O que é Cordel?

O QUE É LITERATURA DE CORDEL?

Margarida da Silveira Corsi (UEM/DLM)

De acordo com suas caraterísticas composicionais, o cordel pode ser definido como um gênero híbrido que narra, em versos, histórias originárias de um período anterior à prosificação da cultura. O cordel também narra histórias que foram sendo incorporadas ao seu repertório cultural. Suas temáticas, suas linguagens e sua forma estrutural foram se reconfigurando com o decorrer da história.

A predominância de aspectos estruturais como a metrificação, a rima e a oração, assim como da temática e da escolha lexical das narrativas de cordel brasileiras foi se definindo no período entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. Período que compreende o momento em que Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista passaram a publicar e a comercializar os folhetos.

No Brasil, além da relação da poética cordelizada com elementos da literatura oral e da cultura letrada, alguns aspectos formais e temáticos peculiares à produção nacional possibilitam uma caracterização do cordel brasileiro embasada numa estrutura composicional, e numa rede de temas e estilo próprios da cultura, das histórias e da linguagem do povo brasileiro, em especial do povo nordestino.

Outro aspecto a ser considerado relevante é seu caráter agregador, pois, “no momento da comercialização – integração à produção industrial –, são contados, oralmente trechos de histórias para o grupo de ouvintes”(EVARISTO, 2011, p. 120), artifício chamado “deixa” através do qual o cordelista procura convencer seu ouvinte a adquirir os folhetos, parando a história no momento culminante da ação. Estratégia que ainda hoje se pratica em sites, blogs, feiras de livros, oficinas, saraus, etc.

O aspecto da proximidade do autor com o leitor/ouvinte pode ser relacionado aos versos em que os poetas se direcionam ao público, como se estivessem lendo em uma festa popular, ou em uma estação de trem, com seus folhetos espalhados numa mala aberta ou num lençol. É o que se percebe em A Chegada de Lampião ao inferno, de José Pachêco da Rocha (S/D, p.08), em que o autor conversa com o leitor:

Leitores vou terminar

Tratando de Lampião

Muito embora que não possa

vos dar a resolução

No inferno não ficou

No céu também não chegou

Por certo está no sertão. (PACHEDO DA ROCHA, SD, p.08).

Nos versos citados, percebemos que o poeta invoca o leitor através do vocativo “Leitores vou terminar”, mostrando como a poesia de cordel aproxima o poeta de seu leitor/ouvinte que, mesmo lendo em silêncio, pode fechar os olhos e escutar a voz do poeta. Acerca disso, Abreu (1999, p.118), afirma que os cordelistas “escrevem como se estivessem contando uma história em voz alta”, sendo o poeta um mediador entre a oralidade e a escrita. É também o que ocorre, por exemplo, na última estrofe de Carmélia e Sebastião ou A Justiça Divina (2017), de Arievaldo Viana e Evaristo Geraldo:

Eis, portanto, meus leitores,

O braço forte da sina

Não há quem possa cortar

O que o bom Deus determina:

Quatro destinos traçados

Foram enfim resgatados

Pela JUSTIÇA DIVINA. (VIANA; GERALDO, 2017, p.48).

As narrativas de cordel compostas pelos poetas atuais e do início de sua história tem em comum alguns aspectos relacionados aos pilares constitutivos do enunciado: estrutura composicional, tema e estilo (BAKHTIN, 1992). As tramas são alicerçadas em maniqueísmos e os enredos circulam em torno de temas que opõem o bem e o mal, pautados numa concepção social de certo e errado. Neste contexto, os heróis são honrados, corajosos, fiéis, leais, piedosos e justos; já os vilões são invejosos, vingativos, impiedosos, dissimulados, mentirosos e desleais. É o que percebemos em Carmélia e Sebastião ou a Justiça Divina, de Arievaldo Viana e Evaristo Geraldo (2017, p.01), em que os poetas retratam o vilão como a encarnação do mal:

A fazenda pertencia

Ao coronel Durvalino

Um mandatário perverso,

Criminoso e assassino

Covarde, bruto e ateu.

Homem que nunca temeu

Aos castigos do Divino. (VIANA, GERALDO, 2017, p.01).

