentido mais meigo e profundo do que entendo ser a verdadeira religião.

E agradeço-vos. Porque é o amor que fica.

É o amor que fica sempre na memória… e no coração.


(con)Tacto

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Foi há muitas estações atrás que o meu caminho se cruzou com o de um amigo que me ficou, para sempre, no coração e no meu mundo.


Coincidentemente, foi também por alturas desse mesmo encontro que perdi o meu único avô, com quem partilhei um percurso inteiro, até ao instante da sua morte, com a longa idade de noventa e seis anos. Uma relação nem sempre feliz, nem sempre justa, com umas quantas mágoas e amarguras à mistura, como é devido a todas as ligações daqueles que verdadeiramente se amam, mas nem sempre o conseguem expressar com a vontade desejada.


No entanto, recordo com nostalgia que, a poucas horas da sua partida, me foi oferecido um privilégio que, poucas vezes, a vida tem a gentileza de nos conceder. Enquanto deitado no leito do hospital, foi possível aproximar-me dele, olhar o seu rosto débil e cansado pousado, tranquilamente, na almofada. E, nesse momento, quase involuntariamente, a minha mão tocou, gentilmente, nos seus traços e expressões tão cheias de fragilidade. Senti-o estremecer nesse meu toque de despedida quando virou os olhos, silenciosos, na minha direção. Percebi, então, no preciso momento em que ele entregava o seu corpo à morte e eu, o meu espírito às mãos do perdão, que o toque é uma forma de amor que cura muitas feridas e permite que a paz nos invada, silenciosa e docemente, como um lenitivo e um ato de gratidão.


Há algumas semanas atrás, e após todo esse longe em que o tal meu amigo veio ao meu encontro, na mesma altura em que o meu avô partia, tive oportunidade de ouvir a sua voz ao telefone. Uma voz que, perdida no tempo, quase não reconheci. A verdade é que, ao longo de quase duas décadas, todo o nosso contacto se resumira a uma distância de meio metro, separados pela tela de um computador. Notícias e sentimentos partilhados num universo invisível, só assumido nas letras trocadas através de um teclado.


É verdade que o som da sua voz, volvidos tantos anos, deixou o rasto de uma comoção única, que me fez recordar, subitamente, a citação de Clarisse Lispector, “e receber o telefonema de um amigo, e a comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que prazer de os outros existirem e de a gente se encontrar nos outros.”


Sim, creio que ouvir a voz de um amigo saudoso respirar no nosso interior, é como um florir de primavera no peito da saudade. Reencontramo-nos numa estranha, mas deliciosa música de afeição e bem-querer, que nos perdura infinitamente.


Mas o certo, porém, é que os afetos têm e precisam também, muito, de uma profundidade sensitiva.


E esta é a mensagem que, na memória, te quero deixar ficar hoje. A ti, meu amigo. E a todos os que devem perceber a urgência dos seus gestos simples, mas maiores, na solidão daquele que é o mais íntimo firmamento de cada ser humano.


Mostrar-te que, apesar da tua voz soar plena e imensa aos meus ouvidos, uns centímetros de separação não chegam ainda ao lá atrás onde, um dia, te descobri em sorrisos e alegrias. Emoções que hoje, já te não vislumbro, sejam essas sombras fruto de acanhamento, dúvidas, incertezas ou a necessidade de te recolheres nos teus silêncios.


Meu amigo, que nunca o teu sentir perca o olhar da sensibilidade. Que ele possa sempre alcançar a importância de um abraço que, quando toca com calor a mão do outro, lhe oferece uma parte de ti mesmo e de tudo aquilo que de melhor és.


Na dimensão de cada toque, que nos faz estremecer por dentro, o afeto perde a transparência e ganha todas as cores que nos iluminam com o rosto da ternura, no encontro de sintonia perfeito. E faz-nos crescer até ao infinito da nossa humanidade.


Habita um dom nas nossas mãos!


Porque quem nos toca nos deseja com ele, porque o toque é um abrigo na nossa fragilidade, é tão bom, é tão essencial quando a pele se nos descobre a dizer as palavras que o coração quer falar, “estou aqui para ti; escuta-me: quero-te bem!” Ou ainda, “parte em paz”.


Afinal, é pelo contacto do tacto que sentimos, pela primeira vez em nós, o pulsar da vida…


O canto das sereias: 'diz-me de quem fujo'

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Alfred Adler, o conhecido psicólogo austríaco, referia que as únicas pessoas normais são aquelas que não conhecemos bem. Porque a verdade é, muitas vezes, uma terrível arma de agressão…


A loucura causou-nos sempre enorme pavor. Parece-nos destruidora da nossa identidade. Por conseguinte, torna-se-nos urgente justificar essa loucura da qual sabemos não conseguir fugir, com a reinvenção de uma total e completa normalidade (e tantas vezes, paranormalidade) que em nós permaneça porto seguro. Porque será sempre mais fácil apontar a loucura dos outros do que ter coragem suficiente para ir ao encontro da nossa.


Recordo parte da letra de uma canção dos Fréro Delavega, extinto duo musical francófono: “Quando vêm as tristezas/ Os maus tempos/ Os medos tomam-me de novo/ E à distância eu ouço/ O canto das sereias” (“Quand viennent les peines/ Les mauvais temps/ Les peurs me reprennent/ Et au loin j'entends/ Le chant des sirènes”).


As sereias. A ilusão da beleza e do canto que enfeitiça os homens até que se percam no fundo… de si próprios. Diria eu que é tarefa de valentia para muito poucos, demorarmo-nos pelos espaços do tempo num toque imprevisto com o reflexo das trevas que nos compõem. Há sempre, escondidas, figuras com quem preferimos não nos encontrar. Lugares de escuridão súbita onde habitam os fantasmas que nos conhecem por dentro.


Viver numa realidade de luz construída por nós mesmos, à nossa medida, que se nos encaixa como um perfume perfeito, é inebriante. É bonito. Faz-nos socialmente elegantes e poderosos. E exigirá com toda a certeza um dispêndio de energias muito inferior, quando comparado com o esforço hercúleo necessário para ficar cara a cara com os demónios que vemos com um rosto igualzinho ao nosso, quando ao espelho nos descobrimos pelo avesso desses sentidos que julgamos como sendo os mais nobres e corretos.


Parece que nos basta o alarido dos sentimentos vazios com que tantas vezes nos vamos vestindo. E nele resistimos de olhos fechados. Até quando?


Queremos viver à boleia de uma utópica saúde mental que esconda o nosso verdadeiro ‘eu’ e nos permita fugir do caos interior em que diariamente nos rebolamos quase até à exaustão. Questiono-me se não será esse o caminho exatamente oposto àquele que deveríamos seguir. É que, enquanto nos inventamos nesse mar de distâncias que nos consolam, mais visível me parece que nos vamos afogando nas ondas da vida, como os marinheiros que seguiam o canto das sereias. Paradoxalmente, crentes de nos encontrarmos inseridos, em pleno, nesta realidade que, aos quatro ventos, pregamos como irreal.


Mais um outono avança por nós e enquanto nos afundamos nas areias movediças a virar as folhas para enganar o tempo, será sempre mais suportável rasgar as páginas do nosso próprio livro e acreditar que, passado o inverno, novos tempos surgirão debruçados sobre uma primavera de cor que nos iluda os infortúnios.


Em prol de uma verdadeira saúde mental e de um efetivo sentido de humanidade, para quando terão as sombras hora marcada na nossa agenda demasiado distraída?


Com aroma de ternura...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Às vezes, a vida é assim. Bonita.

Às vezes, a vida traz-nos o sabor dos dias leves em forma de gente. Gente que abraça, gente que enlaça, gente que acarinha.

Às vezes, a vida é um sorriso em forma de gente. Um sorriso simples, um sorriso profundo, um sorriso genuíno.

Entra-nos no coração em tempo de chuva e ali faz morada. Só para nos oferecer a luz que precisamos, só para nos fazer acreditar que mais um passo vale sempre a pena. Que desistir nunca é opção.

Só para nos fazer acreditar que há outros sorrisos à nossa espera. E que o nosso próprio sorriso é a janela mais linda aberta para o mundo. Uma janela de esperança que alarga horizontes e nos faz tocar, mesmo sem o sabermos, a alma de quem mais (nos) precisa. E nos traz sempre de volta o que nunca deixamos de merecer.

Às vezes, a vida traz-nos gente de verdade que dá cor ao caminho e nos oferece um porquê a todas as perguntas que julgamos não terem resposta.

Às vezes, a vida é assim. Bonita. Com aqueles sorrisos, em forma de gente, que transformam o nosso peito numa melodia que encanta e acalma. Que nos mostra que, ao nosso lado, há gente com aroma de ternura.


Aqueles que são Nossos...

REVISTA VICEJAR

Aqueles que são Nossos...

São aqueles a quem agradecemos por sermos nós.


São o Amor que nunca se perde com o tempo.


A história que nos abraça devagarinho num eterno “preciso de ti”.


Os beijos que nos sabem a luz, de braço dado com o lado esquerdo do nosso peito. E nos contagiam a vontade de sorrir, apenas pelo modo genuíno com que são capazes de nos olhar.


Os que se procuram em nós e, às vezes sem querer, nos fazem morrer por amor.


Todos os abraços onde descansamos as lágrimas e acordamos o riso.


O trabalho mais gratificante de uma vida inteira onde o tempo investido não compensa em dinheiro, mas nos enche a casa e os bolsos de outro infinito valor.


Muitos dias, o equilíbrio na balança entre sensibilidade e bom senso. Por isso, todos os ‘eus’ que não temos medo de emprestar e, mesmo que nos sejam devolvidos rasgados, reaprendemos juntos a costurar sem remendos, como uma grande colcha (im)perfeita, feita de pequeninos afetos.


São o sentido certo para o tanto que nos faz falta.

O sempre tudo nos dias onde cabemos menos.


Aqueles com quem nos sentimos imensos na nossa pequenez perdida de um “preciso do teu colo”. O lugar-sol nos caminhos tortos da vida e o abraço único que nos pode levar ao céu.


São os nossos olhos cheios de sonhos na esperança de acontecerem. O orgulho e a vaidade das nossas vitórias.


São os que nos obrigam à coragem de lançar voo sobre as tempestades. E a rede que nos pesca, quando a fragilidade das asas não suporta os maiores ventos e marés.


Por isso, são os que nos ensinam o direito às derrotas e ainda a certeza de que, no comboio da vida, nunca nos deixam sós na próxima estação.


Aqueles que são Nossos... são a pele que trazemos em nós e o corpo que nos veste a alma.


"Um brinde a ti, Paloma!"

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Todos os anos, no dia do aniversário dela, a lembrança avivava-lhe a memória…


Não era apenas nesse dia. Recordava-se dela sempre, sem paragem no tempo. Um feito que antes nunca acreditaria ser possível. Mas existem pessoas assim. Pessoas que em nós se encerram como madrugadas anunciadas que não mais voltam a adormecer. Um doce lume que nos incendeia e, todavia, nos dá vida.


Ela era esse anjo que, ironicamente, o queimava por dentro. Inesperada e teimosamente, no perfume da paz que lhe trazia, obrigava-o a um encontro no espelho com todos os seus demónios. Tornara-se-lhe difícil compreender a ambivalência deste sentimento do qual nunca mais se livrara. Um misto de punição e deleite, talvez.


Por isso, era só nesse dia, quem sabe como se oferecesse também um presente a si mesmo, que se permitia deixá-la pousar-se-lhe, livre, sobre as linhas do pensamento.


Poucos sabiam, como ela, do coração de menino que lhe habitava o peito, das ânsias e sombras adormecidas nas paredes interiores do seu mundo. Mas todos lhe conheciam o génio forte e desbravado, as manias imprevistas que o deixavam ausente dos outros em horas mortas. Como tal, não lhe estranhavam a ausência, todos os anos, nesse dia.


Pela noite dentro, portas trancadas ao mundo, a solidão do escuro na sala e na alma. Apenas uma garrafa de vinho solta na mão e o brilho da lua por companhia. Os passos, conhecia-os de memória. Aproximava-se da janela como se tivesse um receio tolo de que, em algum lugar, ela lhe adivinhasse as emoções. Prendia o olhar no infinito e, nessa intimidade cúmplice que partilhava somente consigo, pedia emprestada aos mistérios da noite, uma poesia para lhe oferecer. Sabia que essa seria sempre a prenda mais linda, e única possível, que conseguiria alguma vez conceder-lhe.


Uma lágrima, lenta e mansa, teimava nas curvas do mesmo caminho. Tão pobre se sentira quando, incrédulo, percebera que ela acreditara mais nele do que ele próprio alguma vez conseguira. Pois tão mágicas lhe soaram aos ouvidos, as palavras com que ela o abençoara: “se um dia entrasses nos meus olhos, encontrarias a beleza que vejo dentro dos teus”.


Não precisava de mais vozes, bastava-lhe apenas a dela. E a sua, a contar-lhe que a vida é o produto de todas as escolhas. E o medo, um dia, decidira por ele.


Preso ao luar, erguia o copo no ar. Um sorriso salgado nos lábios.


- Um brinde a ti, Paloma!...


No seu coração de criança, gostava de acreditar que, num longe distante, o vulto da mulher que passou, feliz, pelos seus sonhos sem lhe dizer adeus, escutaria esta oração.


Quem sabe, talvez ela escute. É que o maior perdão… é feito de silêncio.


O Último Adeus... Para Sempre

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Não me recordo do dia exato. Sei que era manhã. Uma manhã que anunciava o sabor quente de dias de sol. E junto ao mar, a brisa tinha aquela doçura da primeira leveza de uma estação sempre bem-vinda, com esse profundo cheiro a algas e sal a invadir-nos por dentro. Há sensações que o tempo não apaga. E há imagens que a memória não esquece nos espaços interiores que nos habitam. Como aquela. A ambulância a chegar silenciosa, tão silenciosa como todos os olhares que para ela se voltaram inquiridores. Ambulância e silêncios, um paradoxo que o pensamento tem dificuldade em emoldurar.


Seria porque o instante fosse diferente, seria porque o cenário tinha uma magia capaz de contradizer as hipóteses mais óbvias, a verdade é que, apesar das certezas sobressaltadas dos presentes, o momento não parou nos gestos de quem passava. A vida urgia urgências por cumprir.


E ali, mesmo à beirinha do muro caiado de branco, naquela manhã de ameno sol, sobre a voz de um azul e verde-água vestidos de infinito, o jovem de corpo débil e rosto frágil, deitado numa maca e amparado pelos braços solidários de um bombeiro, levantou os olhos desmaiados para o horizonte à sua frente. Não sorriu. Não o conseguiria. Apenas… suspirou longamente.


Gostaria de acreditar, para alívio da minha consciência adormecida sobre um coração tantas vezes ingrato, que quase lhe senti o respirar das emoções que na alma se lhe despertaram. Emoções tão dele. Revelações tardias de obrigados que ficariam por dizer à vida. Ou talvez não… Talvez agradecimentos de despedidas e gestos não deixados por cumprir.


É nestes momentos, quando o destino nos obriga a presenciar o inesperado lado humano da humilde redenção, que deveríamos encontrar a oportunidade de compreender os que nos rodeiam, entrar-lhes nas veias, no sentir-lhes do mundo, para que todas as inseguranças que nos compõem pudessem servir de lição ao ego que julgamos, tantas vezes, engrandecer-nos.


E o que sentiria a mulher ao lado daquele jovem? A que, num gesto de amor, lhe segurava a mão. Mãe, esposa, irmã, amiga… Creio que o coração de qualquer uma delas certamente ditar-lhe-ia a mesma dor e, simultaneamente, o mesmo sorriso triste que lhe visitava o olhar.


E depois do adeus, a ambulância partiu novamente adormecida no mesmo silêncio com que chegara. O mundo, a vida… continuaram.


Não gosto da expressão “último adeus.” Se é um adeus, então é porque será sempre o último. Antes disso, há vida. E da vida só nos despedimos quando dizemos adeus. Adeus, simplesmente. Não haverá outro. Por isso, sempre preferi dizer “até já”. Até já, mesmo quando só volte a ver-te num dia sem tempo. Até já, mesmo que nunca mais. Porque desconheço o futuro. E ainda bem, não gostaria de sabê-lo. Não me pertence enquanto não me acontecer. E a acreditar que existe, dá-me sempre alento para todos os “até já” que me moram na esperança do peito.


Não sei da Fé dos Homens. Acredito que cada um tenha a força da sua. Eu tenho a minha que, nessa manhã de sol, me fez perceber definitivamente a importância do adeus. Continuo a duvidar que possa ser o último porque a vida continuou para mim. Mas a dele, daquele jovem, talvez tenha partido pouco depois.


Amparado pela sua fé. Com o mar dentro dos olhos… Para sempre.


Carpe Diem

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Existem momentos da vida que nos acompanham permanentemente, pelas emoções do instante que despertaram. Parece-nos que os trazemos aconchegados nos cantinhos da memória, só para nos oferecer um abraço de calor quando o tempo frio teima em despir-nos as esperanças.


São momentos que nos fazem recordar o que realmente vale a pena. Temos muitos, silenciosos, dentro de nós, à espera que lhes demos as mãos, de vez em quando. Mas somos crescidos demais para os escutarmos, porque apenas nos sussurram de mansinho ao lado do pensamento. E nós, já sabedores de todas as vidas, porque somos crescidos, perdemos há muito essa sabedoria tão particular de ouvirmos a nossa vida que, curiosamente, parece ser a única que desconhecemos.


Gosto de recordar o espanto da minha infância, como se o mundo se me tivesse revelado por inteiro, num dia de inverno em que a minha amiga Fatinha, levou para a escola a sua caixa de vinte e quatro marcadores coloridos. “Foi o meu tio que me ofereceu!”, disse-me com a sua voz terna, de menina, a rebentar de orgulho e uma certa pontinha de vaidade.


Os meninos da aldeia não tinham, assim, um “rico tio” como a Fatinha. Eu também não tinha. Por isso, com os olhos emocionados, a espreitar pelo canto da caixa de madeira, onde ela acomodara os seus magníficos marcadores coloridos, perguntei-me de imediato se a minha amiga saberia do fantástico tesouro que tinha em sua posse. Eu, que adorava desenhar e pintar, via ali todas as cores que poderiam dar encanto aos meus mais bonitos sonhos artísticos de criança, esculpidos a lápis de carvão numa simples folha branca de papel.


E o sol entrou-me pelo rosto dentro, desdobrado num gigantesco sorriso com sabor a verão, quando ela me garantiu que, sempre que a professora nos mandasse fazer um desenho, partilharia comigo tamanha raridade.


Gosto de recordar com saudade este instante. Um dos muitos que me permitiu à memória aprender lições imprescindíveis sobre o que realmente importa.


E o que importa? Importa esse olhar de criança, esse sentir de criança. Esse descobrir da simplicidade da vida com uma admiração tão imensa, que apenas o silêncio é possível de nascer como resposta capaz de ser proferida. Não vá aquele assombro assustar qualquer adulto que passe por perto. É que os adultos não sabem ler as emoções ditas no silêncio. Porque cresceram, ficaram cegos.


Para as crianças, o relógio do tempo não tem ponteiros. Já os adultos, só conseguem ouvir o som do tiquetaque. Para as crianças, o tempo é despreocupado, tranquilo, tem um compasso próprio. Para os adultos, parece que cada dia é uma réstia de passado, com ansiedade de futuro, num tempo que os atravessa cada vez mais depressa.


Enquanto as crianças constroem as suas estórias de forma poética, sem medo, e com elas voam para um mundo feito de arco-íris ao encontro da Terra do Sempre, são os adultos quem corre em passo acelerado em busca da Terra do Nunca, carregados de histórias que não os deixam sentirem-se em paz com eles mesmos.


As crianças seguem rumo a onde o vento as levar, num constante entusiasmo pela viagem. Os adultos, somente viajam ao ritmo do seu dorido “e tudo o vento levou”…


Já dizia Rubem Alves, entendido em coisas de crianças, que “viver ao ritmo de alegrias e tristezas é ser sábio”, e que “sapio, em latim, quer dizer, eu saboreio.”


O que pensam, tantas vezes, os adultos sobre o que as crianças pensarão sobre as suas vidas? Eu responderia, seguindo o dito popular, que “em terra de cegos, quem tem um olho é rei”. E creio, portanto, que será com elas, as crianças, que mais temos a aprender sobre estes assuntos do coração. Aí, nesse universo descomplicado que é muito menos ‘faz de conta’ do que o nosso, elas são reis e rainhas. E sabem, melhor do que ninguém, que tudo o que é demasiado pequeno para ser descoberto à vista desarmada, é o mais primordial, necessário e absoluto e, exatamente por essa razão, não pode ser escutado senão através da emoção.


A criança rainha que um dia fui ensinou-me mais esta, entre tantas matérias que fui aprendendo. Nos tempos de hoje, agrada-me sentir que o “… meu corpo de adulto pelo tempo foi esculpido, embora me sinta criança, num corpo crescido, com roupas de adulto, mas espírito despido…”, como escreveu o meu amigo Paulo Cesar, que tem cor de poeta na mão e olhar de criança no coração.

