ENTREVISTA - Profa. emérita do COS Lucrécia Ferrara comenta transversalidade da pesquisa em comunicação e tema do 30º Encontro da Compós

O 30º Encontro da Compós – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – é uma organização do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP (COS – PUC-SP). O programa, por sua vez, recebe este trigésimo Encontro da Compós no momento em que comemora os 50 anos de sua própria fundação. São trajetórias distintas porém próximas, que mais uma vez se entrelaçam.

Em decorrência do aniversário do COS-PUC-SP, entrevistamos uma das fundadoras do programa e uma das pioneiras da pós-graduação no Brasil, a Prof.ª Dr.ª Lucrécia D’Alessio Ferrara. Ela é professora titular aposentada da USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) e titular emérita do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. É também líder do Grupo de Pesquisa Espaço-Visualidade/Comunicação-Cultura (ESPACC), certificado pela Comissão de Pesquisa da PUC-SP e pelo Diretório dos Grupos de Pesquisa Nacionais. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: epistemologia da comunicação, cultura, semiótica, arquitetura e design.

Nesta entrevista, a Profa. Dra. Lucrécia nos conta um pouco sobre o início da Pós-Graduação na PUC-SP, sobre as origens do COS e suas impressões sobre o 30º Encontro do Compós e o momento da pesquisa de comunicação no Brasil.



ENTREVISTADOR: O Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP está fazendo 50 anos. A Sra. é uma das fundadoras do Programa, em conjunto com outros nomes importantes, como Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Leyla Perrone-Moisés e Willi Bolle. Quais foram as bases nas quais o COS-PUC-SP foi fundado?


LUCRÉCIA FERRARA: A ideia do programa surgiu em 1969, quando fui procurada por Joel Martins, professor do curso de Psicologia da Educação, e Maria Antonieta Celani, professora de linguística aplicada ao ensino de línguas estrangeiras. Eles me procuraram para criar um setor de Pós-Graduação na PUC-SP.

Em 1969, a Pós-Graduação era absoluta novidade, algo que não existia na PUC-SP e não existia quase em lugar nenhum do Brasil. Para criar um setor de Pós-Graduação, era necessário ter doutores, e não os havia em quantidade. Quando Joel me procurou, ele disse: “Como nós três somos doutores, vamos criar um setor de Pós-Graduação”. Naquela época, o reitor da PUC-SP era o professor Bandeira de Melo. Eu não diria que o reitor nos apoiava. Diria que ele nos estimulava. Perceba que existe uma diferença entre apoio e estímulo. Ele nos estimulou muito. Então nós três [Lucrécia D’Alessio Ferrara, Joel Martins e Maria Antonieta Celani começamos a pensar em como criar um setor de Pós-Graduação na PUC-SP.

Joel Martins estava ligado ao curso de graduação em Psicologia da Educação, Antonieta, ao curso de Letras Anglo-germânicas e eu estava ligada ao curso de Letras Neolatinas. Pensamos em criar três programas, cada um ligado às áreas em que já atuávamos. Criaram-se os três primeiros programas: Psicologia da Educação, Linguística Aplicada no Ensino de Línguas e Teoria Literária. As atividades começaram em 1970.

Já na montagem dos três programas, em 1969, havia urgência de contratar professores que tivessem condição de ensinar em um Programa de Pós-Graduação. Naquela altura, a professora Leyla Perrone-Moisés ministrava literatura francesa na Faculdade de Letras do Instituto Sedes Sapientiae e a convidei para compor o corpo docente. Com a intenção de montar um corpo docente para o curso de Teoria Literária, os nomes de Haroldo de Campos e de Décio Pignatari imediatamente vieram à tona, porque todos nós estávamos ligados direta ou indiretamente à poesia concreta. Eu os convidei para participarem do programa. O Haroldo sugeriu o nome de Willi Bolle e juntos começamos a montar o Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária. Conseguimos implementá-lo em 1970, especialmente para alunos de Letras. Naquele momento, montamos uma estrutura curricular muito mais ligada à Teoria Literária, do que propriamente à comunicação.

