Marielle, 

o Documentário: Impressões

Beco sem saída?

Não há como negar. A série lançada pela Globoplay sobre a Marielle Franco é um documentário de um profissionalismo exemplar. O tema é tratado com muita competência e honestidade. Ainda que honestidade seja um pré-requisito de qualquer trabalho jornalístico merecedor desse nome, por ser uma produção das Organizações Globo, é algo a ser saudado. Afinal, para essa empresa de comunicação que se prestou aos papéis mais vis na história do Brasil nos últimos 60 anos, isso é um elogio e tanto. Sem falar que o atual chefe de jornalismo e produtor-executivo da série é um sujeito que escreveu um livro em que nega a existência de racismo no Brasil.

A honestidade no tratamento do tema foi possível pela sagaz escolha do eixo narrativo. O fio condutor do documentário se baseia nas informações públicas constantes do inquérito policial. Essa é a realidade factual sobre a qual se constrói a narrativa. Não há espaço para ilações, especulações, suposições que não constem da documentação processual. Logo, uma narrativa sem maiores riscos para a credibilidade do documentário. Tanto que, para legitimar essa abordagem, por três vezes ao longo dos seis episódios é usado o depoimento do Deputado Marcelo Freixo em que ele se justifica por não fazer ilações, remetendo as perguntas ao trabalho investigativo da polícia. O jornalismo da Globo é competente nessas coisas, de usar a palavra de seus adversários para avalizar a própria prática jornalística. Mesmo sendo o mesmo Freixo que, tempos atrás, foi tratado de forma leviana e covarde pelo jornalismo da vênus platinada, com a deplorável matéria “Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu rojão era ligado ao deputado estadual Marcelo Freixo”. Aliás, a turminha do Jardim Botânico jamais se desculpou por esse factóide abominável.

Nessa série, ao contrário do que fez o jornalismo da Globo na cobertura da reforma da Previdência, foi garantido a todos os investigados e envolvidos no caso o direito de expor as suas versões discordantes. São exibidos trechos dos depoimentos dos supostos assassinos em que as acusações a eles dirigidas são contestadas. Aos políticos denunciados e que possuem evidentes vínculos com as milícias foi dado amplo espaço de defesa. Até mesmo o celerado que quebrou a placa da Marielle ganhou a oportunidade de apresentar a sua versão “fofa” da boçalidade que praticou.

Já o clã Bolsonaro, com as suas notórias ligações com o crime organizado, é fato ignorado. É provável que o clã tenha se recusado a dar a sua própria versão dos acontecimentos. Assim, sem poder apresentar o contraditório, a direção provavelmente optou por omitir a questão. Apenas cita o episódio da “casa 58”, constante no inquérito, mas somente para defender o que seria a postura correta do jornalismo global ao tratar do assunto.

Um ponto forte do documentário são as imagens dos acervos das famílias de Marielle e Anderson. Fotos, vídeos, áudios e mensagens de celular que revelam a intimidade dessas pessoas, a imensa amorosidade de ambos e a tragédia humana presente nessa barbárie. A carga emocional é fortíssima, garante olhos marejados, mas sem resvalar para um melodrama piegas.

Entretanto, se os elogios são muitos, as críticas também são inevitáveis.

Existem horas de pronunciamentos de Marielle na Câmara dos Vereadores, sobre os mais variados temas. Esse material foi pouco utilizado. São raras essas imagens e, mesmo assim, usadas repetidamente para enfatizar o protagonismo feminino, negro e LGBTQI+. Parece haver um cuidado extremo para não associá-la a outras pautas políticas que não sejam “identitárias”. Aqui temos a Globo sendo a Globo, aquela que jamais colocará “azeitona na empada” da pauta econômica e social da esquerda. Só que isso empobrece e reduz a importância gigantesca da Marielle Franco.

Marielle denunciava e lutava contra o genocídio de uma população majoritariamente negra, pobre e periférica. E isso está presente no mestrado que fez sobre as UPPs, na atuação dela na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, nos pronunciamentos que fez na Câmara dos Vereadores, nas propostas e ações de seu mandato. Material que, lamentavelmente, a série preferiu ignorar. Não somos racistas, não é mesmo?

Assim, a opção em considerar apenas as circunstâncias do crime que são públicas e documentadas na investigação, se garante uma espinha dorsal coerente para a narrativa, também funciona como uma camisa de força. Mesmo que ao longo dos capítulos seja destacado que a elucidação do caso é fundamental para a sobrevivência da democracia brasileira – e de fato o é – ao final a série deixa a impressão de que o desfecho caminha para um caso sem solução. De que talvez se trate de um crime sem mandantes ou sem motivação política clara. Ou seja, nossa debilitada democracia não tem salvação.

Pouco ou nada se fala sobre questões que acompanhamos nesses últimos dois anos pela imprensa: o sumiço de imagens das câmeras, a comentada sabotagem interna dentro da polícia, a infiltração da milícia no Estado, a presumível execução do capitão Adriano, a procuradora bolsonarista afastada, as relações íntimas e promíscuas do clã Bolsonaro com os principais envolvidos.

Porém a falha mais grave da série é que ela não desconstrói devidamente o argumento mais repulsivo sobre essa execução: aquele que diz que é dada importância demais ao caso, já que milhares de outras famílias sofrem tragédias similares diariamente e nem por isso ganham tanta repercussão e atenção. Essa triste falácia que jorra da boca de esgoto de inúmeros autodenominados “cidadãos de bem”.

Marielle se tornou um símbolo nacional e internacional não por ser vítima de uma barbárie, mas por ter sido assassinada exatamente por lutar contra essa barbárie que mata mais de sessenta mil pessoas por ano no Brasil. Um assassinato que serve aos que desejam a continuidade da barbárie a qual ela corajosamente se opunha.

Que a série de ficção que se anuncia, sob a direção de um famoso cineasta, de notória visão política rasa e medíocre, não reduza o legado de Marielle Franco a uma dimensão pasteurizada das lutas políticas e sociais que ela encampava. Tendo em vista o currículo do rapaz, não se deve esperar grande coisa. Mas quem sabe ele se manca e “pede pra sair”.

O fato é que Marielle é maior, imensamente maior do que qualquer série que a Globoplay seja capaz de produzir.

Zeca Filho

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