 

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara

- José Saramago -


O Escrevinhador de Vidas

REVISTA VICEJAR

Podia ser, amenamente, num banco solitário de um qualquer jardim, ao final da tarde, ou na pastelaria que o recebia para um café e uma conversa melancólica com os seus botões, quando se deslocava, para o trabalho, todas as manhãs, quase aos tropeções por entre a multidão. Podia até ser num breve momento em que o relógio lhe pedia uma pausa no cansaço e ardor do dia, enquanto os braços e as pernas faziam as pazes com o corpo e lhe ditavam que já só lhe faltavam umas poucas horas para a lide terminar.


Era nesses momentos que a mente lhe parava e se punha a escutar o som e a dança feita no palco de tantas vidas.


Vidas tecidas por estórias que os olhos lhe contavam sobre o tempo e os espaços dos que passam dentro e à margem da vida. As estórias dos outros que eram muitas vidas na sua própria vida.


Escutava, atento, os movimentos na pele transparente dos que com ele se cruzavam. E dentro de si, como quem soletra letras invisíveis a que dava forma, lentamente, penteava fio a fio, desenlaçava, compunha, enfeitava mundos e pintava o mundo interior de si mesmo.


Tantas vezes, eram as estórias alheias que vinham ao seu encontro, confidenciavam com ele e nelas se entendia. Davam-lhe a certeza da sua própria existência.


As estórias que podiam ser o seu amigo imaginário nas noites em que, mais assustado, se sentia criança outra vez, mas sem colo para onde correr a agasalhar os medos e desamparos.


Falavam-lhe, ao ouvido, de segredos mal contados, à espreita da revelação perfeita, da metamorfose necessária para se tornarem vivas. E ele pegava no seu caderninho, a quem tratava como velho companheiro, para as fazer voar numa viagem com muitos destinos: a alma que habitava o seu peito; o coração dos seus leitores.


Vidas velozes e vidas de atropelos. Vidas que correm céleres mesmo quando os dias são todos iguais e vidas que se descartam com indiferença, mesmo quando o amor lhes bate à porta todos os dias. Vidas com um horizonte e muitos sentidos e vidas sem sentido, à procura de um horizonte. Vidas de encontros marcados ou adiados, vidas que se completam em olhares cruzados, cheios de vida ou sem vida nenhuma. Vidas de esperanças ou de tristezas acumuladas, como punhados de destroços desencontrados. Vidas de pertença ou vidas sem porto de abrigo, numa terra de ninguém. Vidas que se perdem, vidas que se repetem e vidas que se reescrevem. Vidas que acrescentam e alimentam e vidas com pontos finais. Vidas construídas de pequenos nadas e vidas consumidas em grandes tudo. Vidas de amores imensos, vidas de muitos amores e vidas de longos desamores. Vidas que crescem vestidas de luz e vidas mortas, enfeitadas de sombras.


Poderia parecer estranho aos demais se lhe adivinhassem o olhar quando os olhava, assim, do fundo do seu pensamento. Talvez se sentissem invadidos numa intimidade que gostariam de preservar.


Mas as vidas que nos cabem, não são terreno fértil à privacidade, para quem nos escuta com aquela sabedoria sagaz da qual ele era capaz, sem afronta nem confronto. Uma sabedoria de quem compreende que os silêncios podem dizer mais do que todas as palavras.


Uma sabedoria de quem consegue nunca ser apanhado de surpresa quando lê, discreto e prudente, esse sítio em que, aos bocadinhos, nos desarrumamos sem escolha possível: o lugar dos afetos, o lado principal onde (todos) nos desejamos perceber humanos.


Bhãva

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Um dia, a voz translúcida de um pássaro falou-me da espessura do tempo que guardei no rosto e nos espelhos da pele, onde os instantes tristes me choraram.


Dos amores que perdi, das vitórias que não brindei, das estrelas que arderam na invenção mais pura do que fui e dos sonhos onde nunca morei, por não existirem. Labirintos desconhecidos que tateei no naufrágio de todos os desencantos.  


Mas hoje… Hoje escutei(-me)…


Escutei a eternidade da terra onde a profecia se fez refúgio num sereno vagar deslumbrado.


A paz abraça-me, demorada, como um arroubo de vontades onde estreito a ternura de me querer.


Amanheço no princípio do meu mundo, tão visível como o som de um pensamento inesperado, a tocar os versos mais bonitos do poema em que me descubro.


Hoje, as minhas mãos nas tuas, numa esperança inconfundível com a serenidade a pousar-me no olhar, docemente.


E dizes-me que estou viva em todos os lugares mais próximos do coração, no sentir da saudade onde os poetas desejaram sonhar. Sorrio. Sorrio apenas, singelamente, porque o teu sorriso vive em mim e é-me tudo. Nele, esquecida das sombras, o meu olhar dança entre duas luas de ouro e transparência.


É em ti e no claro majestoso do nosso silêncio que permaneço e me dou à vida. Porque um dia me encontraste.


Porque um dia me encontrei.


As mães que eu conheço...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

As mães que eu conheço são uma forma de poesia escrita pelos dedos da vida.


Trazem nos lábios o aroma das sílabas quentes, que acolhem e agasalham o colo frágil de todos os filhos que não são seus. E nunca se cansam de serem tanta gente dentro delas, porque têm a ternura nas pontas dos dedos e o corpo inteiro a saber a amor.


Em momento algum se espantam por serem sempre muito e, sem receio da queda, levam-se com asas para onde os corações que amam mais precisam. Mesmo que lhes doa a paciência ou lhes aflijam os dias. E, ainda assim, conseguem inventar, do nada, uma mão cheia de mundos.


Sabem ler a alma dos filhos como se fossem profetas do ontem, do hoje e do amanhã. E podem os olhos andarem-lhes desencontrados, mas conhecem-lhes as letras de cor, como poetas que nunca adormecem. Por isso, são como relógios em movimento, sempre a tempo de preverem o próximo instante.


Sorriem ao sol pelos beijos dos filhos que são sempre gigantes, ainda que sejam muito pequeninos, e dançam a vaidade, com o chão na ponta dos pés, de cada vez que os fazem acreditar que eles são tudo isto e serão ainda muito mais.


São lobos capazes de derrotar olhares de maldade, inveja e cobiça, enquanto caminham muito devagar para não despertar o sono tranquilo dos que nunca lhes moram longe do coração.


Choram, para dentro, todos os segredos íntimos das suas mágoas e amam, para fora, como se as dores fossem flores. Entretanto, rezam ao vento que nunca lhes traga a dúvida, o engano e a desilusão de dias infelizes.


Um dia, com a pele já gasta de tanto frio, no rosto se descobrem árvores cada vez mais frondosas, de muitos ramos abraçados com uma só mão. Esqueceram a lembrança do que elas próprias foram, mas leem-se como um antigo álbum de fotografias cheio de memórias.


Dos olhos escondem a palavra adeus que jamais pronunciaram, mesmo no interior dos seus silêncios. A razão porque qualquer último abraço é sempre a promessa de um futuro que sabem que acontecerá.


Assim, soletram a dor no canto escondido do peito e inventam nomes diferentes para o medo, porque nunca aceitam vazios nem conhecem o final de nenhuma página.

As mães que eu conheço, são passos de corpos anónimos que nos cruzam, todos os dias, escritas desse infinito que só um ser tão nobre consegue preencher. 


Gentileza

REVISTA VICEJAR

Gentileza. Coisa bonita e perfeita!

Se a observas, vês flor em forma de ternura. A candura branca no olhar e um cuidado vaporoso com que brinda o céu no rosto dos homens.

Quando a lês, descobres-lhe o interior de um abraço que te aconchega como primavera e te permite florescer, numa urgência de toda inteira ela se doar. Sem demora, sem retorno, como a fala própria dos imortais.

Gentileza conta tudo o que é preciso e que ninguém nos diz. Um raio de sol a acolher estes caminhos de nuvens, onde não nos sentimos humanos. É sorriso que desce, como gota branda de encanto e bem-querer na morada de todos os nossos desertos.

Adormece as armas com que nos levantamos e pede-lhes para escreverem uma nova canção. Uma outra linguagem do coração nos espaços divorciados de um tempo apartado, cujas sombras, fazem crescer pedras nos lugares onde apenas o afeto se faria dom necessário.

Gentileza não nos promete o paraíso, nem tão pouco a vida eterna. Mas conjuga a forma do que somos, numa confiança silenciosa de que somente permanece o que tocamos com a vontade de ser.

E toda a beleza nasce desse ato gentil do corpo, dos gestos e dos olhos, que é claridade a acordar alguns outros céus a viverem em lágrimas.

Ali, ganha sentido como se fosse um beijo, pousado com a doçura dos lábios, sobre a alma de quem se ama. E que nos é devolvido pelas margens da nossa própria luz.

É que o amor, o amor não tem fundo. O amor precisa, sempre, de mais.

Assim possamos prometer-nos as palavras em que acreditamos.

Na perfeição de todos os segundos

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Há uma alegria que dança no meu peito, de rirmos como crianças daquilo que pouco importa, das coisas banais que se escondem dos olhos dos homens.


Dou-te a mão e sou capaz de entender a linguagem pura dos momentos simples, sem o medo, solto por dentro, de já ter crescido todos os instantes a que o tempo voraz me obrigou. E de me sentir abraçada, apenas porque estás.


Sabes-me feliz do tanto que és capaz sem precisares de nada mais senão do coração. É a surpresa de te descobrires nesse poder mágico que te pertence.


Sabes, gosto de ser menina outra vez num qualquer sítio esquecido, para além da estrada que a vida me ensinou.


Gosto do silêncio onde escuto somente os risos do que inventamos tão fácil. Porque é verdade sem mácula.

E cabe-nos na perfeição de todos os segundos onde verdadeiramente nos somos.


Posso agradecer-te?

Para o teu coração num domingo

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Podia dizer-to em qualquer outro dia, mas creio que hoje, domingo, é um bom dia. Porque tem cor de manhã que nos aquece mais um pouco na preguiça vagarosa das horas. E tem o som dos pássaros nas árvores, que começam a preparar os braços vazios para receber o riso morno da primavera. E o céu a esconder-se, envergonhado, por trás das nuvens que procuram o riso de um céu mais azul.


Portanto, talvez hoje, que é domingo, suponho que me ouças mais atento, como os amigos que escutam melhor quando o tempo lhes sobra nos dedos e no olhar.


Hoje, deixa-me sentar ao teu lado e falar ao ouvido dos teus fantasmas que te são presença indispensável e que os outros não veem.


É que quero contar-te um segredo. Um segredo daqueles tão imensos como a própria vida e que, por isso mesmo, não têm nada de secreto. Porque todos o conhecem.


Sabes, não vale a pena fugir dos espelhos que tratas como inúteis e aos quais finges que não ligas no teu cansaço escondido, enquanto escreves nas páginas do teu peito cansado, palavras sobre a esperança de alguém vir tocar-te no coração. O peso do tempo é sombra que sempre virá e retornará, mesmo que dês um pontapé nas vidas que não queres ter. Mesmo que durmas enrolado nas dúvidas do abismo a descoberto nas rugosidades dos anos e da tua pele, como uma fenda na estranheza do que em ti se faz noite.


São as raízes do teu sangue transportadas pelo fios do tempo, ainda que te dispas de cada um dos teus sonhos, ainda que caminhes à maneira de um desesperançado nos silêncios das paredes da casa onde, tantas vezes, te alimentas das lágrimas desse homem que se acredita vivo para nada.


Descobre a urgência de mudares em definitivo o teu mundo, deixares no esquecimento os que te calam a paz que anseias. E entenderes que há desventuras que não são desdita nenhuma, mas apenas o fim possível de todos os destinos do corpo.


Não te demores demasiado nas sombras que te cegam. Não te permitas morrer assim, nesse desejo de não te amares.


Se me deixares, talvez ainda te encontre uma noite de verão para poderes contar às estrelas o pressentir das palavras claras do teu sol.

Afinal, tu sabes, sou capaz de ficar ao teu lado de olhos fechados como me fizeste prometer, para não corromper a imagem que a memória afagou e nela sentires que me permaneces eterno. 

Como um amor perfeito. 


Amo(-te)

REVISTA VICEJAR

Amo.


Amo essa coisa fabulosa que escuto de nós nas páginas do livro que escrevemos juntos. O contorno dos dias que persistem amargos mas que não deixamos tremer porque, com os olhos húmidos de força, empurramo-los contra as paredes dos espaços e fragmentamo-los como cascas secas por cima das raízes que soltam as escuridões.


Amo os instantes espantosos que faltam ao coração do mundo e que, juntos, tornamos ambiciosos. Deles fazemos segundos, vestidos com a essência de um milagre. O que os outros desconhecem por nunca se terem descoberto no mergulho pleno das coisas simples.


Temos dedos que são ternura aconchegante na neve fria que o passado nos deixou.


Por que haveríamos de chorar se todos os abraços que damos aquecem o sangue dessa alma que nos pertence?


Por isso nos rimos, tantas vezes, nos dias de cor que são escuro vazio lá fora.


Amo esta franqueza cúmplice isenta de mágoas onde preferimos deitar-nos, com a proximidade compreensiva de quem já alcançou a lição superior da sabedoria.


E amo ainda o silêncio de uma tarde adormecida quando o fogo não arde no corpo. A sombra do mar a guardar conchas desertas sobre a palma das nossas mãos. Tão surdas de beleza! Mudas daqueles versos a que só o olhar consegue dar voz. Porque também há silêncios assim, ancorados no peito, nus, que nos respiram fundo, que nos levam longe, com os olhos inundados de gritos inconfessados.


Sabemo-nos e não julgamos: cada um tem em si um mundo inviolável e uma casa única feita de muitas páginas, que se arrastam no compasso do tempo.


Compreendemos e não precisamos de desvendar. Afinal, somos felizes agora com tudo o que nos beija os sonhos. 


Partilhamos o caminho descalço sobre os ombros da vida, na rejeição do tanto que não nos tenha sabor. Só para não corromper a definição delicada do que chamamos, hoje, de felicidade.


Sim, meu amor, amo a sedução da valsa que dançamos em uníssono como uma memória viva de um sol antigo que não entendemos.


Talvez o sorriso nos conte, um dia, que são apenas detalhes invisíveis de uma formidável repetição recriada pelo infinito e pela indelével fragrância que perdura além do impossível.


Amo-te.


As coisas bonitas que em ti eu vejo

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

As coisas bonitas que em ti eu vejo

não têm corpo, não têm nome.

São pretérito perfeito do meu presente

na imperfeição do que a tua alma sente.

Como o sopro de vida que não conténs,

a força que te veste o corpo

a luz que se te solta do peito

o curso de um destino que não se detém

o abraço que nunca te morre

a coragem que sempre descobres

o tempo dos sonhos que despertas

o teu coração puro e nobre

o agasalho que te mora no olhar

a fonte onde buscas a fé.

O tudo que sempre foste.

O tudo que ainda és.

As coisas bonitas que em ti eu vejo

são os milagres raros do mundo

que me ofereces, como se fossem um beijo.


Pelo inverso dos sentidos

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

O que a assustava era esse silêncio, ensurdecedor, no meio do rumor que dançava à sua volta dissipando-se qual névoa lenta.


Um silêncio cheio de tudo.


Pensava como era possível o mundo girar-lhe, a um ritmo alucinante, por entre o corpo e ela apenas conseguir sentir a voz estridente do silêncio como uma pedra pesada sobre os ombros.


Lembrou-se, de repente, das cenas dos filmes, quando as personagens sobrevivem a uma explosão. Um tinido nos ouvidos. Por todo o lado, o ruído tão distante. O desconcerto de quem não entende o que acabou de acontecer.


Seria assim o seu mutismo? A consequência do estrondo imprevisível de uma guerra que não lhe pertencia? Uma guerra de todos os que não suportam o mundo, de todos os que não se suportam a si mesmos?


Sentada sobre uma cadeira. Em frente, restos de uma refeição sem sabor, a única companhia dos próprios pensamentos. Cabeça apoiada nas mãos, a tapar o rosto escondido, adormecido no vácuo daqueles segundos em que se sentiu gente.


Fixou-se no tiquetaque do relógio. Estranho som. Seco, vagaroso, cadenciado... Cada vez mais sonoro, numa invasão indesejada a consumir-lhe os sentidos.


Estava ali há tantos anos aquele relógio, naquele mesmo local, naquele exato ponto e nunca se apercebera dele como naquele exato momento.


Curioso como o arrastar do tempo é substância delicada a escorregar pelas sinuosidades da vida! Impercetível, habita nela como as raízes de uma hera cravadas numa parede. Mas ninguém lhe escuta o bater compassado do coração. Ninguém o ouve.


Lembram-se dele, do relógio, das horas, do tempo, somente quando precisam de controlar os instantes dos dias. É-lhes imprescindível para não falharem, para seguirem o rumo certo do destino a que se propuseram.


É assim o relógio. Caminha sem pressas, mesmo que o abanem para ser mais rápido. Caminha inalterável, mesmo que o aconcheguem para ser ainda mais lento.


É assim, o relógio. Necessário na existência de tantos.


É assim, o relógio. Invisível.


É assim, ela.


No colo de amar-te

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Inventei as palavras que não pude dizer-te por serem fáceis demais. Porque tinham que ser princípio. Porque tinhas que viver nelas antes do tempo começar. E sorrir como as crianças sorriem quando acreditam no amor para sempre.


Para o que te posso oferecer, és infinitamente mais. E eu, um feliz insuficiente que se contenta com murmúrios roucos e mãos trémulas de querer-te. Um ponto de interrogação que não entende os sentidos puros da alma.


Não sei se já te contei, mas sabe que não há contos de fadas. Apenas segredos que crescem em ti e que não tremem inseguros somente pelo tanto que os apertas contra o peito. Só por isso não te permites ser infinito como as horas.


Ah! Se assim não fosse, quanta eternidade encontrarias no mundo que és! E ousarias a liberdade para gritar o que não suportas deixar de querer.


Gosto de olhar-te pelo canto do meu silêncio. Admiro-te a perfeição como se os meus dedos tocassem o centro imaculado de uma rosa do deserto. Adivinho-te no impossível de tantas certezas. E o abandono rasga-me o grito mudo de todas as sedes que calo dentro de mim.


Distante, o mundo vive com outras guerras e outras mágoas. As minhas, guardo-as religiosamente nas raízes que, um dia, plantei para ti.


Sei que já não te recordas, que a imaginação te atraiçoa, porque o passado, por vezes, é demasiado longe e encoberto de sombras, mas já foste um sol no meu corpo. Brando e apetecível como o calor que nos deixa sedentos de aromas frescos.


Sei… há um ténue vibrar da minha voz que ainda pressentes.

Se o pudesses escutar! Seria feliz um instante que fosse se, no fundo da memória, abraçasses essa ternura que se mantém luz acesa, no meu colo de amar-te.

 

Por estrada nenhuma...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Adivinha-se como num céu de sombras que o encobrem.


Uma nuvem permanente e imortal em fios estendidos pelo tempo da vida. Numa linha infinita, lenta, adormecida, como um cigarro na ponta dos dedos tomado pelo vagar do esquecimento.


Os sons que decoram o espaço onde sustenta a existência do corpo, são invisíveis, impermeáveis e distantes, agarrados por uma corda que poderia soltar a qualquer momento. Mas não o faz. Porque tem medo da verdade, da solidão inacabada que o devora pelos olhares magoados e vazios dos que o aguardam.


Deu-se a si mesmo um sorriso irónico, enquanto abanou a cabeça desmaiada de tantos pensamentos a arderem-lhe na palidez seca das têmporas.


Quantos amores bêbados de mentira perdidos por este mundo cansado! Juntasse-se-lhe a eles, com pompa e circunstância, e fariam a festa de um circo com muitas palmas.


Sim, talvez fosse mais feliz assim, cheio de palavras inúteis, vozes lúgubres ou tontas e palcos feitos de cartas. Casas de príncipes sem reino, onde o engano é pilar construído por ilustres inverdades.


Inventaram-no dessa forma, trôpega, quando veio ao mundo, ou ter-se-á adornado a si mesmo das vestes simples que lhe deixam a alma tão a descoberto de tantos frios? 


Talvez nunca o saiba com toda a certeza. Seriam precisas muitas vidas, dissera-lhe, um dia, uma velha cigana. Afinal, quantas línguas falas, meu filho? Questionara-o na sua voz rouca, com a mão desprendida sobre os olhos longínquos dele.


Nesse momento, soube por fim que, aqui nesta viagem, seria sempre um fiel desconhecido, de malas feitas, por estrada nenhuma…


Canja de Galinha Para a Alma

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

No momento em que dou início a esta crónica, levanto o olhar, num mero acaso, em direção à janela da sala. Avisto a beleza fascinante de um horizonte magenta, com aquela mistura certa de azul e vermelho capaz de transformar qualquer pôr do sol numa incomparável e pura obra-prima, pincelada pela divina natureza.


Admiráveis e, simultaneamente, surpreendentes estes insólitos ocasos de cor e luz que o mês de janeiro nos pode proporcionar. Tempo de dias cinzentos, num dos meses mais frios do ano, principalmente no norte do país, em que o corpo pede o calor da lareira e, tantas vezes, o semblante nos divaga, melancólico, pela chuva que vai caindo sem cessar.