Naquela época, a situação política brasileira era bastante agitada, conflituosa, mas a vida em Brasília funcionava muito rapidamente. A primeira providência a tomar foi solicitar o reconhecimento oficial dos três Programas de Pós-Graduação junto à Capes que estava em processo de sedimentação das suas atividades. Em 1972, houve o reconhecimento do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária nos níveis de Mestrado e Doutorado. E começamos a trabalhar a todo o vapor.

Imediatamente tivemos disciplinas repletas de alunos. É necessário dizer que não havia ,naquela época, atividade sistemática de Pós-Graduação. A carreira acadêmica ia até os cursos de graduação e, a partir daí, fazia-se pesquisa de modo assistemático e eminentemente pessoal. Havia professores que haviam feito doutorado que, sem o mestrado, chamava-se doutorado direto e secundava alguns cursos de especialização. Eu mesma fiz cursos de especialização entre minha graduação e o início do meu doutorado. Mas estes cursos de especialização eram simplesmente de complementação da graduação, ou seja, não eram voltados para a atividade de pesquisa.

Quando, em 1970, foi criado o programa em Teoria Literária procurávamos fazer da pós-graduação uma atividade de pesquisa sistemática. Os alunos participavam de uma seleção, faziam mestrado e, frequentemente, seguiam para o doutorado.


ENTREVISTADOR: Era um momento de vanguarda...


LUCRÉCIA FERRARA: Exatamente. Mas o que quer dizer vanguarda? Quer dizer que era um momento no qual não sabíamos exatamente o caminho a seguir. Não havia caminhos trilhados que nos servissem de exemplo. A própria tradição norte-americana e europeia não nos servia. Na Europa, por exemplo, não havia Mestrado. Na França, havia um diploma de estudos aprofundados (Diplôme d'études approfondies). Não havia propriamente mestrado. Nos EUA, havia um mestrado que funcionava mais ou menos como especialização, e depois ia-se para o Ph.D. Então não havia um sistema de pós-graduação organizado.

Quando começamos, não tínhamos exemplos a seguir. Então era uma atividade pioneira? Não era vanguarda, era uma atividade pioneira que procurava descobrir ou inventar caminhos. Eu diria que era mais inventar do que descobrir.


ENTREVISTADOR: E qual foi o percurso deste momento pioneiro até a conformação do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica como nós conhecemos hoje?


LUCRÉCIA FERRARA: O COS não existia, o que existia era o programa em Teoria Literária. As aulas, as atividades acadêmicas, o apoio de vários professores visitantes e a própria atividade de pesquisa dos professores eram estimulantes para os alunos. A televisão brasileira começava a tomar impulso enquanto meio de comunicação de massas e a atividade jornalística era muito intensa como consequência do momento político e cultural vivido na época. Em consequência, a própria atividade de pesquisa dos alunos foi, pouco a pouco, ultrapassando o caminho exclusivo da literatura e caminhando para outras formas de linguagem, sobretudo formas de linguagem não verbais e, rapidamente, começamos a perceber que havia outras possibilidades.

Em 1973, Haroldo de Campos e Décio Pignatari fizeram os respectivos doutorados. Quando o programa começou, eles não eram doutores ainda. A tese do Décio foi Semiótica e Literatura, defendida na USP com orientação de Antônio Cândido. Décio percebeu que estávamos saindo da área de Literatura e caminhando para a área de Comunicação. Lembro que, àquela altura, eu tinha uma orientanda que queria estudar a publicidade da campanha pública de saúde voltada às crianças. Percebi que aquele tipo de trabalho indicava que estávamos indo além da literatura.

Um dia, conversando com Haroldo e Décio, pensamos em ampliar e ir transformando o curso de Teoria Literária em curso de Comunicação. Isso começou em 1977. Em 1978, resolvemos fazer o primeiro esboço do que seria um programa de Comunicação. O primeiro esboço do programa foi feito a partir da leitura dos textos de Peirce. Um conjunto de artigos, extraídos dos Collected Papers de Peirce, havia sido publicado no Brasil pela Editora Cultrix , a primeira a divulgar Peirce no Brasil e, hoje, esse volume é antológico. Chama-se Semiótica e Filosofia. [O livro Semiótica e Filosofia, de Charles Sanders Peirce, foi publicado pela Editora Cultrix no Brasil em 1962].