No trecho, o poeta não economiza adjetivos para caracterizar negativamente o coronel Durvalino, descrevendo-o como homem “perverso, criminoso, assassino, bruto, covarde”. O adjetivo ateu faz oposiçao à religiosidade, um aspeto muito forte das tematicas do cordel. De modo oposto, o mocinho da história é apresentado como exemplo de virtude. Homem “Honesto, trabalhador, vaqueiro, exímio aboiador”:

Bastião era um mulato

Honesto e trabalhador,

Vaqueiro por vocação,

Um exímio aboiador[1]

De canto forte e preciso

E fazia de improviso

Versos falando de amor. (VIANA; GERALDO, 2017, p.01).

A caracterização dos rivais coloca em pauta a oposição entre o coronel poderoso, explorador dos mais pobres e o moço mestiço capaz de alterar a situação injusta da história narrada. Os versos marcam esta oposição entre o bem o mal na caracterização do mocinho e do vilão, comprovando que os poetas atuais ainda seguem a fórmula tradicional da narrativa de cordel.

Na narrativa de cordel não há lugar para muitos personagens secundários e a história está intimamente ligada aos personagens centrais; não há longas descrições de personagens ou paisagens; o tempo não é marcado ou descrito de modo sistemático. A árvore de todos os frutos (Lenda indígena) (2017), de Evaristo Geraldo, por exemplo, é composta de 37 sextilhas setessilábicas, e narra a origem de Macunaíma, filho da união do sol com lua, protetor da árvore de todos os frutos. No folheto, as personagens nomeadas são: Macunaíma, a Lua, o Sol e a mãe natureza. O tempo é descrito como um tempo distante, mas indefinido: “Antes de aportarem aqui/ Os europeus invasores”(p.02). O espaço é hipotético: “Dizem que lá em Roraima,/ Bem no topo da montanha”(p.02), confirmando a economia na composição de espaço, tempo e personagens na literatura de cordel.

Carmélia e Sebastião ou A Justiça Divina, por exemplo, narra a história de duas gerações de pessoas envolvidas na mesma trama. São seis personagens que vivenciam os fatos. O tempo, apesar de compreender a idade dos enamorados Carmélia e Sebastião, é marcado no texto apenas como: “[...] no início/Do século vinte passado”(p.01). Com relação ao espaço, diz-se: [...]/Em plena zona rural,/No Ceará, solo amado,/(Quando há inverno e fartura)./Na fazenda Boa Ventura/ Sertão Central desse Estado”(p.01).

A linguagem do cordel faz parte de uma estratégia de aproximação com o público, contendo termos, rimas (soantes), estrofes (sextilhas, setilhas e décimas) que facilitam a decoração dos versos pelos ouvintes e cantadores. Vejamos, por exemplo, como Viana e Geraldo narram a história de Carmélia e Sebastião... (2017). São 189 estrofes, de sete versos (setilhas). Cada verso contém sete sílabas poéticas (redondilhas maiores ou setessilábicas), com rimas soantes (rima a partir da última sílaba poética) ABCBDDB. A existência de termos como “campear, aboio, maestria, vaqueiro”, por exemplo, remetem à tradição nordestina de aboiar o gado. Características composicionais e estilísticas que se pode averiguar na setilha a seguir:

Quando Bastião saia

Para campear o gado,

Os bichos obedeciam

Ao seu aboio entoado

Com beleza e maestria

Todo rebanho seguia

Esse vaqueiro afamado. (VIANA; GERALDO, 2017, p.10).

A definição e a ampliação da materialidade das obras em cordel do nordeste e das outras regiões do Brasil ocorrem gradativamente. Com o passar do tempo, os folhetos brasileiros foram atribuindo a linguagem, os hábitos e as histórias do sertanejo ao seu conteúdo temático, seu estilo e sua estrutura composicional. Passamos, então, a ler histórias acerca de personagens históricas e culturais do nordeste como: Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Lampião, Luiz Gonzaga, Seu Lunga, João Grilo, entre outros; existem também muitos exemplos de histórias de coronéis impiedosos, de famílias rivais, de amores proibidos, de vinganças sangrentas, de lendas indígenas, afrodescendentes e europeias, entre outros. Um exemplo de história de coronel é o folheto Carmélia e Sebastião... (2017), na qual o coronel Durvalino é descrito como o vilão capaz de alterar negativamente o destino das pessoas que vivem em suas terras ou nas proximidades destas, para realizar seus desejos mesquinhos. É o que os poetas descrevem nos versos a seguir:

Os coronéis do Nordeste

Eram pessoas cruéis,

Matavam de emboscada

Igualmente as cascavéis,

Por jagunços rodeados

Temidos e respeitados

Nas câmaras e nos quartéis. (VIANA; GERALDO, 2017, p.05).