Singular contraste de atípicos céus luminares de inverno com a rotina desenfreada que vamos vivendo. Enquanto esta luz do céu de janeiro se vai espalhando em matizes de ouro e rubro em muitos nasceres e términos dos dias, acompanhamos uma sociedade mergulhada em sentimentos depressivos e de ansiedade, num panorama pouco esperançoso e impeditivo de alternativas para se reinventar, de modo a seguir em frente.


Incongruências de um universo tão soberbamente organizado que, sem bater à porta ou pedir autorização, nos oferece aquela bofetada sem mão e abana as estruturas deste nosso pequenino mundo, do qual sempre nos fomos considerando, cada um e todos juntos, senhores e reis.


Entretanto, continuamos a construir novos percursos, deitados nesta cama de incertezas sobre os contornos de batalhas que desejamos vencer. Talvez porque confiar é tudo o que nos resta na procura desse equilíbrio tão fundamental à nossa existência.


Encontrar a disponibilidade de um momento, ainda que fugaz, para pousar o olhar sobre o harmonioso e acolhedor cenário artisticamente pintado com estas inusitadas cores de janeiro, poderá, afinal, neste frio inverno da vida, ser simplesmente esse agasalho confortável com sabor de uma verdadeira canja de galinha para nos aquecer a alma.


Em jeito de despedida, hoje, dir-vos-ia, como a compositora e cantora polaca, Hania Rani, na sua canção ‘Leaving’ (tema que apresenta no álbum, Home):

“Are you leaving?

(…)

The doors are open, remember to take care”…

 

O que procuras no céu?

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

O que procuras tu, no céu, nestes dias que, às vezes, te parecem muito mais frios por dentro da alma do que por fora do corpo?


A que te referes quando apontas lições sobre o ser interior e profundo de cada um?


Sabes, talvez seja tempo de aprenderes com as crianças. Não com aquelas a quem instruis sobre o amor e depois carregas pela mão à procura do presente mais caro e brilhante, como as cores do pai Natal.


Aprender com as outras crianças. As que ainda não te ouviram dizer tanta coisa e fazê-lo de outra maneira (sempre me soou tão irónico quando um adulto diz, convictamente, a uma criança que é um pecado feio mentir…).


É tempo de aprenderes com as crianças a quem faltam palavras mas, quem sabe por essa razão, lhes sobra em sentimento.


Com as crianças que não precisam de deitar os olhos ao céu para confiarem que os prodígios se fazem na terra. A elas, por aqui, tudo lhes prende o olhar, tudo é sensação. Oferecem a ternura fiel e autêntica, sem ensaios. Aquela que lhes pertence, assim como lhes pertence o amor que sentem pelos que são tão seus.


Pormenores a quem só dá valor quem encontra valor no interior de si mesmo, porque vive cheio de uma matéria invisível aos olhares que andam sempre focados na luz efémera do que está por fora.


Aprender, assim, com as crianças, que sabem da única crença que nos deveria ser permitida.


Acredita, seria como agarrares um tesouro com as mãos, que há tanto tempo só conheces pelo nome de saudade, e guardá-lo como memória futura.


Mas sabes, para isso, precisas de recuperar a humildade perdida no tempo. E não continues a confundir a humildade com a falta de dinheiro, com a pobreza ou com a simpatia envernizada.


A humildade é um sentimento genuíno, cabe dentro de pobres e ricos e faz-se de gestos naturais, porque espontâneos. E intemporais, pois o que é hoje, continua a sê-lo de igual modo amanhã.


A humildade é a oração de todos aqueles que não precisam de rezar. Todos esses que não olham para um Deus, lá em cima, que lhes soa intocável, mas veem Deus tão pequeno que lhes cabe no tamanho do coração.


Esses que são feitos do verbo Amar, que é o princípio de todas as coisas.


Curiosamente, não é quando se mede a distância entre nós e o céu, mas sim quando se observa a distância que vai dos nossos pensamentos e palavras aos nossos atos, que se avalia a dimensão de profundidade e a capacidade de interioridade. O que talvez seja o mesmo que dizer, da consciência efetiva de quem se é enquanto pessoa.


Há movimentos que nos fazem sair para lá de nós. Deslocarmo-nos de nós em direção aos outros. É neles que encontramos a certeza de falar da verdadeira cumplicidade dos abraços.

E se assim fosse de cada vez que olhamos para o céu, não somente no Natal, mas ao longo de muitos anos e de uma vida, não haveria tanto desconcerto entre tudo aquilo que gostaríamos de ser e tudo o que, efetivamente, tantas vezes apenas somos. 


Em nome de Deus

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...


 “Eu achava que religião não era para garantir o céu, 

depois da morte,

mas para tornar esse mundo melhor, 

enquanto estamos vivos

- Rubem Alves -

 

 

Se existem momentos na vida das sociedades, que pressuponham a existência de Deus, esta época será um deles.


Chegados a esta altura do ano, imagino sempre, inevitavelmente, o que Deus quererá dizer-nos quando os homens afirmam o convite que Ele, um dia, nos dirigiu no sentido de olharmos e venerarmos a exaltação do Criador que ofereceu o Filho em sacrifício pelos nossos pecados (São João 3:16, Porque Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o Seu Filho único, para que todo o que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna).


A reflexão, a humildade, o recolhimento, a procura efetiva sobre o sentido de existência… por onde andam? Acreditar-me-ei cega de fé porque não os vejo no meio de tamanha turbulência de festas e iluminações antecipadas?


Escreveu, certa vez, Marie von Ebner-Eschenbach, que “haveria muito menos mal no mundo, se o mal não pudesse ser feito sob a aparência do bem”. Sinto-me levada a concordar com cada letra da escritora.


Nada melhor do que esta quadra para confirmar como a relação tida com as palavras é tão diferente da relação tida com as ações.


A realidade espiritual adorna-se de rituais pouco vividos e ainda menos sentidos.


Os dias transformados em mais uma passagem que desgasta e satura. O encolher de ombros, a indiferença, a sensação aborrecida do dever cumprido, o cansaço da partilha fingida, a passividade na intenção de oferecer o que se possa ter de melhor. Talvez porque, lá dentro, residam somente sombras e névoas que impedem de ver outra luz que não seja a que se julga luz própria.


No fundo, um tempo e lugar estranhos onde do amor muito pouco se experimenta.


A bem de ver, presépios, palhinhas, manjedouras, cordeirinhos, não fazem milagres. O milagre acontece quando o fazemos acontecer, por nós e, muitas vezes também, em nós. O milagre acontece quando celebramos a fé que nos impele a caminhada, a esperança de tornar melhores os instantes simples, a ousadia de tocar o outro e por ele fazer a diferença num ato que poderá parecer insignificante mas que, apesar do pouco, se torna sublime.


Para quando abrir a alma a uma relação de intimidade connosco mesmos? Com frontalidade, sem o coração posto num protagonismo descabido e que muito pouco alimenta o que existe de verdadeiro bem no interior do peito?


Interessarmo-nos, verdadeiramente, mais por nós do que por aquilo em que desejamos encaixar-nos para mostrarmos aos outros um suposto ‘eu’ convencionado?


Perceber que nesta órbita onde queremos tanto acreditar não existirem impossíveis, só a consciência do quanto somos limitados, pode permitir-nos alcançar esse ponto de felicidade pelo qual tão desesperadamente ansiamos.


Sentimentos puros e autênticos: os únicos que podem e merecem ser oferecidos em nome de Deus, os únicos que nos podem transformar num presente exclusivo.


Sicofantas e outros que tais...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...


 “A aranha sobe pelo fio da própria baba.

É a imagem do bajulador, que não tem outro meio para subir

- Vitor Caruso -

 


O dia 9 de dezembro foi a data instituída pela ONU, com a assinatura da Convenção das Nações Unidas, para relembrar o Dia Internacional Contra a Corrupção.


Corrupção faz-me recordar uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, do seu livro ‘Último Volume’, onde o escritor nos encaminha para uma deliciosa reflexão sobre o engraxanço nas relações sociais. Crónica de um livro já bem velhinho, mas tão atual no conteúdo, como é bom de reparar a quem a ela tiver acesso.


Nessa altura, achava o autor que, em tempos idos haveria um número reduzido de engraxadores, embora dignos do nome, porque finos na perceção do sentido de oportunidade, já que então, a atividade não seria socialmente bem aceite.


Mas o esforço na profissão deu lugar a um aperfeiçoamento que parece até bem recompensador. Ao ponto de os não versados nesta matéria, principiarem a ter enormes dificuldades para vencerem na vida. Dirá o escritor que o culambismo estará como o saber falar em inglês, para a nossa sobrevivência na sociedade.


Ora, diria pois, que por trás de um graxista viverá sempre um letrado na mentira, um mestre na arte das relações públicas da maledicência velada, um oportunista pequenino que aguarda alcançar o patamar dos supostos grandes, onde se entenderá, quiçá, mais realizado e feliz.


O humorista brasileiro, Jô Soares, terá dito certa vez que “gente falsa não fala, insinua. Não conversa, gera intriga. Não elogia, adula. Não deseja, cobiça. Não colabora, interfere. Não participa, se infiltra. Não sorri, mostra os dentes. Não caminha, rasteja pela vida sabotando a felicidade alheia e sobrevivendo dos seus restos”.


Após trinta anos volvidos sobre a crónica de Miguel Esteves Cardoso, assistimos ainda e, porventura cada vez mais, a estas ambiciosas tentativas de tantos subirem mais e mais um degrau, atuando por meio da lisonja, numa ode à cultura da sicofantia, que inunda particularmente alguns contextos sociais e que soa de forma visível na prática da vida quotidiana de muitos.


Estaremos todos dispostos a compactuar com o sistema instaurado? Será que o culambismo deveras compensa?


Cita um provérbio hindu que “as línguas dos bajuladores são mais macias do que seda na nossa presença, mas são como punhais na nossa ausência”. Lembremo-nos, então, que “são os que hoje te dão a mão e amanhã o punhal no coração” (Hugo Amaro, crónica de opinião, JM, outubro de 2020).

Outono... um tempo simples

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Sentado num banco, entre as folhagens e as sombras despertas, pensa. Sim, ele ainda é capaz de pensar. Só os mortos deixam de o fazer. Enquanto for vivo, mesmo que as ideias lhe venham à cabeça, baralhadas ou dispersas, e mesmo que mais ninguém o compreenda, haverá espaço para o entendimento. Ainda que seja simplesmente o seu.


E o que pensa ele? Que há uma certa magia no encontro com as solidões do outono, quando o sol é ténue e morno. É um sol que ilumina sem aquecer e, por isso, quando o corpo lhe toca em tudo o que vive, reflete-se como num espelho onde ele se revela.


Experimenta a pulsação da estação como se bebesse instantes felizes do presente. Como se estivesse a saborear, com o prazer da lentidão, um cálice de um vinho amadurecido pela longa viagem e que degusta com agradável conforto.


Aprecia a memória de tudo aquilo que no passado o perturbou e hoje constata, com um riso de palhaço antigo que, afinal, lá onde foi e aconteceu, perdia-se demasiado em tolas ânsias de sofrer.


No outono, os olhos sobre as coisas são-lhe mais demorados. São como os olhos de um bicho atento.


Acarinha-se nas brevidades belas e descomplicadas e nelas descansa os sentidos.


As fervorosas certezas afloram-lhe na rugosidade das mãos onde o toque da ternura já só consegue ser naquilo que a pele esconde por dentro.


Fica calado. Contempla sem cismas. Para cá dos lábios consumidos pelas horas de muitos anos, não encontra dentes que saciem a fome, mas habita o sabor sábio de outros órgãos, como os da alma. 


Tornou-se um poeta de si que se salva, todos os dias, pelo que ri dele próprio.


Não sabe quanto mede ou quanto pesa. Nem isso o preocupa, porque não lhe apetece chorar lágrimas secas sem sal.


E enquanto saboreia o vagar que se lhe oferece para contar as folhas que caem das árvores e no chão adormecem contentes, descobre que, por trás da luz caída do momento, vai espreitando um outro brilho. A claridade privilegiada do luar.


É um espanto que o inunda e, sem querer, tantas vezes, o leva a ser menino outra vez. Dispõe-se, por isso, a somar de novo as estrelas. São a essência que lhe alimenta um sonho.


E ri-se sozinho. Todos imaginam que os velhos não sonham. Mas ele sonha, sim. Ele acredita e ninguém disso queira fazer prova contrária, que ali, naquele fundo de céu negro a aparecer no horizonte, aguarda-o quem outrora o abraçou e amou como mais ninguém fez.


Um dia chamou-a de ‘minha andorinha’ porque lhe veio morar no coração numa tarde de primavera. Já não lhe sente o nome. Lá em cima, vê somente uma espécie de pássaro vestido de branco, com asas que respiram o ar que ele também acolhe. Confia que, mais cedo ou mais tarde, voltará a esse princípio.


É que os velhos descobriram que há um encanto nascido dos mistérios. Ciência que os novos ainda não alcançaram. Lembra-se de uma famosa e inteligente senhora, muito assertiva por sinal, que viveu lá para os lados da Áustria e que, certa vez, ditou uma sentença que ele leu e nunca esqueceu. Afirmou ela que é na juventude que aprendemos, mas é com a velhice que compreendemos. Ora aí está toda a verdade. É como a verdade dele. A sua crença é suficiente para o trazer feliz.


O outono é um tempo simples.


Agora, consciente de que amanhã não estará de partida para muitos lugares, espera a noite com tranquilidade. Quando ela chega, aninha-se sobre os pedaços que a vida construiu, sem lhe acrescentar diferentes paisagens porque ao fechar os olhos percebe, sereno, que lhe é permitido esquecer o futuro. Agora, por fim, pode sentir apenas a existência.


Diário de Uma Quase Poeta

REVISTA VICEJAR

Não sou de pressas. Corro devagar. Lá chegarei.


E se não chegar, terei tido fôlego para respirar o que é belo.


A minha alma não tem urgência de rasgos aflitos. Sou feita de lembranças. Miudezas guardadas em cada emoção onde me afundo. Sorrio ao tempo que vem de longe para me cumprimentar. Apertamos as mãos, cordiais, e tratamo-nos por tu como velhos amigos.


Ontem contei-lhe do segredo escondido debaixo daquela pedra. Quem sabe, no futuro, uma criança pobre lhe dedique um pontapé e faça dela uma bola. As crianças só brincam a sonhar. Mas tu já te esqueceste da beleza desse suspiro, não é?


Entretanto, ainda bem que há homens grandes que sabem fazer girar o mundo como uma roda veloz. Dizem que é para acontecermos. Reconheço-os e abençoo-os. Se calhar, sem eles eu não existiria. Só gostava de não morrer infeliz como uma máquina de tanto fazer. É que, enquanto uns inventam sabedorias, outros conhecem as palavras pelo corpo e casam com elas para lhes dar um nome. Olha a sorte que temos por todos sermos presentes da vida!


Hoje, acordei-me tarde, porque sabe bem a preguiça quando é lenta. O sabor das coisas é mais visível quando os sentidos não estão cansados e o paladar tem outro timbre para provar o que haverá de ser saudade.


Quando abri a janela do quarto havia dois pássaros a cantar no quintal. Escutei-os, sozinhos, depois da névoa que amanheceu. Também eles gostam de ficar na cama à espera dos braços do sol. Pareciam namorar por cima do vento e dos homens, mas nenhum lhes prestava atenção. Porque os homens, e as mulheres também, vivem instantes importantes onde as grandezas inúteis são tudo o que os leva a um estranho lugar chamado nada. Acreditam que sabem da felicidade porque a conhecem só assim.


A menina, arrastada pela mão do pai, a caminho da escola, chorava os vazios que ele não compreendia. Não chores, minha pequena, é um tudo dor e um tudo passa. Amanhã serás mais bonita, sem as tuas tranças e o teu vestido bem posto e saudarás as recordações desse chão quente que os teus pés, agora, tocam.


O cão da Alice ladrou três vezes e o gato da D. Marta espirrou, arrepiado (já viste um gato espirrar?). É o que acontece sempre, quando o carteiro Luís aparece. Conhecem-lhe de cor os passos e acho que inventaram esta coincidência só para se avisarem um ao outro, nos cantos opostos onde moram.


A Alice sonha com o carteiro Luís quase todas as noites e há anos que arranja coragem nos olhos para o convidar a tomar um café com ela.


A D. Marta não sonha com ninguém. O marido era sargento. No trabalho comandava as tropas e, em casa, a mulher. Como não podia bater nos soldados, batia nela. Ela tornou-se a tela de um pintor sádico. Já ele, um dia, acordou morto. A D. Marta voltou a vestir-se de branco, guardou os sonhos numa gaveta velha sem memórias e fechou-se nas paredes do silêncio com o seu gato. Só a veem quando vai à missa, espaçadamente, e cumprimenta o padre com respeito e sem palavras.


O jardim da Dra. Aurora chegou-me da janela, entreaberta, à espera que a tarde descesse. Ela nunca está em casa mas as flores da cidade decidiram habitar todas ali. São luz e cheiro. Possivelmente algum jardineiro encantado (porque nunca o vi) lhes dê as mãos. Invisível aos olhares e sempre atento ao que torna os dias mais lindos.


Gosto de jardineiros. Falam com as plantas e não são tratados como loucos. Não há loucura por trás do exercício de uma função que se pratica com desvelo. Os loucos, como eu, falam apenas sozinhos e ouvem o que os outros não vislumbram. A loucura que não é normal, assusta.


Uma vez, roubei uma rosa negra ao jardim da Dra. Aurora e coloquei-a numa jarra. Ofereci-a, como se fosse uma prece de agradecimento, àqueles que já me partiram. Como a D. Marta, sou viúva. Afinal, a viuvez mais feliz, é ser ausente de todos os que não se amam. Será por isso que também gosto de me vestir de branco.


O velho relógio de pêndulo do Sr. Tomé, que está acomodado paredes meias com o meu quarto, fez soar nove badaladas. Desprendeu-se a noite. É hora de abraçar as sombras e agasalhar tudo o que puder no lado de dentro da voz. Aquilo que talvez possa vir a construir-se som infinito, como as letras dos poetas incógnitos que, quando morrem, se tornam deuses.


Quando cerrar o pensamento, vou querer sonhar com o carteiro Luís e as cartas de amor que a Alice nunca lhe escreveu. Dizem que o amor é o único ponto da alma que nunca foi final. E eu acredito.


E se o (teu) amor falasse?

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

E se o (teu) amor falasse, o que te diria?

Que dias felizes não ficam suspensos nas sombras do sol.

Que o caminho ao lado de alguém não é um deserto sem cor.

Que quando corres para um abraço não recebes a força impune de um braço.

Que a dor e o grito são desespero e não o alimento de cada dia.

Que a vida não se faz de um mundo de ausências dentro da alma.

Que não podes adormecer debaixo das pancadas que entendes como beijos.

Que ficar nua não é permitir que um outro te desfaça a carne e a essência.

Que as emoções mais íntimas não são feitas de sangue.

Que sobre o teu corpo não devem morar somente pele e sonhos desfeitos.

Que permitires que te comam o espírito e o corpo não saciará a fome desse Ninguém.

Que ser humana não é um nada que te anula.

Que noites brancas não são sinónimo de noites sem luz.

Que a morte talvez possa apanhar-te enquanto dormes.

Que estas pedras onde te deitas não vão transformar-se, como por magia, em flores.

Que os desejos dentro do teu peito não devem ser apenas saudade.

Que não podes viver de janelas trancadas com vergonha de quem melhor te merece.

Que instantes bonitos não são porta de entrada para desceres ao abismo.

Que não podes ficar rendida ao que nunca tiveste.

Que dentro de ti existe uma obra que almeja ir ainda além.

Se o amor falasse, dir-te-ia…

Que o primeiro amor que casa contigo é o que nasce do teu próprio coração.

Era um burro, o Carlitos

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Era um burro, o Carlitos.


Não atinava com as letras e os números faziam-lhe caretas e brincavam-lhe com o desejo de ter boa cabeça. Era assim desde a escola primária.


Primeiro, a família depositou a esperança. Depois, veio a desesperança. Não havia porque insistir e a vida trazia mais o que pensar, do que as veleidades do menino que já nasceu torto, valha-o Deus.


Era um burro, o Carlitos.


E no fundo da sala deitava a atenção aos cadernos dos outros para não falhar as respostas. As respostas das fichas, porque aos porquês do pensamento ralo que todos lhe apontavam, não havia quem lhe soubesse responder.


Deixou de acreditar que valia a pena perguntar. Passou a crer nas razões que todos desconheciam. Parecia ainda mais burro.


O Carlitos e o lugar de sobras que lhe calhava nos grupos de trabalho, enquanto os colegas discutiam uma língua distante que ele não entendia.


O Carlitos e a nenhuma vontade de agarrar os trabalhos de casa pelos punhos e sacudi-los até que chovessem resultados.


O Carlitos e as tentativas frustradas de chamar a atenção com os números dos pais. Os outros números, aqueles que muitos acreditam fazer a diferença na superioridade dos homens. Números tão altos que ele tinha motivos para não saber nem precisar de contar.


Além do mais, havia o Zeca. Ah! O Zeca! Pois isso é que era. O Zeca sim, esperto como um alho. Outra sorte lhe coube na família. O que não sabia, fingia. Queixumes e queixinhas, ser o mais novo dava-lhe honras com direito a pedestal. Se havia azar, a culpa era do Carlitos. Afinal, era burro.


O Zeca, estilo gabarola e de muita letra, a sacudir os braços e os sorrisos na vaidade dos seus poucos anos. O Zeca, no palco das festas, a papar os prémios todos da escola. O Zeca e os aplausos da mãe, os aplausos do pai, do avô, da avó, do tio, da tia, dos primos, do outro pai, da outra mãe, dos quase irmãos; a plateia era grande. O Zeca e as vitórias de quem tudo sabe e tudo consegue.


O Carlitos e o desinteresse de todos. O Carlitos e o silêncio por dentro que não preocupava a ninguém.


Para desapertar o coração, encontrou solução. Mãos nos bolsos, pés na bola e a cabeça no ar, à espera que o futuro lhe ditasse o caminho. Soou-lhe essa a melhor, a única opção.


O Carlitos tão pequenino, enquanto os adultos de casa iam ficando cada vez maiores. Em matéria e orgulho. Orgulho da carteira cheia que tudo salva, orgulho do Zeca.


As vergonhas escondidas e os negócios de vento em popa.


E pelas obras se vê como Deus mostra a sua benevolência a quem dá de comer a tanto pobre, pensavam. Só os invejosos nunca lhes compreenderão as lutas e os esforços de um trabalho feito com alma e à conta de muito madrugar. Os empregos que oferecem, o pão que põem na mesa dos que lhes vêm bater à porta à procura de um lugar para poderem alimentar os seus.


Com o dispêndio de tanta caridade oferecida aos outros, não é a eles que lhes cabe a obrigação se a escola não presta para ensinar o Carlitos a ser homem. Pela humanidade já fazem muito. E pela sua carteira também, que o Senhor é benévolo para com os que praticam o bem.  


E o Carlitos cresceu. O Zeca também.


Carlitos, o burro, que decidiu pintar para afogar sonhos sem pouso.


No dia em que, numa aula de artes, desenhou um círculo preto numa folha branca e escutou o professor, irónico, dizer-lhe que fizesse o favor de usar as tintas porque elas preenchem buracos fundos, Carlitos percebeu que as cores podem tapar o escuro que mora dentro de cada forma.


Quis, então, dar préstimo às mãos, já que a cabeça não parecia ser o melhor lápis de que dispunha. E com elas começou a pintar. De azul, verde, amarelo, vermelho… fazia-as deslizar sobre os papéis, sobre as telas, sobre tudo o que não tivesse vida. Sentia-lhes a textura e o cheiro a comporem o vazio que foi ficando cada vez mais pequeno.


Enquanto o Carlitos foi ficando cada vez maior. Uma altura, um senhor engravatado aplaudiu-o. No mês seguinte, novas ovações de outros senhores engravatados a caírem sobre as suas imagens catárticas, na galeria onde as expôs.


No ano seguinte, saltou o mar com elas nas mãos. Lá fora, do outro lado do oceano, também haviam senhores engravatados que se reviam em precipícios preenchidos por inspirações coloridas.


Alguns anos depois, quando regressou, soube que lhe choraram a ausência.


Os avós adoeceram novos. O pai sempre tivera outros rumos. E a mãe não aguentara o tamanho do pesado fardo da caridade, pouco mais habituada que estava senão a usufruir das divinas recompensas, perdida e achada entre luxos e publicidade fotográfica, de riso bem composto, como garantia ao mundo, de próspero sucesso e afortunada felicidade.


Zeca, o inteligente. Só ele podia salvar o negócio familiar que, em tempos, conhecera melhor fortuna. Mas o Zeca… Ai o Zeca! O Zeca que era esperto como um alho, quis confirmar que filho de peixe sabe nadar.


Entre papelada burocrática e diplomacia telefónica, de ideias criativas, só a imaginação a fugir-lhe, célere, para os arrebiques com que pudesse conquistar os folguedos, os amigos e os amores. Cruel fatalidade para um empreendimento construído com bravura no meio de tantas dores de cotovelo e invídias alheias.


Desamparadas pelos algozes do inesperado, parece que as ovelhas brancas do rebanho se haviam tresmalhado ainda mais.


São agora as pinturas e os louvores do Carlitos que as acodem num gesto de misericórdia.

Era um burro, o Carlitos. 

A Arte Simples de Afiar a Vida

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Entrei na pastelaria do mercado municipal, desvio obrigatório em cada manhã, no trajeto para o trabalho. Cuidado todo posto na descida do degrauzinho impertinente, onde já escorregara vezes sem conta, como se ali estivesse de propósito para me deixar sem vontade de continuar caminho.


Ao canto do balcão, o Baunilha, bicho amarelo de pelo sedoso, a dormitar sonhos de gato. Deduzia eu, pelo som do ronronar consolado do preguiçoso.


Mais ao fundo, numa mesa afastada, como não poderia deixar de ser, o Alfredo Couraça, do talho, de dedo em riste, sentado em frente à D. Júlia, a florista.


— Note o que lhe digo, menina Júlia, note o que lhe digo…


Mulher cheia de graça. Só ela para lhe ouvir com paciência de santa, o debitar das frustrações de uma vida inteira por resolver.


Às vezes, naqueles momentos mais lúcidos de filosofias existenciais, chegava a pensar que o Alfredo poderia ter sido meu irmão.


— Bom dia, Sr. Óscar! Bem-disposto? Sai já o cafezinho…


E ali estava, à minha frente, como sempre, o Natalino. Todo simpatia logo pelo anunciar da manhã e uma genica interior que lhe fazia o corpo balouçar, como se fosse um cata-vento, em horas de borrasca, a dar vazão à clientela matinal costumeira.


— Bem-disposto? Até estava, pois estava…


Senti a rabugice habitual a ceifar-me a língua. Raios. Será que um homem não tem direito a acordar de bom humor, ali como o Natalino?


Ver o dia raiar com o maldito nevoeiro, todo estropiado da cervical e dores nos joanetes. Não há disposição que perdure.


Natalino ignorou-me e prosseguiu, a empurrar a chávena na minha direção. O sorriso sempre aberto, como se fossem braços esticados, prontos para me consolar.


— Ora então, conte lá coisas…


Não consegui mentir. Refilei:


— Olhe, já perdi o dia. Encontrei-me acolá com um colega que não via há anos e ele, desconcertado, atira-me que me julgava já aposentado.


Respondeu-me com um levantar de sobrolho. Compreendi-lhe o pensamento.


— Uma machadada no meu ânimo, não lhe parece? Julgam-me assim tão velho das canetas? – Inquiri, a antecipar a sua compreensão para as minhas preocupações, fruto do espelho que, em casa, me encarava o bigode e os cabelos brancos. Já nem lhe falava do corpo que, perdida a agilidade, andava agora ao sabor de uma ferrugem tão indesejada.


— E ora então, que tem isso? Não se deixe manchar pelo tempo, meu amigo. — Amenizou o Natalino.


Pudera… queria ver quando chegasse à minha idade. Por certo, o riso iria descoser-se-lhe do rosto.


Sobre o balcão, o adoçar da bebida correu-me mal.


— Bolas, pá!... — Reagi com um salto tosco, a sacudir o casaco — Se um tipo não deita logo o pacote todo do açúcar na chávena, está bem tramado!


O Baunilha levantou o focinho, olhos quase fechados, para rapidamente voltar à indolência manhosa.


Lá fora, com o nevoeiro a dar tréguas e as nuvens de cara posta a prometerem instantes de desalento, o esquecido amola-tesouras passou a assobiar com a sua gaita-de-beiços e a tranquitana montada na velha burra que chamava de bicicleta.


A arte simples de afiar a vida e um modo inabalável de olhar para o dia que se segue…

 

Esvaída a meninice, seria esta a forma mais honesta de viver, aquilo que me faltava?


Sorrisos, com alegrias que poucos nos conseguem adivinhar.

 

A Importância das Raízes

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Recordo-me de há uns poucos anos atrás, uma certa pessoa me ter atirado em cara uma famosa frase, numa atitude de prepotência de quem se imagina com grandeza de caráter por acreditar que dizer aos outros aquilo que gostam de ouvir, é a melhor forma de amar alguém.


Isto, acreditei, ainda que não se sinta nem se pense o que é proferido da boca para fora. Porventura, amavelmente cuspido entre dentes e um sorriso amarelo, somente com o intuito de ficar bem visto perante terceiros.


Uma dessas frases batidas de que o mundo se apodera e às quais se batem palmas nas redes sociais e que, sendo de alguém, são de todos e não são de ninguém. Citações que, de tão repetitivas, vão acabando por desgastar quem tem vontade e aptidão para pensar um pouco mais além.


Dizia-me a dita pessoa, que “devemos construir pontes e não muros”…


Recordo-me de lhe ter respondido, na altura, que de construção de pontes e muros muito pouco ou nada sabia pois que, na verdade, não sendo mestre de obras nem tão pouco arquiteta, os meus conhecimentos e aprendizagem ao longo da vida têm versado mais sobre a construção de relações. Relações Humanas. E que a existir alguma ponte ali, é apenas aquela que permitimos ser percorrida por quem realmente desejamos presente no nosso percurso.


Ontem, sem querer, um amigo trouxe-me à memória este episódio, quando me falou em raízes. Disse-me ele que, ao olhar pela janela do local onde se encontrava a trabalhar, reparou numa árvore com os ramos a balouçar, fruto do vento que se fazia sentir lá fora e que isso o fez pensar na importância fundamental de nós, humanos, criarmos raízes.


O que têm estas duas situações a ver uma com a outra? Tudo.


Pergunto se teremos consciência, cada um de nós, de como criamos as nossas raízes. E que espécie de raízes nos prendem ao solo da vida. Que tipo de relações escolhemos estabelecer com os que nos rodeiam, para edificarmos essas raízes que nos firmam em terra e nos dão a certeza de não virmos a cair face às intempéries?


De repente, ao escutar a reflexão desse meu amigo, apercebi-me de algo que talvez seja fundamental repensar.


Dei-me conta de que muitas pessoas que fazem parte do meu pequeno universo de relações, as quais defino, inquestionavelmente, como sendo verdadeiramente humanas, estão presentes há quase duas décadas ou ainda mais.


Por entre obstáculos, vicissitudes, afastamentos, regressos, risos e lágrimas, o facto é que essas pessoas, distantes ou mais próximas, permanecem ao meu lado. E nos tempos de contratempos, infortúnios, transtornos, aborrecimentos, tribulações e atrapalhações, são elas as raízes da minha árvore que, do outro lado da ponte que lhes permiti atravessar, nunca deixaram de me segurar em chão firme.


Entretanto, outras foram transpondo igualmente a ponte a que lhes dei passagem e na árvore se foram instalando. Umas, como folhas que me abrigam o corpo das chuvas de inverno, algumas como flores delicadas que me perfumam os ramos como em instantes de primavera. Umas que me fazem sorrir com o seu canto sonoro em cada manhã, outras que, como pássaros livres, me encantam com o seu destemido voar.


Com elas me abraço, com elas aprendo, com elas me vou tornando na pessoa que gosto de ser.


Dizer o que se sente e o que efetivamente se pensa sem medo de ficar só, acreditar que não é preciso agradar a todos para se ser generoso e ter dignidade e que o amor-próprio não se constrói com pontes que, um dia mais tarde, facilmente desabarão, não se trata apenas de um ato de coragem. É também um desafio à honestidade interior de cada um. Um repto à capacidade de construção dessas raízes que nunca permitirão à árvore açoitada pelo vento, perder o seu equilíbrio e a sua solidez.


Direi, pois, com comprovada confiança e convicção: procuremos todos construir raízes e não pontes.  


Do arco da velha...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

- Olha a velha Pepa! Foge qu’é bruxa! - gritava a rapaziada em desgovernado alarido, sempre que a viam passar pelos caminhos da aldeia. Já trôpega do corpo inteiro, cabeça enfiada debaixo de um lenço cor de escuridão, a tossicar maldições, em sussurro, contra a canalha atrevida e despropositada.


Onde iria a velha Pepa, por esses dias frios de outono, quando passava, quase muda para o mundo, com a vagareza de quem já conhecia o amargo sabor de um século de vida?


Que a desgraçada da morte a levasse de uma vez, pensava muitas vezes com os vetustos botões, já descascados, da intrépida casaca, companheira de incontáveis invernos. Que fazia ela aqui, a dever agora tantos anos à cova, vítima de tamanhas e inclementes dores e desalentos?


E praguejava para dentro, com o pensamento entrecortado por duas ou três ave-marias que a protegessem das mordazes e implacáveis vozes dos maganões que, assim, a atormentavam sempre que por ali tinha precisão de passar, para o cumprimento da sua longa missão.


Benzia-se uma e depois outra vez e arrepiava caminho até se tornar invisível aos olhares que a perscrutavam.


A verdade é que nunca ninguém se atrevera a segui-la com o intuito de lhe adivinhar o destino. Talvez fosse o medo de confirmarem os feitiços que a centenária cuspia do olhar, segundo rezavam os mais velhos.


O certo, é que também nunca ninguém a vira regressar do lugarejo onde pudesse ter ido conceber estranhos sortilégios.


Era um mistério, porque no ano seguinte, lá a viam de novo a tremelicar passos pesados por baixo dos pés rombos.


E a velha Pepa, que se entendia mais velha do que o mundo, desaparecia exatamente da mesma forma sinistra como surgia, sem que alguém lhe conhecesse a história.


Até ao dia em que não voltou.


Um ano e outro ano e mais outro e a velha Pepa não tornou a dar sinal de presença.


O povo, com intenção de lançar luz sobre o fenómeno, ainda que alguns mais desinteressados encolhessem os ombros enquanto profetizavam a morte da velha, destacou dois ou três rapazolas arrojados para descobrirem do segredo que lhe alimentava a curiosidade.


Já com as gentes cheias de preocupação e sobressalto, foram precisos alguns dias até que aqueles regressassem com notícias.


Tinham encontrado lá para as bandas dos confins da aldeia, escondido e tenebroso lago, com que poucas almas, mesmo atentas, dariam de caras. Enterrada nas margens, vultosa cruz de madeira anunciava que ali houvera morte certa há um horror de anos atrás. Jocelino Ventura, o nome gravado em epígrafe.


Adiante, um tortuoso caminho coberto de matagais, conduzira-os a uma inóspita casa. Com cheiro a almas penadas, garantiram. Lá dentro, entre antiguidades e lixo acumulado, vários retratos de onde se destacava bonito casal e uma criança de tenra idade. Por trás, a referência, em letra miudinha, à nobre família Ventura. Junto ao retrato, coçado diário a revelar trágicas desventuras.


Vivia feliz o casal Anastácio e sua esposa Josefa Ventura, com o enlevo próprio de pais afortunados pelo único filho, o pequeno Jocelino, até ao dia fatídico em que desprevenido tiro, dado pelo próprio pai, em tarde de caça e lazer, caíra sobre o corpo leve do menino. Descomposto e desvairado pela amargura do destino, e a prever a loucura em que a fatalidade atiraria a mulher, o infeliz homem premiu o gatilho sobre si mesmo, logo depois de deitada a alma da criança nas águas daquele lago.


A vida morreu para a pobre mãe naquele dia. E, em cada ano que o tempo a obrigou a abraçar aquela dor, D. Josefa tornava sua a missão de, pelas alturas em que o infortúnio fazia memória, derramar as suas lágrimas amargas sobre a cova do único amor que pudera sentir, pedindo clemência ao Senhor pela cobarde desumanidade do marido. 


Estupefacta com a inusitada história, a aldeia inteira pediu perdão ao espírito de D. Josefa pela maldade das suposições e dos impropérios sempre proferidos. O retrato do casal, colocado junto ao altar da igreja, passou, então, a relíquia do local com desejo de absolvição pelos atos praticados. De bruxa, D. Josefa subiu ao estatuto de santa.


Como o rasto lhe foi perdido, todos acreditaram que também partira.


Mas nunca ninguém conseguiu compreender porque motivo, pelos dias mais frios de cada outono, a névoa erguida do lago, acordava todas as noites vestida de um fogo azul, com surpreendente odor a condenação. 


O Dom de Ti

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...


Todo jardim começa com uma história de amor, antes que qualquer árvore seja plantada ou um lago construído é preciso que eles tenham nascido dentro da alma. Quem não planta jardim por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles… e não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses…”

 

- Rubem Alves -

 

 


Sentes-te preso aos confins do mundo

onde o voo não mais teve lugar.

Perdidas as batalhas e as guerras

que o calor da pele te fizeram sangrar,

bateste os punhos contra a corrente

ao som crescente de uma dor maior!

E agora…

… caído no silêncio de vozes mudas

num ritmo que se afigura tão inferior.

Mas sabes…

o que a memória apenas deve guardar de nós

é esse rasgo de conforto e de esperança

que um dia nos acolheu

com uma força desbravada de perseverança,

os gestos e os afetos escolhidos

na palma da nossa mão, que abraçava os instantes

e lutava por horizontes julgados já perdidos.

Quando pintávamos as paisagens do mundo

com as tintas da emoção e o deslumbramento

de um coração inocente de criança

que alimentava todas as expetativas do momento.

Vê :

no outro lado do espelho

o reflexo de um horizonte 

que te parece agora efémero.

E pincela com a grandeza desse passado,

um futuro ainda vivo, que se perpetue e renasça

nas sombras do sentimento, transfigurado.

Pois é neste momento

quando as palavras se te perdem e misturam

num duro sabor de marfim,

que a vida te pede, num eco sem fim:

rasga as correntes do labirinto em que te prendes

e resgata esse, afinal, tão nobre Dom de Ti.

 

A montra da ilusão

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...


Viu-se menina, num mundo imaginário, 

onde todas as formas tinham cor.

Mas a vida, é somente uma maneira frágil de existirmos. 

E os sonhos, o nosso coração à deriva a espreitar 

desejos esquecidos pelo mundo…


 

 

A montra da ilusão

encantou os olhos da menina!

A boneca de cera que sorria

derreteu-se nos olhos da menina,

o comboio de papel que corria

fugiu dos olhos da menina,

o cavalo de madeira que galopava

perdeu-se nos olhos da menina,

o vestido de cristais que brilhava

apagou-se nos olhos da menina.

E a menina, olhou os sorrisos de outras crianças

que levaram a sua montra da ilusão perdida.

E olhou as suas mãos

cheias de vazio e de nada…

E gritou:

“Ninguém quis oferecer-me

os meus sonhos de menina!”

 

A montra da ilusão

encantou os olhos da mocinha!

O livro de História que se abria

fechou-se nos olhos da mocinha,

a casa da aldeia que habitava

longe ficou dos olhos da mocinha,

a terra onde nasceu e onde morava

afogou-se no mar dos olhos da mocinha.

E a mocinha, olhou outras raparigas

que viviam dentro da sua montra da ilusão.

E olhou em seu redor

para o silêncio amargurado…

E falou:

“Ninguém soube oferecer-me

os meus sonhos de mocinha.”

 

A montra da ilusão

encantou os olhos da mulher!

O país onde feliz ela sonhava

explodiu nos olhos da mulher,

o sorriso dos pais que adorava

morreu nos olhos da mulher,

a luz da madrugada que se avizinhava

escureceu nos olhos da mulher,

os ideais para os filhos que tanto amava

saltaram dos olhos da mulher.

E a mulher, olhou o céu sagrado por cima de si,

com duas lágrimas de sal e poeira.

Desaparecera a sua montra da ilusão.

E apenas murmurou:

“Ninguém conseguiu viver

os meus sonhos de mulher...”

 

Como Uma Viajante de Sonhos

REVISTA VICEJAR

Ter uma alma que se formou a partir não de uma, mas de várias sementes que, em algum momento, foram plantadas em diversos jardins do mundo, pode ser um privilégio. Pela vida, o germinar de sentimentos, abraçados a memórias tão variadas quanto a brisa dos ventos, torna-nos viajantes de sonhos. Nas mãos transportamos uma espécie de voo de esperança.


Seria esse o legado que a minha mãe de África pretenderia oferecer-me antes de, um dia, termos ambas seguido adiante por outras jornadas e peregrinações.


Recordo a Amélia, que cuidou de mim ainda em flor. A bisneta de um verdadeiro viajante de sonhos que, na altura, já havia partido para outras dimensões deixando aqui ficar o brilho negro dos olhos profundos e o sorriso branco, gigante, do rosto de Amélia.


Sentada ao seu colo, e ao som de um sotaque tão característico, ouvia-lhe as muitas histórias que recordava do bisavô, quem ela dizia ter sido um velho ancião de forte e corajoso coração banto, sabedor de muitas verdades que só os espíritos mais iluminados têm a honra de possuir dentro de si.


Temos qui contá estórias porque a verdade, às vezes, dói muito!”, aconselhava.


E acrescentava que as histórias fazem nascer em nós uma outra humanidade que  nos transforma em pessoas mais felizes. Por isso, o bisavô ensinara-lhe que, quando descobrimos sonhos ao olharmos para uma noite estrelada sobre os planaltos, experimentamos a alegria da vida noutros reinos distantes.