Os versos da setilha acima mostram uma generalização na figura do coronel nordestino, no início do século XX, caracterizando-o como “pessoas cruéis” comparados a “cascavéis”, protegidos por jagunços e “Nas câmaras e nos quartéis”. As temáticas, a estilística e os elementos composicionais da estrutura do cordel citados acima são generalizações da poesia de cordel. Há dentro desta arte da poesia popular gêneros específicos como o romance de cordel, os folhetos de circunstância, os ABCs, as pelejas, os gracejos, entre outros.

Stélio Toquato Lima afirma que a definição mais enxuta para a literatura de cordel é “narrativa popular em versos” (Entrevista a CORSI, em agosto de 2018). O poeta ainda acrescenta que, para escrever um cordel, é preciso estar imbuído da mentalidade popular e conhecer as características do texto poético, “optando por uma das quatro estrofes: ou uma quadra; ou uma sextilha; ou uma setilha; ou uma décima”, nas quais, “predominatemente, usa-se o setissílabo, que tem sua razão de ser, porque ele é muito próximo da fala simples, das frases curtas do sertanejo”. Stélio ainda enfatiza o uso da rima soante e da predominância de um mesmo tipo de estrofe, do início ao fim do cordel. Lembra-nos ainda que o cordel está inserido no rol dos gêneros da literatura exemplar, por isso, os temas e as personagens estão envolvidas em tramas que os caracterizam de forma maniqueísta. As personagens dos romances de cordel, por exemplo, são vilões ou heróis; opressores ou oprimidos, sendo os bons premiados e os maus punidos no desfecho.

Este texto é parte de trabalho intitulado Carmélia e Sebastiao ou a justiça divina. In: FONSECA. A. de S.; FLECK, G. F.; SANTOS, L. S. (Orgs). A pesquisa em Literatura e leitura na formação docente – experiências da pesquisa acadêmica à prática profissional no ensino. Volume 3. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2018.

Referências

ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Marcado das Letras, 1999/2011.

CORSI M.S.; FLECK, G.F. – Carmélia e Sebastiao ou a justiça divina. In: FONSECA. A. de S.; FLECK, G. F.; SANTOS, L. S. (Orgs). A pesquisa em Literatura e leitura na formação docente – experiências da pesquisa acadêmica à prática profissional no ensino. Volume 3. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2018.

EVARISTO, M.C.. O Cordel em sala de aula. In : BRANDÃO, H.N. (Coord.). Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político, divulgação científica. 5ªed., São Paulo: Cortez, 2011. pp.119-142.

GERALDO, Evaristo. A árvore de todos os frutos (Lenda indígena). Capa de Maércio Siqueira. Alto Santo/CE: Edições monólitos, 2017. 12p.

______. Entrevista concedida a Margarida da Silveira Corsi. Maringá/Alto Santo, 24 de janeiro de 2018.

HAURÉLIO, Marco. As três folhas da serpente. Capa de Klévisson Viana. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2009. 16p.

______. Entrevista concedida a Margarida da Silveira Corsi. Bienal/São Paulo, 10 de agosto de 2018.

HOLANDA, Arlene; RINARÉ, Rouxinol. Cordel: criar, rimar e letrar. Fortaleza: Editora Imeph, 2009. 96p.

LIMA, Stélio Torquato. Entrevista concedida a Margarida da Silveira Corsi. Bienal/São Paulo, 10 de agosto de 2018.

MARINHO, Ana Cristina; PINHEIRO, Hélder. O cordel no cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 2012.

PACHÊCO, José. A chegada de Lampião ao inferno. Capa Pedro Ítalo. Editora Memorial do Cordel, SD. 8p.

RINARÉ, Rouxinol. Entrevista concedida a Margarida da Silveira Corsi. Bienal/São Paulo, 10 de agosto de 2018.

VIANA, Arievaldo; GERALDO, Evaristo;. Carmélia e Sebastião ou A justiça divina. Capa de Arievaldo Viana. Fortaleza/CE: Cordelaria Flor da Serra, 2017. 48p.


[1] Aboiador é o poeta que faz aboio, uma espécie de toada muito próxima do cordel e do repente.