Penso que o que o velho ancião, que agora desconfio ter sido, porventura, um valoroso xamã, terá ensinado a Amélia quando era ainda criança e que ela queria transmitir-me também, era essa sabedoria de que nos fala a natureza na sua relação com algo superior.


Apesar de muito pequena, sentia que as histórias dos sonhos da minha mãe de África, ou do bisavô dela, me tranquilizavam o espírito rebelde da minha primeira infância. Contava-mas, principalmente, depois de dar solução às minhas aventuras mais afoitas e desculpas disparatadas que a faziam arregalar os olhos e colocar a cabeça entre as mãos para, logo a seguir, as sacudir em gestos largos pelo ar: “Chiii minina! Bassopa… Ni ta kuba! Suca, suca… É maningue canganhiça aqui!!!”.


A seguir, ia buscar um pequeno tambor de madeira que guardava num velho armário e nele fazia ressoar ritmado batuque, enquanto entoava estranho cântico com o qual, imagino, pretendia enviar para longe abominados espíritos que me pudessem perturbar.


Outras vezes, garantia a minha presença junto dela enquanto as suas raízes xamânicas nos envolviam num perfumado banho de ervas com aroma adocicado, numa espécie de ritual de purificação.


Depois das histórias, invariavelmente, seguia-se o nosso ansiado passeio do dia. O olhar doce dela contemplava-me de alto a baixo e rematava sempre com orgulho, enquanto me prendia os cabelos soltos com o ganchinho em forma de flor: “Ya, xonguila! Podemos ir.”.


E íamos de mãos dadas. O corpo de Amélia ainda roliço, debaixo das capulanas coloridas e os cabelos já esbranquiçados escondidos por lenços estampados de várias cores, não lhe denunciavam a idade.


Por vezes, seguíamos a pé pelas avenidas enfeitadas de acácias que pareciam pender dos telhados do céu, ao encontro do pôr-do-sol e do ranger das tábuas de madeira, sob os pés e os corpos dançantes dos homens e mulheres, a libertarem o suor da alma e as vozes alegres ao som da marrabenta. Aqueles movimentos e sonoridades quentes, à luz do sol poente, enfeitiçavam-me o olhar de menina e ali me deixava encantar no sentir despreocupado de um infinito que me era ainda tão incompreensível.


Outras vezes, Amélia apertava-me a mão e fazia-me correr, às gargalhadas, para apanharmos o autocarro. “Anda minina, machimbombo foge, não espera, não!”, gritava, em tom estridente.


Viajávamos até ao bazar da cidade. Pelo caminho, guardo a sensação do calor húmido que me corria pelo rosto. No ar, o cheiro do caril acabado de cozinhar, do milho torrado, dos cajus assados e o aroma fresco das catembes, trazido pela distância das ruas onde as palmeiras faziam sombra.


Lá chegadas, ouvia a voz divertida da Amélia, “Hawena ntombi! I malè muni?”. E, por entre todo aquele ambiente tropical, nunca deixava de haver à minha espera o sabor inesquecível de uma manga ou papaia maduras, um sumarento e refrescante ananás ou maracujá, ou a textura macia dos abacates que faziam as minhas delícias.


Como um instante entre a terra e o céu. Assim é uma das mais bonitas formas, que encontro, de recordar as minhas origens…


Sou privilegiada por ter vivido os meus primeiros anos de vida ao lado de uma alma tão pura como a de Amélia, que soube, com a sua humilde sabedoria, tornar-me igualmente uma viajante de sonhos.


Nesses tempos, fugindo constantemente à desesperança e fúria dos homens, Amélia, a minha mãe de África para quem fui a única filha que teve, trouxe-me os ensinamentos do seu bisavô.


Um bisavô que não foi apenas um simples narrador de grandes histórias, mas terá sido também um poeta, um músico da vida que, na sua ancestral sapiência, descobrira, lera e resolvera alguns dos mais profundos enigmas do mundo.


Com ele, Amélia aprendera que não deveria existir distinção entre os homens e a natureza. Afinal, se somos uma parte de Deus, então os homens e a natureza abraçam em si o mesmo coração. E, por essa razão, todos os homens deveriam empenhar-se em falar uma língua da mesma cor.


Porque, “Quem mata os sonhos não é Deus, minina… são os homens.”.


Hoje, com uma emoção que não descubro em palavras e uma gratidão imensa por ter nascido naquele magnífico continente e te ter tido junto a mim, Amélia, quero dizer-te, seja qual for o ponto do firmamento em que te encontres neste exato minuto e seja qual for a matéria de que agora sejas feita:

Mamani, nitlanguelile! Kanimambo.


Mudam-se os tempos, permaneçam as vontades

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Enternece-me o modo brioso e garrido como o Sr. Domingos responde, sempre que alguém o questiona sobre a data do seu aniversário. Empertiga os ombros, afina a voz e profere, lacónico: “10 de junho. Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”. E o olhar envolve-se-lhe num silencioso e arrebicado sorriso.


O Sr. Domingos não foi marinheiro. Nem terá tido oportunidade sequer de ver o mar, muitas vezes, ao longo dos seus já extensos setenta e cinco anos de idade. Pouco foi o tempo que alongou vistas por outras paragens que não fosse a sua aldeia de onde, um dia, os filhos saíram em busca de outros destinos mais afortunados.


Os estudos foram escassos, os poucos que uma simples e modesta família de sete filhos lhe permitiram em tempos remotos, quando a pobreza se fazia casa num país encerrado entre quatro paredes. Mas sabe a história de Portugal na ponta da língua. E com grande confiança a recita aos netos, quase como se entoasse demorada cantiga à desgarrada.


Pois dessa história, o Sr. Domingos conhece o heroísmo e a afoiteza dos seus ancestrais que se aventuraram por mares nunca dantes navegados mais do que prometia a força humana.


Se nunca foi um navegador, sabe dos passos e dos triunfos desses heróis do mar que se fizeram a um mundo desconhecido, à descoberta do futuro, numa vontade constante de ir sempre mais além.


Povo viajante feito de garra e bravura extraordinárias onde cabia a gigantesca convicção no desconhecido e uma força inabalável de superação dos infortúnios e má sorte.


Talvez o Sr. Domingos desconfie, com boa pitada de vaidade, ser ele também herança deste património genético tão magnificamente assinalado pelo nosso prodigioso, aventureiro e apaixonado Camões. E por isso, na sua postura humildemente despretensiosa possamos perceber, porém, esse orgulho maior por ter nascido num dia 10 de junho.


Não foi por morar num Portugal interior, muitas vezes esquecido, que o Sr. Domingos permitiu deixar passar ao lado a sua história de um passado de expansão e aquisição de outros saberes. É este forte sentimento de pertença que tanto lhe admiro, apesar do bastante que lhe falta materialmente, fruto das asperezas e intempéries da vida num canto de Portugal votado à solidão e abandono dos que nunca partiram para contrariar os desígnios.


E sei que, se algum dia, tivesse que deixar para trás o seu pedaço de terra, guardador de muitas vivências, e a sua casinha construída a pulso com ardor e dedicação, seria como pedir à morte que o levasse para outro mundo. Porque é desta ânsia permanente de regresso ao seu porto que se faz o coração de cada português, qual mito de D. Sebastião, ainda que um sexto sentido lhes garanta que, por vezes, a volta possa não passar de uma ilusão.


Se reduzimos cada vez mais as nossas fronteiras e abrimos portas a uma sociedade multicultural onde se vão desenhando constantes e rápidas mudanças nos vários sistemas que lhe dão forma, continuamos ainda assim a descobrir-nos numa cultura amplamente genuína e pura que transporta em si o caráter tão forte da nossa lusitanidade.


Honrar o chão que pisamos e o barro de que somos moldados e cantar o presente, e também o passado e o futuro porque o presente é todo o passado e todo o futuro, como nos ditou Álvaro de Campos em “Ode Triunfal”. É isto o que, agora, podemos encontrar de mais digno no desejo de cada um.


Os nossos antecessores, numa árdua conquista de mais conhecimento, muito fizeram e contribuíram para nos abrir horizontes.


Hoje, em cada palavra dita, em cada centelha de comemoração por este dia que nos torna, de alguma forma, mais grandiosos enquanto povo, saibamos conferir sentido a todo o esforço levado a cabo por esses nossos antepassados.


Consigamos igualmente fazer uso dos ensinamentos de outrora para interpretar o futuro e corrigir o que possa estar mal. Com aquele sentimento que os portugueses tão bem guardam no peito ao longo dos caminhos do seu fado: a esperança e a fé.


Mudem-se os tempos… mas permaneça a vontade. 

Para que um dia, talvez amanhã...

REVISTA VICEJAR

Ouve meu pequeno menino de ouro

a canção que te deixo entre as mãos.

Um cristal de pergaminhos em notas soltas

que guardarás nas tuas memórias

com o cuidado que qualquer tesouro merece.

Um dia, talvez hoje,

vou olhar contigo a dança das nuvens

e a transparência límpida das marés

a deixar corais na areia que os teus pés descobrem,

com a surpresa da ternura que toda em ti me encanta.

Um dia, talvez hoje,

vamos correr juntos nas calçadas das ruas.

Quem sabe, atrás de pombas brancas ou de cavalos alados

nascidos pela pureza das tuas fantasias de pequeno grande herói.

E colher a serenidade dos frutos maduros com cheiro a verão

acabados de apanhar no fresco pomar da mais pura terra verde.

Um dia, talvez hoje,

vou ensinar-te a descoberta dos planetas de luzes fugazes

e dos firmamentos que os seres indomáveis percorrem.

A tocar a melodia dos sons que abraçam a terra,

a esculpir com as tuas impressões digitais

as teias da vida a acordar o teu sono de menino.

Um dia, talvez hoje,

vou mostrar-te o idioma de mil línguas que comandam o universo

e o poema dos momentos a dois

como a arte de ser mais além do tempo.

Porque por um momento, talvez amanhã,

sentirás a urgência de reinventar o avesso dos dias

sem desencantar a doçura de um olhar

tão cheio de esperanças e de pressas desbravadas.

E não te desconheçam as forças das causas sem leme

nem te desenganem os gestos que escravizam a alma e o corpo

e iludem as lembranças despovoadas de amor.

Porque só tu, na extensão do meu Ser

me ensinas assim a despedir-me de mim

para soletrar todos os mundos de que além serás feito.

A perceber que na exaustão das batalhas que em mim se venceram

ainda há encantos que o coração reconhece.

Meu pequeno menino de ouro…

… Que as asas da tua liberdade

sejam um dia maiores do que o vento e o egoísmo dos homens.


Se tu soubesses, Lila!...

REVISTA VICEJAR

“… às vezes, a imaginação consegue mudar tudo…”

(Carlos Lascano, no trailer de ‘Lila’)

 


Pelo avançar dos dias surgem-nos, por vezes, coincidências às quais podemos chamar, no mínimo, de curiosas. Ainda assim, gosto de pensar que serão, porventura, muito mais do que isso.


Foi, quem sabe, uma dessas coincidências aquela que me sucedeu quando, há tempos atrás, uma pessoa me falou numa bela estória de fantasia, enquanto me garantia que, se não a conhecesse, a iria apreciar bastante. “Porque nela te revi.”, disse-me.


E certa de que quem isto afirmava me conhecia suficientemente bem para fazer tal constatação, foram poucos os minutos que demorei a descobrir do que se tratava.


Com os olhos postos no monitor do computador, a emoção ganhava terreno à medida que o coração se envolvia na ternura das imagens que visualizava. E as memórias faziam-se presentes, ao transportar-me para a minha infância e para a minha boneca de eleição e estimação que me ofereceram ainda criança, e à qual, assim que a vi e sem hesitação, dei o nome de Lila.


Lila cresceu ao meu lado, amiga de confissões e confidências. Com ela partilhei o jardim secreto dos meus sonhos, o meu desejo maior de transpor a realidade e, através de um simples desenho, transformar a vida numa aguarela. Porque, afinal, a imaginação é essa sensível arte de ser capaz de viver de mãos dadas com a própria arte.


Lila, a boneca em que me inspirei para escrever histórias de pessoas feitas de luzes e sombras delicadas, que dão esperança aos outros para avançar e brilhar no mundo e para o mundo.


E assim, o meu espanto aumentava à medida que descobria as estórias dessa outra “Lila”, naquela curta-metragem, de 2014, dirigida pelo produtor argentino Carlos Lascano, onde cruzamos os sentidos com uma rapariga que detém em si a capacidade de tornar o mundo um lugar mais especial. A enternecedora história de Lila, a menina que vê com os olhos da alma.


A simplicidade imaginativa e inocente de uma sonhadora que, através do desenho, transforma a tristeza em alegria com o desejo das mãos e do coração, em uníssono. Magia apenas ao alcance de quem consegue brindar a vida com fantásticas matizes coloridas e a certeza confiante de conseguir transpor o impossível.


A criatividade e a ilusão num mundo real. E a vida deixa de ser apenas num mundo para passarem a ser mundos de vida. Os mundos de vida de Lila que, com o silêncio agasalhado no olhar, namora a pureza das próprias quimeras e cuja felicidade lhe nasce da linguagem interior, revelada no dom de semear o perfume dos seus sentimentos mais nobres.


Lila segue, meiga, entre a última estrela da noite e a primeira respiração do entardecer, a colorir a alma dos que a rodeiam, com o encanto do feitiço na pontinha dos dedos. Desse modo se vai compreendendo também a si mesma na emergência dos afetos.


Um olhar sobre os gestos mais simples da vida e talvez todos fossemos capazes de algum dia, tal como Lila, ser fazedores de histórias. Das extraordinárias histórias que guardamos dentro de nós, a esperar um sopro que lhes dê vida. Porque, acredito, é da vontade e das aspirações que o coração do universo ganha outra dimensão.


A minha Lila viveu até há uns poucos anos atrás. Mas também teve que partir, como partem todas as mais bonitas conquistas que nos iluminam a vida. O mais incrível é que, dentro do seu vestidinho azul salpicado de pequeninas flores, tinha igualmente o mesmo rosto alvo, os mesmos olhos verdes e os mesmos cabelos louros da Lila de Lascano. Uma boneca com semblante de menina.


Em ti, Lila, encontrei a pureza que tão só o enlevo dos devaneios compreende e contigo abracei a minha infância de doces e sentidas afeições que continuam, ainda hoje, a sorrir-me. Naquele dia, vieste recordar-me a beleza dessa memória.

Quando as palavras fogem...

REVISTA VICEJAR

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E o coração está seco.

(…)

 


Revia, há dias, o poema Os Ombros Suportam o Mundo, do inesquecível Drummond de Andrade, escrito no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial. Leitura interiorizada e começo a compreender, talvez, as emoções que têm vindo a assaltar-me o espírito nos últimos tempos. A fuga ao que faz ruído avassalador, a solidão presa no tempo, a ânsia superior de silêncio e de uma paz luminosa sem cores que possam ferir.


Porque o tempo de Drummond é um tempo presente.


O leitor não precisa de viver o momento do poeta para sentir a profundidade atemporal dos seus poemas. Cada pedaço de um passado é sempre presente dentro de quem sente o que lê; cada letra desenhada no pensamento, uma lição antecipada do futuro. Afinal, a vida é um ciclo e nós, em cada instante, a sua fala renovada.


Desumanamente continuamos a aprender a sobreviver a imprevistas mudanças mundiais e estupidamente premeditadas. Permanentemente nos confrontamos com a vulnerabilidade da vida, com a inevitabilidade da morte. O ódio invade todos os nobres gestos mais comuns e cada dia é um mérito à capacidade de reaprender a viver.


Tenho-me perguntado, vezes sem conta, onde cabe o coração de um poeta no meio do vendaval, da atrocidade, da lama e da destruição? Parece ser claro que é, tantas vezes, por entre o caos que a poesia dispersa todas as certezas da sua voz.


Mas a capacidade de criar começa a ficar comprometida face a uma violenta paisagem tão destituída de cor. Como conjugar o sentimento com a insensibilidade nascente que suporta a dor tamanha do sofrimento? Onde encontrar os paliativos para uma dor que os olhos obrigam o coração a ver e um quase ódio começa a emergir da impotência de pouco poder fazer?


Teria razão Pessoa, na sua Autopsicografia, quando dizia que um poeta é esse fingidor que chega a fingir a dor que deveras sente?


A alma de um poeta e essa contradição que lhe mora dentro do peito, de um coração que nunca para, mas cujo salto constante para fora o deixa exausto e desarmado. Sequiosa de impulsos num caminhar pelo tempo, agitada, sobressaltada, a alma de um poeta recheada de ecos e um coração que, por vezes, apenas ambiciona a leveza da pausa para se encontrar com o seu próprio olhar, com o seu próprio reflexo.


Sabiamente desconfiava Drummond que “todo o ser humano é um estranho ímpar”.


Hoje, porventura possa cair num sono lento e dentro dele sonhar que, entre luz e sombras, às cegas na perceção que tem de si mesmo, um poeta floresce sempre com renovado perfume no seu entendimento próprio do mundo. E feliz na ousadia de despontar sobre o tudo ou sobre o vazio do nada, onde despe o seu ventre quente de emoções. Afinal, é no fundo do seu silêncio que todas as palavras lhe nascem.


A verdade é que a curiosidade natural recai sobre o desnudar de um corpo. Mas a verdadeira beleza desprende-se na audácia de mostrar a alma nua aos olhos do mundo.


E se a poesia se degusta pelos sentidos e não pela razão, verso onde a realidade é pensamento tornado sentimento, com esse dom de aproximar corpos e preencher vazios, talvez por um minuto, talvez agora, talvez hoje apenas, aconchegado no leito de quem nele se revê, resta ao poeta, na sua desordem, a resposta à questão que grita por entre as sensações silenciadas: “posso fugir das minhas palavras para o teu abraço”?

Há muito, muito tempo...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Foi há muito, muito tempo, na ternura desprendida da infância, quando o horizonte nos parece ainda tão grandioso mas, ao nosso lado, sentimos aquelas mãos maiores do que o mundo a guardar-nos de todos os medos.


Tardes de chuva em que não havia muito o que fazer e eu ficava sentada no sofá da salinha pequena, de carpete verde, escura, e um gira-discos muito antigo, daqueles que já nem nesse tempo se viam mais em lado algum. Tinha mão de mestre e um som preciso que saía, claro e límpido, a invadir com permissão o cantinho aconchegante desse espaço sagrado. Um tempo feito de cada instante demorado onde eu, de olhos postos no vidro da janela, apreciava o escorrer lento das enormes gotas de água doce.


Aquelas tardes todas inteiras de sábado, só para mim, a ouvir os velhos discos de vinil do meu pai.


As minhas pequenas mãos de menina acolhiam com suave calma, para não estragar a beleza do tesouro, as capas espalhadas no chão, enquanto os olhos decifravam os enigmas por trás das imagens brilhantes. Figuras sedutoras para a fantasia de quem gostava de imaginar as histórias por trás de cada uma.


Admirava o d’A Mulher do Chapéu Verde. Assim dei o nome ao disco da famosa grande orquestra de Paul Mauriat, que mostrava na capa o rosto de uma linda jovem com brincos e um enorme chapéu de palha verde na cabeça. “Un Jour un Enfant”, era o título.


Depois, o desejo de continuar a escutar, passava para o d’A Mulher das Sandálias. Tão bonita, pensava a minha inocência, aquela menina da fotografia, de cabelos compridos com um vestido branco e sandálias de enormes saltos, sentada sobre uma velha mesa de madeira. E os meus ouvidos iam apreciando, com agradável encanto, Pop Corn, If I Were a Rich Man e Um Canto a Galicia, pela mestria condutora de Shegundo Galarza, nos seus “Êxitos Para Dançar”.


Puxavam-me ainda a sensibilidade “Os Bairros Pobres da Cidade”, de Nelson Ned e outros temas tão distantes e tão diferentes entre si, como a “Paloma Blanca”, que me soava a uma certeza inabalável de paz e amor, ou “O Professor de Violino”, a deixar-me sempre, sem que soubesse a razão, uma pequenina lágrima no cantinho dos olhos.


Hoje, quando o vento traz às madrugadas a chuva que desce solta pelos beirais, nascem-me caras saudades daquela infância musical tão cheia dos carinhos e abraços do meu pai. Ele, tantas vezes sentado ao meu lado no sofá da salinha pequena, a escutar a par comigo esses acordes onde redescobria as suas memórias mais doces.


Um pai que, tal como eu, falava pouco com a voz e muito mais com o olhar. Nele, as palavras vestiam-se dos silêncios que tão bem me revelavam a dimensão do seu amor por um filho.


E no meio de todo aquele ambiente adocicado e nostálgico de tardes que me confortavam o coração de criança, nunca esquecíamos, por fim, uma memorável canção. Uma que era especial porque era tão nossa: “20 Anos”, do José Cid.


A canção que, hoje, me traz a lembrança dos dias em que caminhávamos de mãos dadas quando o meu pai, sempre sereno, me acompanhava pelos caminhos bordados de primavera, em direção a nossa casa, depois de um dia de escola. A canção que me recorda o baloiço que o pai, de afável riso no rosto, empurrava e sentada nele a menina de tranças, feliz, brincava como quem corria atrás de uma ilusão.


Juntos, em muitas outras tardes, pelo seguir da vida, cantámos tantas vezes a canção…


Passaram muito mais de vinte anos. E ele já não existe para me ver.


No entanto, imensos são os momentos que, em pensamento o contemplo, sorrindo, como quem se vê a um espelho pela manhã. São os seus traços e o seu modo tão único de sentir, a flor que me ofereceu e que desponta agora no meu coração.


O tempo que passou não volta, não. Mas sabes, pai? Pouco importa, pois recordar é viver.


E sim, foi há muito, muito tempo… Mas para nós ficou esta canção.

www.youtube.com/watch?v=ySZMehEPdUU 

(Vinte anos)

Um Sentimento Para Além da Vida

REVISTA VICEJAR

Recordas-te? Deverias recordar-te… Eu nunca me esqueci. Carreguei as memórias na alma para além da vida. Talvez para que a lembrança da dor fosse apagada, talvez para que, enfim, a paz pudesse ajustar-se ao coração. Talvez para acreditar num outro caminho que não tivemos oportunidade de viver e que me traga de volta à criança livre e pura que cheguei a ser, antes de partires. Talvez ainda para te mostrar que continuarei sempre aqui.


Vejo uma estrada de terra batida a prolongar-se até à curva da encosta e que começa a descer num declive que, entre tantos outros caminhos, conduz à colina que é janela para o mar. Aquele mar imenso onde naquela madrugada te vi partir sem que o soubesses. Para sempre. Porque não tiveste coragem para te despedires. Não tiveste coragem de me olhar nos olhos e dizer que terias que ir, que chegara o momento inesperado e nunca desejado de servir outro mundo maior, outras conquistas tão diferentes daquelas que me ensinaste com a pureza dos teus gestos e o brilho da alma que te tornava tão especial.


Partiste com o peso da culpa, maior do que o teu próprio peso. Ainda sinto a dor imensa que se me afundou pelo coração dentro e o negro infinito de um futuro ausente de ti. A dor da separação abrupta. Assim te pareceu mais fácil para mim. Assim, sem lágrimas. O coração que não vê também não dói. E, no entanto, sabias como estavas enganado. Porque a dor acompanha-te até hoje e só a imagem da minha presença te sossega o espírito, te acalma os momentos difíceis. Foi desse modo que procuraste a força nos dias escuros que viveste depois. Acompanhado com a minha imagem e a confiança de que, quem sabe, no futuro o teu regresso viesse pedir o meu perdão.


E ali estava eu, debruçada sobre o vazio e o olhar na vaga distância que se perdia no horizonte, a questionar-me na minha cabecinha de criança sobre o porquê. Por que é que o Deus que me ensinaste a amar através dos seres, da natureza que tocavas com as mãos e a alma, te tinha agora levado até sempre? Sinto ainda a aspereza das lágrimas silenciosas a descerem-me sobre o rosto. O silêncio interior, a dor cruel da solidão.


Lembraste da nossa casa? Do lado direito da estrada a caminho da colina, a casa de pedra, amarela, os canteiros onde a mãe depositava todo o seu carinho, as árvores do lado esquerdo da parede debaixo das quais, por vezes, nos sentávamos a rir enquanto apontavas para o céu e dizias que era a obra-prima de Deus. E abraçavas-me com todo o calor. Sentia-te a minha rocha, a proteção de todos os males.


Do outro lado da estrada, uma vedação e para lá dela um bosque. Um bosque frondoso com caminhos que se redescobriam a cada momento perante os nossos olhos. Percorremo-los tantas vezes e de todas elas encontrávamos sempre um segredo oculto. De cada vez, obrigavas a que a minha atenção recaísse sobre um pormenor novo, como um renascimento da natureza a cada visão.


Tinhas essa magia dentro de ti e sabias transmiti-la como ninguém. Foi contigo que aprendi a amar as árvores, as folhas, o brilho do sol, o som das águas, todos os seres. Ainda guardo tão nitidamente aquela imagem: uma flor entre o verde, tu quase em silêncio, a apontar-me uma borboleta com as asas a tremerem levemente. E murmuraste: “Repara como é linda e majestosa, podia ser criança na sua simplicidade e inocência, rainha na sua beleza e deusa na sua força de ascensão pelos ares!”.


Ensinavas-me cada segredo da vida que guardavas no coração como um tesouro encantado. E tudo eu absorvia como se adivinhasse que seria a tua herança no dia em que partisses. E via em ti o herói, o protetor dos caminhos que atravessaria.


Muitas noites, saíamos de casa às escondidas e levavas-me pela mão por entre esses caminhos dos bosques. Ensinavas-me o brilho da lua entre as copas das árvores e das nuvens mais escuras. Dizias-me que a natureza à noite também é perfeita e sábia e que os seus mistérios mais ocultos são revelados nessas horas. Eu não sentia medo.


Recordo-me do teu rosto sereno, cabelos e olhos negros. Recordo-me do meu rosto tranquilo ao teu lado. A sorrir em volta dos meus tão curtos anos de vida, mas com tanto já no interior de mim: o teu legado. Recordo-me do teu abraço apertado e do teu sorriso enquanto pronunciavas “és a minha pequenina, estarei sempre aqui, sempre que precisares e jamais deixarei que algum mal te aconteça”. A promessa que nunca pudeste cumprir. Que ainda hoje não consegues cumprir.


Tudo o que aconteceu após a tua partida se me apagou do pensamento, exceto a dor. Não tivemos oportunidade de nos despedirmos desta caminhada. Talvez um dia seja o reencontro. O nosso. E o teu.


Sabes? Às vezes, a incerteza também é sinónimo de esperança.

Um Amor Assim...

REVISTA VICEJAR

É possível um amor assim?


Nunca se tinham conhecido e conheciam-se há muitos anos.


Nunca se tinham tocado e todos os toques eram para eles respiração.


Seria possível um amor assim?


Dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano… pela vida.


Nesse dia recordaram o primeiro momento como se fosse o último. Olhos nos olhos. Olhos na pele. Olhos no silêncio.


Ele menino. Ela menina. Olharam-se pela primeira vez e o coração falou.


Ele estendeu-lhe o carrinho de brincar, ela sorriu e o olhar agradeceu. “Queres ser minha namorada?”. E a pergunta ficou.


Todos os dias se encontraram naquele jardim.


O carrinho passou a flor, a flor despertou o encanto e o encanto vestiu o canto esquerdo do peito e fez-se som.


Todos os dias se sentaram naquele banco do jardim, onde o primeiro dia tinha nascido com um “sim”.


Um dia o olhar dele perguntou, “Posso tocar na tua mão?”. Ela sorriu e a pergunta ficou.


E pela viagem dos anos continuou.


Um dia ele não sorriu. O olhar dela sentiu. Souberam da despedida.


Seria possível um amor assim?


Ele tocou no rosto dela e, no último dia, descobriu que ela era como ele sempre a tinha imaginado.


Ela tocou nos lábios dele e descobriu que ele era como ela sempre o tinha sonhado.


Duas lágrimas, então… O coração de ambos nunca os tinha enganado.

 

E a vida parou.


“Queres seguir viagem ao meu lado?” E ela… não negou.

 

O amor entre um homem cego e uma mulher surda, descobre-se pela voz do coração. Para ser entendida, a linguagem dos sentimentos basta-se no silêncio de si própria.

Sim, é possível um amor assim…

Novo Ano, Tempo de Ser

REVISTA VICEJAR

Há encontros que são urgentes e que, pela sua emergência, se tornam inadiáveis.

Por isso, num tempo que se faz novo, é tempo de reinventar o tempo e construir uma nova linguagem da vida. Um universo a moldar-se pelo inverso.

Um edificar de outros versos capazes de versar um diferente sentir, num silêncio que nos desafie o sentido maior de nos vermos crescer.

Porque apenas quem se descobre no silêncio abre a porta ao que lhe fala de si, do que é e do que pode ser.

Não um qualquer ser, mas um ser que se encontra consigo próprio, nessa forma que lhe é tão própria de se redescobrir.

É na pausa da música que as falas se entendem, quando falar só se concretiza por um modo único de calar.

Não esqueçamos que o futuro começa sempre em cada hoje pronto a viver. E em cada noite em nós, poderá existir ainda a esperança dos dias nos sorrirem mais próximo.

Somos artesãos permanentes de uma obra inacabada.

Por isso, num tempo que se faz novo, é tempo de reinventar o tempo pelo silêncio que, ruidosamente habilidoso, nos possa desconstruir a solidão com a força de um abraço dentro do olhar, a tocar como se fossem mãos.

E o coração livre, capaz de voar sobre o fio da coragem, numa espera de novos dias com asas.

Então, por fim, talvez possamos voltar a pousar, serenos, na luz desse alguém que nos reacenda a pele.

Os Olhos de Deus

REVISTA VICEJAR

Mudara havia pouco tempo para a pequena cidade. Tinha sonhos que só o sonho alcança. Queria ver novos mundos, descobrir novos rostos e abarcar em si saberes e muitas, muitas recordações. Era jovem e a juventude é sempre o apelo maior ao desejo de liberdade e grandes aventuras. Por isso estudara para ser alguém, sempre crente da sua força de acumular vitórias. Só o conhecimento nos torna grandes, confessava a si mesma nos dias em que o sorriso parecia querer fugir-lhe. Para poder acreditar sempre e mais uma vez. Agora, finalmente, sentia-se grande. Até o “Dra.” era já título, como laço a enfeitar o nome. Aprendera muitas lições de cor para o conseguir agarrar.

A vaidade é um sentimento curioso. É exatamente do tamanho daquilo que a vida nos ensina.

Era dezembro. O frio enregelava a pele e fazia correr para o aconchego da lareira acesa, onde as paredes cantam a música com essa cor dos afetos que chamamos de lar. Paragem rápida na padaria que ficava no percurso e uma corrida para escapar à chuva miudinha, de um princípio de noite que começara a chorar. Ao sair, novamente os pés em sintonia a caminho do carro estacionado uns metros à frente.

Mas eis que o olhar pousa súbito sobre o escuro, debilmente alumiado debaixo da ponte próxima. Um contentor de metal com afável lume a arder, a pintar sombras num rosto solitário. O pobre homem sopra brandamente as mãos e esfrega-as uma na outra, como se, assim, as pudesse aquecer mais do que o próprio fogo.

Pela noite dentro, essa imagem de solidão ficou-lhe presa na alma. Vários foram os finais de dia em que voltou àquela padaria. Já não era o aroma do pão quente que a demorava no trajeto de regresso a casa. Agora ficava uns minutos dentro do carro, protegida do frio, a olhar o outro lado da rua. Aquele outro lado do seu mundo. A ganhar coragem.

Recordava as palavras de um amigo a garantir-lhe, certa vez, que a miséria assusta mais do que a maldade. Porque a maldade tem olhos que encantam e tem voz que seduz, dissera-lhe ele. A maldade tem força, a miséria não, basta-se a si mesma no seu vazio e desalento. A miséria não assume outra forma que não seja ela própria. E o susto antecipado de um medo em nós, muito antigo, bem escondido. Por isso lhe fugimos de cada vez que o olhar se confronta com ela.

Mas também alguém lhe dissera que se existem mundos que nos separam, haverá sempre presente um coração que nos une. Porventura a razão pela qual, nessa noite ainda mais gelada de dezembro, quando a chuva miudinha ameaçava voltar a cair, os passos não correram para o carro estacionado. Em vez disso, atravessou a estrada e parou debaixo da ponte. A hesitação a abrandar-lhe o respirar…

A voz do rosto solitário fez-se, de repente, ouvir, sem que dele se levantassem os olhos escondidos pela névoa do crepitar do lume no velho contentor.

- Aproxime-se menina. Não lhe faço mal!

E continuou, sonora e firme:

- Sei que há já uns dias me observa do outro lado da rua. Vou dizer-lhe uma coisa: a vida é como o amor, sente falta de um olhar onde possa agasalhar-se. Quando apenas existe silêncio, todas as portas se trancam dentro de nós. Por isso, seja bem-vinda ao meu lar. Como pode ver, as minhas portas estão sempre abertas. Está uma noite fria! Posso oferecer-lhe um pouco da minha lareira?

O coração pareceu parar de bater-lhe dentro do peito, face a tão humilde convite. E a intuição avisou-a que seria ela, a “Dra.”, grande de conhecimentos, que mais uma vez iria aprender a lição. Desta vez, uma lição bem diferente.

Estendeu as mãos sobre aquele confortável quente capaz de fazer esquecer todas as dores do tempo. Procurou perceber o olhar do homem que lhe oferecia, assim, na mais íntima emoção, singela hospitalidade para festejar o contentamento da chegada dela. Só então, com pasmo e sobressalto interior, percebeu que ele era cego.

E, de novo, como quem murmura um segredo, o sorriso dele mostrou que lhe entendera o espanto e a surpresa.

- Sabe menina, não tenha pena. Perder tudo na vida significa que também se perde o medo. Afinal, quando estamos nus de alma e corpo inteiro, nada mais há a ser roubado. E depois, existem lembranças que preferimos manter escondidas dentro de nós, lembranças que preferimos não voltar a conhecer-lhes o rosto.

Nesse momento, ela conseguiu perceber o significado da afirmação que um dia lera na passagem rápida por um qualquer livro, sobre a existência de chãos que, de tão férteis que são, erva daninha nenhuma neles consegue fazer morada. Talvez essa fecunda terra invisível seja a força, em comunhão com uma doçura inabalável, que nascem de longa e sofrida viagem às entranhas da vida. E a capacidade única de ali permanecer. Como descobriu neste homem de rosto solitário.

Afinal, o coração também é algo curioso. Cabe na palma da nossa mão, mas dentro do seu tamanho, está exatamente tudo aquilo de que precisamos.

Antes de partir, questionara-o como conseguia compreender tanto sem conseguir ver nada. Ele apenas respondera com um rasgado e sincero sorriso na boca, gasta pelo tempo:

- Não são necessários olhos para sentir. E para ver… não preciso deles. Tenho os olhos de Deus.

Nessa noite, antes de regressar ao interior, agora consideravelmente frio, da sua casa, ela deixara ficar nas mãos daquele homem o saco do pão morno que comprara na padaria. Consigo, trouxera uma lição com sabor perpétuo: há pessoas assim, não precisam de olhos para ver o infinito.

"Nunca te vi a alma nua... mas sei dos teus sonhos"

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Sim, assim de repente, estranho título para uma crónica. Principalmente se vos contar que ele é o resultado da necessidade urgente que hoje senti, de escrever sobre o valor da empatia.


Talvez um pouco a propósito do nosso São Martinho, o jovem que um dia se tornou bispo de Tours, em França, e fundou o mosteiro de Marmoutier, na margem do rio Loire. Aquele que, segundo nos conta a lenda, quando num dia de inverno frio e chuvoso seguia pela estrada montado a cavalo, distribuiu o seu manto por dois pedintes a tremerem de frio com quem se cruzou e, então depois, desprotegido mas sem embaraço, seguiu viagem.


E o que é a empatia? (a saber, nome que só pela rima se cruza com a amável ‘simpatia’). Diz o dicionário que é uma ‘forma de identificação intelectual ou afetiva de um sujeito com uma pessoa, uma ideia ou uma coisa’. Diz-nos a psicologia que a empatia é a nossa identificação emocional com o ‘eu’ do outro. Em ambos os significados destaco a palavra ‘identificação’.


E porque o acaso nem sempre seja obra do acaso, deparo-me eu, ontem mesmo, paredes meias com um hospital, com lamentável cena que me entristeceu: homem de uma quanta idade, aspeto humilde, quase parente desta pobreza (in)visível que nos vai rondando. Ali estava, sentado numa cadeira de rodas, à beira da estrada movimentada, numa súplica surda para que o ajudassem a subir o passeio que lhe daria acesso a nova descida para a passadeira. Uma tentativa frustrada para alcançar o outro lado.


À minha frente, duas mulheres em passo acelerado, fruto do tempo em que tanto se acredita que se pode chegar a algum lado mais rápido do que o próprio tempo. A mais jovem a adiantar-se. Mas a adiantar-se para seguir o caminho dela, após ter olhado a interpelação do primeiro, do alto do seu pequenino mundo. E se tão bem olhou, melhor avançou. A segunda, ainda que lhe suspeitasse um momento de hesitação, sempre acudiu. Movimentos rápidos e rosto mudo, que se faz tarde, e o “passageiro” chegou célere ao destino pretendido.


Como nesta curiosa nova era em que vivemos, parece andar aí pelas bocas do mundo, aceso vírus denominado de ‘Amor’, vou-me perguntando algo desconfiada, onde anda metido que tão poucas vezes com ele me tenho cruzado. É que, de há uns anos a esta parte, muito se tem ouvido falar em amor. A ponto de já me soar a prece recitada de cor, ao jeito dos aprendizes a conjugarem os verbos: “eu amo, tu amas, ele ama, nós amamos…”.


Mas e esse amor? Onde mora, afinal? Porque também nunca, como na atual era em que vivemos (e posso dizer que este meu quase meio século de vida já me permitiu ir constatando alguma coisa), tal proclamado ‘Amor’ terá andado tão escondido das ruas da doçura.


Estou em crer que o indivíduo entra no corpo de cada um, mas tem dificuldade em sair. Põe-se a namorar à janela com o próprio umbigo, enquanto vai debitando prolixas palavras de encantamento e grandiosas lições de moral aos que passam e lhe sorriem, com o intuito de ser aplaudido… e muito amado. Mas se o convidam a fazer uma visita pela avenida dos necessitados, olha para o lado, a assobiar, em modo de quem não vê porque não é de cá e só estava de passagem.


A empatia, caro ‘Amor’, é como disse acima: identificação. E esta implica ação (boa ação) quando é chamada a sair de casa e a fazer-se ao caminho. Ao caminho da vida real. Sem ficções, sem festivais com foguetes e fogos de artifício, sem espalhafato, sem teatro, sem propaganda (da enganosa).


Porque em ti, caro ‘Amor’, o teu amor não pode ser somente palavra repetida até à saturação. Palavra banalizada. Palavra vazia. A tua empatia, ‘Amor’, tem que ser gesto e corpo presente. Querer estar. Querer saber. Procurar. Dar a cara, se tiver que ser.


Porque tu, caro ‘Amor’, deves fazer-te de sentimentos. Ter a maestria do toque, dos olhos que vão ao fundo da verdade. Deves fazer-te de respeito. Deves fazer-te de tantos adjetivos, mas sem pretensiosos objetivos. Mais do que confiança, deves vestir-te de autoconfiança. Senão, não és amor, mas apenas a falta gigantesca dele, à procura de ti próprio.


E nem precisas de saber fazer bem as contas porque tu, ‘Amor’, não existes por nem pela quantidade de gente que te rodeia. E, curiosamente, só quando consegues, efetivamente, dividir-te por muitos, passas a ser ímpar.


É mesmo aí, nesse exato ponto, que percebes que não precisas de ver a alma nua dos outros, para saberes dos seus sonhos. E descobres o que é a empatia.


Ficas a saber, ‘Amor’, que se para tantos a vida é uma fantástica e imaginativa história de amor feita de verborreia, para outros quantos, felizmente, ainda será uma obra construída com alicerces. Por isso, deixo-te uma sugestão: não faças de ti apenas uma lenda, como a de São Martinho. Afinal, ele existiu e reza a história… que soube amar.


As Cores do Silêncio

REVISTA VICEJAR

Descobri o Paulo Cesar Paschoalini há uns tempos atrás. E digo descobri porque, de facto, nunca o conheci. Nunca nos vimos, melhor dizendo, para definir a conotação mais leve da palavra “conhecer”, pois que o conhecimento de alguém só é suscetível de se concretizar pela via da convivência ou, talvez, pela veia sensível do poeta. E se, por um lado, com a distância física de um oceano a separar-nos, o espaço permanece desde logo fora de questão, por outro, nem eu nem o Paulo Cesar nos definimos propriamente como poetas. Como ele próprio o diz, “sou apenas um sujeito que se deixa dominar por um determinado número de palavras”. E com ele concordo no que a mim me diz respeito.

Mas o certo é que, por vezes, nos basta apenas o descobrir, para compreender que pelos quatro cantos do mundo existem pessoas que, como as flores deste não-poeta, “ganham mais vida depois de admiradas pelos nossos olhos”. É que, pela proximidade que fui encontrando através das suas palavras, percebi neste ‘amigo virtual’ a mesma apetência por tudo aquilo que é o essencial da vida. A mesma leveza com que capta nos pequenos detalhes do quotidiano, o belo e mágico das entrelinhas que nos circundam, mas também as feridas e os absurdos dos tempos que nos esmagam a fé. Terá sido, porventura, pela concordância da rima neste sentir dos cenários do mundo e de um olhar de entusiasmo sempre novo de quem, em cada instante, renasce para a vida, que um dia o desafiei a contar(-me)-nos o que entenderia ele como sendo “As Cores do Silêncio”.

Acredito que o Paulo Cesar possa considerar ainda não ter tido a disponibilidade desejada para dar voz à proposta. Mas, eventualmente, não saiba que acabaria por fazê-lo recentemente.

 “Olhando essa linda fotografia, acabei escrevendo isso:

As aves pairavam na luz,

realçando os tons do arrebol.

O bailado dourado seduz,

feito escalas aladas do sol.”

Ali, a simplicidade breve e linda do seu comentário. Como se fosse legenda a captar a essência daquele momento de contemplação por mim registado em fotografia (no areal de uma pequena praia de Portugal, cujo nome aqui não traduzirá o enlevo do local; nem sempre ‘beleza’ tem que rimar com ‘grandeza’). E nessas palavras o toque da emoção, fruto do olhar que conseguiu em partilha escutar tão bem, afinal, as cores do silêncio…

Por isso hoje, neste texto, expresso o meu apreço ao Paulo Cesar, dando continuação ao repto que eu mesma lhe havia, antes, feito. E, desta forma, continuo viagem a partir desses acordes de mar e céu banhados, aqui, pela luz do meu outono dourado por gaivotas. Nesse silêncio que, como ele tão bem aponta, é preciso “para escrever aquilo que se quer gritar ao mundo”.

São as cores do silêncio que encontramos quando temos vontade de envolver o coração no nosso próprio abraço. Nelas, o sol se faz manhã em cada tecla de luz que entra, de mansinho, pelas frestas da persiana caída do quarto, a seduzir-nos o olhar. E esse ouro das vidraças acorda, tranquilo, a combinar tão bem com as emoções do dia. Quando as paredes murmuram baixinho que só precisamos de um ninho para nos aconchegar. E, de repente, a pele se levanta nos gestos sem toque que nos sabem àquela melodia da canção que nos fascina.

São as cores do silêncio que escutamos quando a música é pronúncia sem palavra a (de)cifrar a quietude dos instantes que nos falam. Ou quando roubamos uma fatia da imensidão azul para oferecer ao mar. Ou ainda, com os dedos soltos, pegamos numa lágrima e com ela pintamos a areia fina da praia debaixo dos pés.

São as cores do silêncio que nos tocam ao sentirmos a brisa, disfarçada de pássaro, a conduzir-nos o pensamento a todas as distâncias possíveis. Quando ouvimos aquele poema que dissemos num repente, inspirado nas saudades longas dos afetos que, um dia, nos mataram os vazios da solidão. E neles, descobrimos o segredo doce dos abraços feitos de encontros a abrir-nos as portas para entrarmos, sem promessa de saída. Ou quando pedimos ao vento que nos cante as lembranças que agasalham a mágoa dos que vimos partir e, com a alma ferida em sofrimento, fazemos da oração um destino à nossa espera e entoamos a prece que os guia de volta a nós.

São as cores do silêncio que nos envolvem quando nos entregamos à paixão apenas por um dia e, sem querer, dela nos perdemos sem saber que, afinal, o amor existia. E, enquanto sereno cai o gelo do anoitecer, a cintilar no frio do corpo adormecido, a noite acontece com veste de estrela para nos aquecer o sono que nos povoa de inverno.

E, por vezes, tantas vezes, as cores do silêncio são as cores do tempo em que o tempo nos sorri. As cores de um tempo sem pressa em que pedimos ao tempo que volte para nos visitar. E os sentimentos, de mãos às avessas com a razão, nos transportam assim, com branda quietude, por um mergulho da alma a recordar as cores das nossas memórias.

Felizmente, Paulo Cesar, ambos acreditamos que…

Todas as coisas que existem,

mesmo as tidas como eternas,

mais dia, menos dia, passarão...

Contudo, as que forem ternas,

muito mais tempo ficarão!

Como as cores do silêncio.

Para Te Ver Sorrir

REVISTA VICEJAR

Dois homens olham pela mesma janela. Um vê a lama. 

O outro vê as estrelas!


Frederick Langbridge

 


O que faria ele para te ver sorrir?... Ele, que tinha o brilho da manhã no olhar e as estrelas da noite nos gestos serenos que encantam. O que faria ele?... Hoje não o saberás, mas sabe sempre que a história em algum lugar se repete.

Ele, o velho Isaach, o ‘filho da alegria’ como o pai o chamava e que na memória carregou as palavras deste: “a luz com que vês os outros, é a luz com que os outros te veem a ti”. Um provérbio africano, contaram-lhe. Para ele, a maior verdade com que caminhou pelos dias.

Acreditava sempre que um coração nunca carrega demasiadas dores quando nasce para fazer sorrir quem encontra pelo caminho. Isaach olhava, olhava com muita atenção a alma de cada irmão e descobria no sol que ali habitava, o mundo que a fazia sorrir. E, então, sorria também, porque só assim ele sabia ser feliz.

E feliz era agora, mesmo naquela cama de hospital, de um branco mal lavado, para onde as sombras da velhice o atiraram. Ah! Mas Isaach sorria ainda! Porque mesmo no meio da escuridão, há sempre uma razão para olhar o infinito com a sabedoria que a vida carrega nos ombros. É que Isaach não estava só. Com os seus sorrisos viajava Maurício, pequeno de estatura e olhos cor de avelã por cima da pele branca. Mais maldita seria a sua sorte, pensava com pena Isaach em cada dia que passava, pois que este seu ‘irmão’ nem da cama podia levantar-se. As dores no corpo moído eram demasiadas para o seu peso leve.

Assim Isaach lhe descobriu também a alma com a magia do seu coração. E em cada tarde de nuvens ou nesga de sol, aconchegava-se na ombreira da única janela do quarto e desfiava os seus sorrisos sob os ouvidos atentos de Maurício.

- Hoje, meu amigo, vejo ali fora no jardim, uma borboleta delicada que pousa sobre um vaso de margaridas amarelas. São irmãs das rosas brancas que moram no canteiro ao lado. – Cantarolava ele, saboreando o doce de cada palavra - Parece-me que lhes conta agora um segredo… Talvez se tenha apaixonado pelo gaio de dorso rosado que ontem pela tardinha por aqui voou.

E pela aurora seguinte, as paisagens do olhar desdobravam-se em continuadas ternuras cheias daquela vida lá fora:

- Esta manhã, meu irmão, o sol espreita mais feliz! No parque ali defronte, aquele pai caminha com o filho nos ombros e a mãe, de mãos dadas com o cestinho do lanche, é toda orgulho e vaidade dos seus amores! Como dançam os carinhos que os três partilham!

Isaach espreitava o companheiro deitado no seu leito, junto à parede, de olhos fechados e um sorriso gigante, a deleitar-se no som destas imagens que tanto o faziam sorrir também por dentro…

Mas a vida tem sempre o seu desfecho. E numa tarde amarga sem rosto, Isaach não conseguiu levantar-se da sua cama. Entre um respirar delirante e uma prece de súplica, os seus movimentos presos não lhe permitiram tocar no botão que apressasse os enfermeiros em seu auxílio. Sabemos amigos, que o homem ama mas também inveja. Foi nesse sentimento mais baixo que Maurício, em silêncio, deixou partir o companheiro para que veladamente o seu lugar pudesse ocupar e, dessa forma, poder sorrir também pelo seu próprio olhar.

Na manhã de primavera que se seguiu, cama ao lado desocupada, Maurício pediu a gentileza de ser colocado junto à nobre janela do quarto. E, ali, em esforço soberbo para decifrar o mundo que apenas vivera em imaginação, apoiou-se sobre a cabeceira da cama.

Assim, também ele viu o que Isaach, tão humanamente conseguira, só para o ver sorrir: do outro lado da janela… apenas um velho muro em ruínas.

Inspirado na curta-metragem estado-unidense, The Hospital Window (SpiritClips, 2012), de Alexander Soskin, escrita por Terry Brutocao e Robert Fried.

Isa Bel: Mundos de Sonhos

REVISTA VICEJAR

Isa Bel. Quando, um dia a conheci, senti de imediato que era daquelas pessoas capazes desse feito único de pousar o olhar nas estrelas. Penso que seria para as adivinhar. Porque soletrava o nome de cada uma, como se lhe fossem pertença do coração.

Perguntavam-lhe muitas vezes, porque perdia tempo a namorar com os sonhos. Respondia, com os olhos carregados de distâncias, que o tempo… Bem, o tempo serve para guardar vidas irrepetíveis. Por isso se perdia, assim, nele.

Vi-a, muitas vezes, presa nos timbres das sombras onde se permitia descansar das fadigas do espírito. Sabia que, por dentro, murmurava para si própria uma canção de embalar, cujas palavras só o silêncio tinha permissão para entender: “Os pássaros… é tão profundo o som naquele trinar a engrandecer o Ser de ser completo e inteiro!” E a tranquilidade era-lhe apenas isso, aquela música infinita num cair de tarde a aconchegar o horizonte. E um raio de sol que não lhe escondia o sussurro de um outono já a prometer-lhe a alma. O céu inteiro a olhá-la, oferecia-lhe esse instante com cheiro a lilases!

- Ainda sou livre de acreditar que a vida só vale a pena quando os sentidos saboreiam todos os detalhes de um único momento. – Declamava, baixinho, como se brincasse com as letras de um poema.

Sabia de cor todos os segredos da terra. Os muros e as cores, as árvores e os cheiros, a transparência da chuva e a exatidão dos insetos, a solidão das nuvens…

- Com eles, visto as roupas das minhas memórias no espaço exato de um momento. – Ouvia-a, certa vez, murmurar.

Desenhavam-se-lhe no rosto as palavras dos outros como uma brasa que queima por dentro. Às vezes mel. Às vezes fel. Se o mundo nos dói, não quer dizer que destrói… E seguia em frente. O mar dos braços num abraço a si mesma. É que Isa Bel tinha esse dom: a brisa do seu ser aquietava-se-lhe no calor de um simples toque, mesmo que ainda por inventar. Depois, livre, partia num baloiço à procura de todos os céus possíveis…

Diz que descobriu a esperança no dia em que levantou os olhos para sentir melhor o cheiro do vento. O instante em que ficou a saber que dentro dela, todas as almas podiam ser infinitas.

Por isso, foi ao senti-la silenciosa na lonjura daquela janela, que lhe perguntei:

- Então, qual o medo de sonhar quando se carrega, assim, a fé no olhar?...

Não me respondeu. Lentamente, limpou o canto das lágrimas.

Creio que todos os gestos guardam os segredos de uma vida.

A Promessa

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Em cada noite lenta de sombras e espetros vazios, ele regressava a esses lugares de onde nunca conseguira partir. Vagueava ao acaso pelo norte dos caminhos perdidos, pela cidade poluída caída em desuso, pela tristeza e pelos vazios das vielas sem rumo. E num voo noturno, construía-se humano disfarçado com asas de esperança.

Era apenas assim que acreditava merecer a vida.

Por entre a misteriosa ponte de nevoeiro e agarrado aos pincéis em bruto da alma, pincelava a fé escondida dos homens quando parecia não haver mais nada… Letras soltas de aromas e silêncio: assim ele sabia construírem-se as palavras onde cabem todos os mistérios da vida.

Era aí, abraçado à leveza de um branco alvo que acolhe, que se preparava para nos fazer renascer no azul distante dessa imensidão que desejamos próxima. E num rosa sorriso de afetos revelados, transbordava a essência do vermelho coração, absorvendo-nos no verde futuro de uma outra dimensão.

E assim explodia no brilho dourado que emanava, a gratidão serena daqueles que, entre todos, o aceitavam.

Souberam depois que, nesses dias, ele se demorava sempre no limiar da luz confundida entre a noite e o dia, ao encontro de uma madrugada sem tempo, a tornar única esta sua promessa sem opções.

Ficou conhecido na cidade e no mundo: o ‘Pintor de Emoções’.

As Histórias do Tio Jacinto - parte II

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

(Uma história passada num Alentejo bem distante no tempo! Como o Manel das Ovelhas, moçoilo bem apessoado, ganadeiro de ofício, deu provas da sua valentia e assim conheceu e se apaixonou pela Chica do Brejo.)

 

… Continuação

 


Assim foi que pelos dias d’alumiada, já depois da hora do maior calor e numa tarde de céu cavado, o Ti Chumiço foi direito ao filho com a seguinte ordenança:


- A ver se t’avias ó cagarilhas, qu’hoje há balharico.


- Quer o mê pai que eu vá dançar nestes trambelhos? Atão nã se dá conta das minhas aflições? Tou lá eu capaz de tamanha façanha?! – Inquiriu o Manel, de cara posta.


- Por isso mêmo. – O Ti Chumiço rematou a lamúria - Endreta-te e agarra nos quatro arrátes, que se faz tarde.


Contrariado, mas obediente ao pai, o Manel lá foi para o baile que corria junto ao campo da bola.


E estas são coisas que nem Deus adivinha, porque foi nesse dia que ele arranjou áspera confusão que lhe valeu uma reviravolta na sua vida, tão achegada a malquereres.


Acabado de plantar os pés no bailarico e logo o Manel deu de caras, ali num ajunto de pessoas, com a Chica do Brejo. A linda Chica, que morava lá para os lados da Serra da Guarita, ali bem à sua frente, toda ‘empapoilada’! Moça vistosa e de modos agradáveis. Aos rapazes até se lhe lavavam os olhos quando a viam nos bailes, tal era a sua boniteza. Grande pedaço de tempo ficou ele, de soslaio, a admirá-la.


Eis senão quando, batendo com os olhos no Justino Estarola, o Manel deu fé de uma deslavada cena. O mariola, muito senhor dos seus botões, alvorado em parvo, a mandar as suas patouchadas à Chica do Brejo. Ela corada, incomodada com tal afrontamento e audácia que o outro fingia não perceber, alheio da sua descompostura.


- Olha nã querem lá ver o garganêro com as suas dezidelas parvas? Às tantas nã sabe ler! Haveras de pensar que todo o mato é orégão, seu sarnoso? - Grunhiu o Manel ao Justino, de peito empertigado.


Ao que respondeu o outro, com ligeireza, por entre sonora gargalhada:


- Nã me querem ver este agora? Tal tá a cachamorra! Tá visto que se a inveja fosse ‘tinha’ toda a gente era careca.


O Manel ainda se encrespou mais…


- Tu põe-te fino, ó Estino… Dou-te um estrompasso nesse focinho c’a ficas com a fronha toda esbolemada e vais daqui de esgalharêta, farsolo!


- És manilha pr’a isso! - Provocou o Justino.


Juntou-se logo o povo, aos dois que ali faziam uma grande estouraria.


O Manel, espadaúdo, maltês como um alarve e mal tomado com a ousadia do confronto, não se fez rogado e pespegou-lhe duas briosas galhetas.


Tal não foi o brilharete feito que o Justino Estarola caiu de pantanas no chão. Esbandalhado e não tendo mais remissão, abalou a correr desembestado, com cara d’asno.


Riu o Manel, muito orgulhoso da sua valentia.


- Ora munto bem fêto, nã viesse meter o bodelho onde nã era chamado! Veio p’lo burro e voltou p’la albarda!


Mostrou-se a Chica do Brejo, a modes que assarapantada.


- Ai! Que até se me deu um escalafrio, Sr. Manele! Grande surraço me pregou!


- As minhas desculpas, menina Chica. É qu’eu, quando vi o Estino assim a faltar-lhe ó respêto, eu fiquei que n’em sequ’é uma bala me passava!!! Tinha que dar-le uma abênçoa no caçoiro! Mas havera mesmo era de lhe ter dado um enxugo. - Adiantou-se logo, embasocado, o Manel.


Ficaram depois calados sem ter o que dizer, mas com os olhos de esguelha um no outro.


O cair da tarde tinha esfriado e a Chica, aproveitando-se da coisa e encolhendo o xaile nos ombros, com muita graciosidade largou um espirrinho atrofiado:


- Jesus Marizéi, menina Chica! – Abençoou o Manel de imediato e logo aproveitou a deixa para a conversa - A menina, por certo nã s’enterou, mas hê-de dezer-lho eu: o Estino Estarola nã tem tacto nenhum, nasceu ralo, o coitado! Aquele alganaiso nem uns bornicos sabe estrapolar. E anda sempre por aí de ventas no ar c’as moças da aldeia. Além disso, nã é home com préstimo pr’o futuro. Nunca coalha vintém, aquilo é chapa batida chapa lembida.


- Ai Sr. Manele, que d’homes desses até tenho rescunho! Home qu’é home, pr’a mim, tem que ser de bravura e de boa cabeça e nã andar pr’aí com imposturices. Saiba o Sr. Manele que eu sou chita que nã debóta!


E aproximando-se do ouvido do Manel, rematou baixinho, num riso nervoso:


- E sabe doutra cousa que lhe conto? Também sou solta de pé e perna…


O Manel, tirando educadamente o chapéu da cabeça, avançou:


- Pois olhe menina Chica, eu cá sou lá de trás das estevas e nã tenho letras… Mas ouça o que lhe digo: vou brigar por si.


E a Chica, embosiada, muito corada…


- Ó Sr. Manele, veja lá não esteja pr’aí de mangação comigo… Ora agora é que vocemessê me partiu! O Sr. Manele diz que nã conhece letra do tamanho dum burro, mas odepois, mais parece um poeta!


E foi assim, pela hora do lusco-fusco, enquanto o Tónho Gaitinhas tocava a moda desses tempos que, sem dizer palavra e com muito jeito, o Manel das Ovelhas, pegou na mão da Chica do Brejo e os dois, nos olhos um do outro, tiveram aquela dança só para eles.


Agora sim, pensava o Ti Chumiço, seremoniando: “O mê Manele tá capaz doutra!”.

 

As Histórias do Tio Jacinto - parte I

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Recordava-se, muitas vezes, com satisfação e saudade daqueles dias do calor de verão com sabor a pão quentinho das terras alentejanas. Ou do aroma agradavelmente perfumado dos coentros da horta do tio Jacinto. Era ali, nas férias todos os anos ansiosamente esperadas, debaixo de um sol dourado a convidar sestas preguiçosas, que ele sonhava com as antigas histórias que o tio lhe contava, sempre com aquele mesmo entusiasmo de uma primeira vez.


Logo no primeiro dia em que ele chegava, pela tardinha, o tio Jacinto sentava-se debaixo de um belo chaparro - senhor dos tempos e de longas esperas - próximo de casa. Chamava-o para o acompanhar e convidava-o a sentar-se ao seu lado, sobre as ervas secas. E então, com uma voz grossa e bem audível, como convém a um bom contador de velhas histórias, começava a ler o livro de capa preta. Atrás deles, andava sempre o seu companheiro de brincadeiras desses dias, o cão Tobias. Esperto como só um cão sabe ser, deitava-se junto de ambos e olhava fixamente para o tio Jacinto, com as orelhas arrebitadas como a adivinhar-lhe as palavras. Por norma, acompanhava-os depois nas largas sestas e era sempre o primeiro a adormecer, alheio à voz do dono e das cigarras cantadeiras.


Ler, julgava ele que o tio estava a ler… pois que ainda não aprendera as primeiras letras! Mais tarde viria a descobrir que, afinal, podiam ser histórias verdadeiras, aquelas do tio Jacinto. Histórias que, por alguma razão, não quisesse confessar como suas, mas que lhe estavam na memória. E delas fazia uso para encantar o sobrinho antes da sesta almejada, ali mesmo debaixo do chaparro.


Ficava-se a olhar para as mãos do tio, a folhear lentamente as páginas do livro, à medida que a história avançava. Recordava-se de pensar que nunca tinha visto mãos tão grandes em ninguém e ficar a cismar, silencioso, se no inverno o tio encontraria luvas que lhe servissem para o aliviar do frio. Agora entendia que, muito provavelmente, o tio Jacinto seria homem habituado às agruras do tempo num Alentejo de portas abertas às visitas de verão, mas onde a pobreza brotava em solos secos e nas vidas difíceis de quem habitava aquela casa o ano inteiro. Certamente, nunca sentira precisão de luvas.


De todas as histórias que ouviu do tio quando era criança, uma lhe pediu muitas vezes para repetir. Porque era uma história muito antiga. E, principalmente, porque dava uma curiosa história de amor. Daqueles amores de outros tempos, com personagens e dizeres que ele achava já não existirem. Sempre gostara de histórias de amor! Como a do tio Jacinto, por exemplo. O tio Jacinto também tinha uma longa história de amor com a tia La Salete. Mas isso, já são outras histórias que, talvez um dia, ainda nos apresente.


Por agora, fiquemo-nos apenas pela famosa história que lhe permaneceu escrita na memória, tantas vezes a ouviu sentado com o tio Jacinto debaixo do velho chaparro, antes da sesta que ambos tão bem acolhiam.


Uma história passada num Alentejo bem distante no tempo! Como o Manel das Ovelhas, moçoilo bem apessoado, ganadeiro de ofício, deu provas da sua valentia e assim conheceu e se apaixonou pela Chica do Brejo. Ora, então, vamos lá…

 

“Tinham o Ti Chumiço e a D. Benigna, razões de sobra para se lhes enevoarem os dias. Os quatro filhos que lhes couberam em destino, não deviam muito ao Senhor pelas boas qualidades.


A Mia Zé Ladravona, já mulher feita, uma pingalhona, mandonga e grande arengueira.


Lala Tola, moça alvoraçada, espalaiada, de bico torcido e rabo alcarado. Toda ela era ‘espevitice’, com o seu ar inchado, sempre de beiços pintados, a mangar com as vaidades pobres da irmã.


Nasceu-lhes depois Nelinha, Lembrisca de alcunha, com a mania da esperteza, mas rala de inteligência. Criança aselha e desditosa por natureza. Já mocinha, passava a vida a cirandar naquele gosto de mandriar, a fazer do cu três bicos para mexer as pernas e o corpo todo que lhe pareciam presos ao chão. Com esta, era sempre tudo feito à faca e por cima da burra.


Ora, tinha a Mia Zé grande malícia à irmã do meio pois que, sabendo-se ela rapariga sem talho nem maravalho, julgava a outra armada em pessoa fina, certa de que lhe morava um rei na barriga. E com isso não podia. Sempre de má mente e intricante, Mia Zé não perdia oportunidade de atalicar a irmã. Punha-se, então, a Lala Tola numa gritaria: “acuda-me nha mãe, que a nha mana tem sarrêra comigo!


E assim andavam sempre as duas, a rastenhar como pardalas, com a raiva escondida, como quem olha os mares-de-leva.


À Nelinha, não lhe passavam despercebidas as querelas das irmãs e, sempre inteirada dos seus desacatos, escondia-se entre portas, a ver se as duas se pegavam. É que a páginas tantas, era mesmo um papelote vê-las naquela tourada desmedida. Logo saía da cozinha, onde a caçoula com a sopa fumegava no lume, a D. Benigna, aos berros:


-‘Alcará Maria’! Parece que têm o diabo no corpo! Raios m’a mim partam que nã sei que ganas me dão que daquém nada, alcanço um ramo de craquêja e chego-vos a roupa ô pelo! Prantem-se quétas, suas pespenêgas!


O Ti Chumiço intervinha de quando em vez, para acalmar a situação. É que isto de ter tanto mulherio à volta de um homem, não é tarefa com que seja fácil lidar.


- Ó diacho, mulher! Deixa lá as maganas e vai mas é arrepartir a ceia. Elas são estrafanáiras, mas são boas mocinhas!


- Lá tás tu sempre a detari água na fervura, filho! – Gritava a D. Benigna, ainda mais empestada. - Nã vês qu’elas são de má raça? Sempre c’as laimas em cima uma da outra?!


Pobre homem, o Ti Chumiço. Se dum lado lhe chovia, doutro lhe fazia vento. Valia-lhe o seu Manel, moço bem falante, de boa catadura e boa cabeça. Mas também de poucas sortes. Andava agora arredio por conta da ciumeira com a Laida, por quem tinha grande querença. Mas bem via que a rapariga não lhe deitava os olhos. Diziam à boca cheia pelos montes e vilarejos, que era amigada com o Sr. Justino Alves, doutor e de boas heranças, mas casado. O que, está bem de se ver, era escolha mal pensada da Adelaide, que se punha ainda mais nas bocas do povo. É que o passado também já não lhe era muito a favor, como a ver vamos…


Todos os dias, a caminho da lavoura, o Ti Chumiço ia primeiro à da sua comadre Gertrudes e lá com ela desabafava os seus rosários.


- Ai o mê Manele, Ti Estrudes, anda sempre ca crista tã pendida, pobre moço! Se nã anda mal achado, isto deve de ser por causa daquela esgróviada da filha do Ti Lúcio, que lh’ anda enfernizando a vida…. Atão na m’aparece agora em casa a modes que assergalhado, todos os serões? E noite adentro, eu e a nha Benigna, lá o ouvimos a gritar pelo gregório…


- Temos que lh’arranjar combalacho, é o que lhe digo, Ti Chumiço. – Respondia a comadre Gertrudes, a tomar as dores do afilhado.


O certo é que o caso estava bichoso e não dava esperança de melhoras.


A D. Benigna, que pouco jus fazia a nome tão cheio de delicadezas, era mulher de muito génio que não ia em corridas de ganso.


- Essa pindura da Laida nã tem sobernação nenhuma! Foi enganada por um figurão e teve um filho que foi fêto p’lamor Deus, fora a mãe dela qu’ era uma mulher séira. E o mocinho, coitado, sendo criado ôs pontapéje duns e doutros? Agora anda outra vez nessas lides! Essa é moça com um’aduela a menos, que apanhou o nosso Manele com’um lapardão!


E D. Benigna chegava-se à frente, pois tinha que dizer das suas razões: que punha as mãos no lume que aquilo eram coisas feitas pelas artes do mafarrico e que tinha que ir bailar as encruzilhadas. Ainda haveria de encontrar para o filho, mulher rijinha que fosse capaz de estragar meias-solas. A ela, ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha.


Ao Ti Chumiço, aquelas palavras assentavam-lhe mal e arreganhavam-se-lhe os dentes:


- E tu a dar-lhe e a burra a fugir! Cala-te pr’aí mulher, nã me faças azoinar com essa escagalhoada! Ainda arranjas lenha p’ra te quêmar.


- Fia-te lá na virja e nã corras. - Afiançava a D. Benigna, certa dos seus desvelos de mãe - Falar com o nosso Manele, aquilo agora é como quem lava a cabeça a um burro e o manda p’rô espojêro. Olha qu’é preciso orêlo, home! Ele há munta manêra de matar pulgas e essa Laida sabe munto bem em que mato faz a lenha! O nosso Manele é um moço bem cuidado, mas nengueim as veste que nã as borre. Se nã fores tu, hê-de eu tirar-lhe as ganfanas. Cuida do que te tou dizendo.


O Ti Chumiço mancou, por fim, a preocupação da mulher e conhecedor, em primeira mão, dos seus maus fígados, lá se lhe meteu na cabeça que haveria de arranjar solução para o caso.”

 

Continua …


A menina dá-me a honra desta dança?

REVISTA VICEJAR

Assim falou ele com os sapatos cinzentos de pó e os cabelos dormentes a estremecerem-lhe em desalinhos e nós.


E os olhos azuis… Aquele azul de céu que parece feliz!


A barba rara aqui e ali, a tocar-lhe a boca por baixo do nariz.


A flor amarela ao peito com aroma de amor-perfeito.


E ela toda vestida de novo, o cravo esquecido no cabelo, fugiu do calor a corar sem saber se dizia sim ou se o fazia esperar.


É que a boca falava que não. Mas os olhos azuis, os dele, já lhe faziam morada no coração.


A Rosa formosa, de jeito catita, lá aceitou a dança bonita daquele serão.


Tremia risonha e alegre com cautela no pôr do pé, não fosse o decote pequeno, resvalar rendido aos olhos do Zé.


Tinha estrelas o adro da igreja, branquinha, a brilharem-lhes nos sorrisos cor de fé!


E assim parece que as histórias de uma vida, um dia foram escritas mesmo antes do mundo ser criança.


Porque 50 anos depois daquelas palavras ditas, o Zé ainda murmura cheio de orgulho, aos ouvidos da Rosa:


A menina dá-me a honra desta dança?”.

Do Alto da Janela da Minha Memória

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Do alto da janela da minha memória vislumbro um olhar que abarca próximas recordações, tão languidamente quentes que adoçam o coração…


Um sol que adormecia a madrugada e vinha de mansinho. Espreitava a varanda ainda cheia de silêncios, a deixar a alma envolver-se, docemente, nos acordes cintilantes dos primeiros gorjeios dos pássaros encantados. Porque encantado era esse mundo pleno de sonatas e pasodobles que só a luz do paraíso interior de uma criança permite alcançar.


Do alto da janela da minha memória invade-me a fragrância fresca do café acabadinho de aconchegar na quietude da velha cafeteira de alumínio. E do ovo frito que a frigideira deixava repousar no calor de uma chama vestida de diáfanos azuis e dourados. Acordes de vozes a despontar lá longe nos campos, à velocidade cadente dos tratores que sulcavam a terra húmida do orvalho da noite. Sons cantantes que, num crescendo lento, desapareciam pela branca brisa da manhã. E depois… O momento antecipado à distância: a hora de saborear aquele pão quente e estaladiço que o padeiro deixara pendurado no antigo portão de metal, colorido de mil tons…


Assim eram também de mil tons os espantos que a natureza me oferecia aos assombrosos sentidos de pequeno ser. Rasgos anilados de um céu que parecia tão perto de tocar. Cor de esmeraldas as árvores que a montanha ao redor abrigava no seu êxtase protetor. Sombras de terra pálida, as altas espigas do centeio que os pés enlevados exploravam, num caminho imaginado para o mar, entre risos e gargalhadas que todos soltávamos ao vento.


E assim se percorriam livremente as certezas de um presente infinito, sem espaço nem hora, sem futuro nem tempo. Apenas o sentir dos momentos, dos lugares, daqueles de quem nunca nos despedimos porque estamos sempre certos de voltar.


Ficam as memórias do alto da janela da minha casa, com sabor a castanhas assadas na fogueira da cozinha velha, caiada do negro carvão. E da chaminé. A secular chaminé que recebia a primavera a beijar as rosas soltas no intocável canteiro do jardim. Do meu passado.


Como Alberto Caeiro, “da mais alta janela da minha casa, com um lenço branco digo adeus aos meus versos que partem para a humanidade”.

 

Era um bom homem, o seu António...

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Encostou-se ao beiral da janela a olhar lá para baixo, numa atitude de indiferença face ao infinito. O rosto, porém, revelador de vastos, profundos e secretos pensamentos a invadirem-lhe a alma.


Um dia normal, como todos os outros. O soar dos passos apressados dos transeuntes na calçada da avenida; o buzinar constante dos automobilistas enfadados de engarrafamentos e trânsitos bloqueados, sentidos proibidos espalhados em cada esquina, estacionamentos atolados e um ou outro polícia desorientado no meio da confusão, a soprar avidamente o seu apito; o vendedor de ‘banha da cobra’ a apregoar mais um novo (ou velho) produto milagroso no mercado. O eco longínquo dos comboios a passar lá longe, na estação dos caminhos de ferro, com passageiros silenciosos, perdidos na vaga distância de um tempo imparável.  

    

E ela ali, encostada à janela, qual estátua. O silêncio dentro de si.


Dera-lhe nesse dia para cismar em antigas “águas passadas que já não movem moinhos”. Expressão que a própria tinha o hábito de utilizar quando se dirigia à filha, sempre atrapalhada com os seus problemas existenciais.


A luz da última réstia de sol ainda lhe aveludava o olhar disperso no horizonte. Um brilho que já fora natural mas que há muito desaparecera. Quando? Nem ela mesma se lembrava, tantos os anos que haviam passado!


Estava sozinha em casa naquele final de tarde. Recebera um telefonema apressado da sua Alexandra, a informar que ia “jantar com o Raúl” (última conquista da filha, depois de um rol de lágrimas e deceções amorosas; uma dor que ela, tão pacientemente, no seu eterno papel de mãe que sofre em silêncio as desgraças da família, procurava sempre suavizar com palavras meigas e um sorriso de desveladas esperanças: “Não te preocupes, querida, um dia vai aparecer o homem que tu mereces...”). E assim passara anos, a viver as dores daqueles que amava, a aplacar tristezas, a cuidar da casa, da comida, da roupa, a fazer as contas à vida e a sonhar com um futuro sorridente para a única filha com que Deus a abençoara. Assim passara anos...


E ela?... Encostada à janela, naquele dia, lembrara-se dela! Há tanto tempo já não lhe acontecia lembrar-se dela que ficou surpreendida e até um pouco angustiada com o pensamento. É que ao lembrar-se assim dela, sem precaução nem anúncio prévio, trazia à memória recordações que julgava apagadas.


E foi quando o barulho de fundo da televisão ligada, para não se sentir tão sozinha, a transportou sem intenção para a sua juventude. Essa juventude que não pode deixar de comparar, agora, com o presente. A sua juventude... Uma lágrima rolou-lhe pelo rosto e nem sequer se deu ao trabalho de a limpar com a ponta dos dedos, como algumas vezes fazia, para o seu António não dar conta de súbitas tristezas que lhe invadiam o coração. Porque ela não podia... Era o baluarte da família e chorar em frente ao marido era dar-se parte de fraca!


Ah! O seu António… Tantos anos juntos!


Seria capaz de jurar que, se algum dia a filha se casasse, nessa condição não ficaria nem uma terça parte do tempo... Gostava de acreditar no contrário, mas ela via como as coisas funcionam atualmente. A sua Alexandra já tivera tantos namorados e nenhum lhe servira. Por qualquer razão pouco feliz, as relações ainda mal começadas já espreitavam o fim por entre gritarias, choros e muitas lágrimas de desânimo não escondidas. Agora, os jovens já não suportam nada. Tudo lhes serve de motivo para acabarem de vez com um namoro que parece começar da melhor forma possível, cheio de sonhos para o futuro, com muitos abraços, carinhos e beijos à mistura. E, de repente, pufff... O amor desaparece. Por tantas e inúmeras razões que encontram plausíveis, terminam tudo. E voltam a sair juntos... Como amigos! Enfim...


A verdade é que estas ideias, que lhe assomaram à cabeça, lhe trouxeram velhas lembranças. E não eram assim tão agradáveis! Se calhar, a Alexandra até tinha razão. Porque não haveria de procurar a felicidade que desejava? Encontrar, de facto, a possível pessoa certa?...


Ela não fizera nada disso. É certo que a vida e as condições eram outras. Mas casara cega. O seu António fora o primeiro e o único homem da sua vida. Alto, entroncado, voz grossa, chamara-lhe de imediato a atenção assim que lhe pusera a vista em cima. E ele também pareceu ficar agradado da companhia dela. Daí até ao pedido formal de casamento fora um salto.


E os anos passaram. E com o passar dos anos, os sentimentos esvaíram-se-lhe no fundo do peito dorido. Ela, que era tão sensível a um carinho de ternura. Ela, que era uma rapariga tão romântica e que adorava celebrar momentos especiais... Ela, que tinha tudo dentro de si, não encontrara nada cá fora. O seu António nunca lhe oferecera sequer, em todos estes anos de vida em comunhão, um único ramo de flores. E o aniversário de casamento? Se calhar, de tanto tempo sem ninguém para o recordar, até ela própria já se esquecera do dia. O único presente que se lembrava de ter recebido fora uma caixa de bombons. Oferecera-lho uma vez a filha, numa visita ao hospital, depois de uma operação às varizes.


O seu António estivera emigrado na Alemanha, estivera. Mas as cartas que lhe enviara haviam-se resumido sempre a meia dúzia de letras a perguntar pela saúde de todos, com o final certeiro: “Um abraço, teu António”. Palavras mágicas de cores douradas nunca ouvira do marido. E, lentamente, a chama fora-se apagando, até cair no hábito da rotina diária.


Era um bom homem, o seu António...

Mas matara os seus sonhos e fantasias de mulher.


Pelo menos hoje, a Alexandra, embora não encontre a pessoa certa, poderá levar sempre na lembrança momentos que lhe fazem saltar o coração. E a certeza de que, um dia, alguém se aproximou dela, a convidou para jantar e até será capaz de lhe colocar uma flor entre as mãos e murmurar-lhe gentilmente ao ouvido: “amo-te”.


A Música da Lia

REVISTA VICEJAR

Era uma vez um homem com um grande coração.

Tão grande, diziam, que de tão grande que era não lhe cabia na boca.

Pois certamente que não, porque lugar de coração é num peito gigante, tão gigante como o meu, respondia Fabião, o homem com um grande coração.


Era uma vez uma mulher pequenina e graciosa.


De uma doçura tal que, diziam, parecia comer mel.


Mel não comia, afiançava com um sorriso feliz de orelha a orelha. Era apenas a doçura da alma que a tornava graciosa.


Assim como o néctar de uma flor, gracejava ela, a Mimosa.

Um dia, o Fabião, o homem com um grande coração conheceu a pequena Mimosa, a mulher que era doce e graciosa.


Outra coisa não seria de esperar que entre este homem tão grande e esta pequenina mulher crescesse um amor com aquela doçura de uma união, que só cabe a quem é doce e tem um enorme coração.


Diziam eles que os afetos não se fazem de idades nem de vontades.


A união é composta por laços com abraços que só escutam a Música do Coração.


Cada nota desta melodia é escrita com amor na pauta da vida e o resultado final será a mais bela composição.


A Mimosa e o Fabião garantiam não serem necessárias muitas notas.


Basta que a música de cada um seja tocada nos compassos certos e os braços para oferecer e receber amor tenham a magia de estar sempre abertos.


Foi talvez por isso, por serem tão diferentes mas tão perfeitos que, ao tocarem o coração um do outro, a vida lhes concedeu a sua mais bela sinfonia, a pequenina estrela Lia.


E deste modo, ao compasso daquela Música do Coração foi acrescentado um ritmo mais profundo.


Para o Fabião, a Mimosa e a Lia, agora nascia a mais bela canção do mundo.


Mas houve, então, um dia que encheu de cinzentas nuvens o céu da primavera e os sorrisos dos homens se calaram na terra.


Do ar desapareceu a leveza da aragem, havia lágrimas nos rostos e os silêncios gritavam a Canção da Coragem.


Andava à solta uma estranha criatura que ninguém sabia de onde viera e todos tinham que fazer mudanças, velhinhos e crianças, porque o mundo adoecera.


O som da certeza já não cabia na palavra futuro e entre os braços dos homens ergueu-se um imenso muro.


Começou a Lia a aprender as contas e as letras com diferentes cores de outras paletas, uma nova simetria. E com a saudade pousada no regaço, tal como ela, os meninos reinventaram a beleza do sorriso que morava dentro de um abraço.


O pai Fabião, dono de um enorme coração, deu novos rumos aos desafios da sua lição e passou a ensinar, com outras formas de contar, a sua geometria de encantar.


A mãe Mimosa, pequena e graciosa, antigos traços redescobriu. Com outros lápis de carvão os coloriu. Assim registava as sombras da doçura dos corações que mais amava.


E a vida passou a ser um novo desafio, ora lenta ora rápida, como as águas que correm pelas sinuosas margens de um rio.


Foi nesses dias de inusitadas tormentas que a pequenina estrela aprendeu a mais rara e valiosa lição da vida dela.


Se nas dores do caminho remar sempre de mãos dadas com a mãe Mimosa e o pai Fabião, são precisas apenas duas notas musicais para que o sol se vire do avesso e, bem aconchegadinho, vá morar dentro do peito, nesse cantinho com aroma de buganvília e chá de tília, que é o tio mais lindo desta família.


Com estas notas tocadas ao som da cor do amor, o Fa mais Mi será sempre igual a Lia.


É este o segredo da Música do Coração capaz de tornar o mais rigoroso inverno num suave e eterno verão.


inspirado nos momentos do Co(nto) da Vi(da) D(e) uma família feliz…

O Nosso "Quim"

MEMÓRIAS... E OUTRAS COISAS...

Todos o conheciam, o “Quim”.


Pelos dias, meses e anos da sinuosa caminhada desbravada, todos o conheciam, o “Quim”. Sorriso fácil, preso nas gargalhadas sonoras que brincavam com o velho cigarro ao canto da boca, numa melodia de voz executada em andamento lento. Olhinhos cintilantes em busca das miudezas do coração que tanta falta fazem aos afetos de um homem. Anedotas arrastadas pela noite fora com os compadres do coração. Picardia aqui, risotas acolá, cumprimentos com pitada de malícia adocicada a espreitar-lhe na curva dos lábios. Espelhava certezas, o “Quim”. Em cada gesto, um riso sem rancores, sempre com aquela mania linda de pôr a doçura ao serviço do elogio mais espontâneo. Era ele todo assim, o nosso “Quim”.


Todos o conheciam, o “Quim”. Nunca ninguém o vira chorar as mágoas da vida passada. Ou sequer lhe conheciam queixumes, daqueles que se esvaem em sombras de fumo pelo ecoar do tempo, ao quente da lareira, em frias noites de inverno. Nunca ninguém o descobrira a escolher os rios das paisagens, quando o afeto se tornava uma urgência e as palavras alheias eram tão somente meros acessórios, a desmultiplicar a constância da dor vivida em privado.


Mas o recôndito daquele olhar, esse, conseguissem os mais sensíveis vislumbrar, não lhe escondia a memória amarga e só dos enlevos que, no percurso acidentado da vida, ficaram por sentir, e do aroma doce das ternuras mais simples que fazem a grandiosa diferença. Perdido na indigência que aos outros é dado construir e feito de uma matéria infinita que apenas o seu coração abraçava… todos o desconheciam, o “Quim”.


É esta a estranha linguagem que os homens falam no silêncio da alma despida, a mais complicada de ler.


Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. 

Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada. 

Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se foi descobrindo nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.

O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, Cultura sem Fronteiras (coletânea de literatura e artes) e Nunca é Tarde (poesia), e da obra solidária Anima Verbi (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023.

Prefaciadora dos romances Amor Pecador, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), As Lágrimas da Poesia, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), Amar Perdidamente, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas Pedaços de Mim, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e Grito de Mulher, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023).

Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).

Atualmente, é colaboradora regular do:

. Blogue "Memórias... e outras coisas..."-Bragança |"5l-henrique.blogspot.com/search?q=Por%3A+Paula+Freire

. Revista Vicejar (Brasil)  |revistavicejar.blogspot.com/p/paula-freire.html|