Planejado, pensamos solicitar à Capes o credenciamento do novo programa. Sinalizando positivamente, a Capes entendeu que seria mais adequado fazer retroagir a data de credenciamento do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica à mesma data do credenciamento do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária, desse modo e durante um bom tempo , os dois programas conviveram harmoniosamente. Desse modo, se alguém analisar trabalhos do final da década de 1970 e início dos anos 80, encontrará muitos trabalhos ligados à teoria literária e, outros, já trabalhando com outras linguagens. O próprio Arlindo Machado, no mestrado, (1979-1983) estudou e produziu A Ilusão Especular, trabalhava com fotografia e cinema, porém, em franco e amplo convívio com a teoria literária.

Observava-se que, na realidade, os estudos literários enveredavam para uma relação muito intensa com várias outras linguagens, tentando trabalhar a possível relação semiótica de um signo e indo além do seu caráter expressivo. Na realidade, procurava-se verificar como, em uma estrutura sígnica, encontravam-se matrizes que davam conta de uma operação entre linguagens.

O estruturalismo francês tem origem na década de 1960, e vai fervilhar até 1966. Mas os anos de ouro do estruturalismo francês foram de 1966 a 1968, talvez até 1972. Com a influência de Saussure, o estruturalismo francês está muito mais voltado para o estudo da linguagem verbal. O estruturalismo foi uma grande matriz teórica e metodológica e epistemológica para a literatura e para os estudos em comunicação. Porém, desde o final do século XIX, Peirce já estava produzindo outra semiótica. Na primeira e segunda décadas do século XX, a semiótica peirceana já estava totalmente elaborada, de modo que o estudo de Peirce no Brasil começou tardiamente.

Quando a semiótica peirceana começou a ser divulgada, iniciou-se uma comparação entre a semiologia francesa de base saussuriana e a semiótica pragmaticista de natureza lógica. Percebia-se que, efetivamente, entre a semiologia e a semiótica havia pontos de contato, mas também uma ponderável fissura no modo como se estudava e entendia a linguagem. Assim, em 1978, quando começaram na PUC-SP as atividades do programa de Comunicação e Semiótica, a relação entre a semiologia saussuriana e a semiótica peirceana já estava implantada e sedimentada. Avançando nos estudos da comunicação a partir da experiência do estruturalismo francês, foi possível observar que a lógica da semiótica pragmaticista poderia enriquecer os estudos, dando a eles outro viés epistemológico e, até mesmo, ontológico. Quer dizer, criou-se uma estrutura estimulante de exigência científica e investigativa. Abria-se um leque de perspectivas científicas muito amplo e o COS enveredou por esse caminho com toda energia.

São desta época alunos do COS que depois se transformaram em grandes nomes da comunicação e da semiótica: Arlindo Machado, Julio Plaza, Willi Bolle, Norval Baitello, e Lúcia Santaella, que defendeu seu doutorado direto em 1972 e em Literatura Brasileira, mais precisamente sobre Carlos Drumond de Andrade.

Quando as atividades do programa de Comunicação e Semiótica se desenvolveram, convidamos a Lucia Santaella para participar, embora àquela altura o programa de Comunicação e Semiótica convivesse com o de Teoria Literária.


ENTREVISTADOR: Avançando um pouco na nossa conversa, é evidente que o COS tem um história muito relevante e tem uma participação muito importante nos estudos de comunicação no Brasil. Neste contexto, em 1991 a PUC-SP em conjunto com outras 5 universidades fundou o Compós. Este ano a PUC-SP recebe o Encontro Anual do Compós pela segunda vez, sendo a primeira em 1998. Qual a relevância dos encontros do Compós hoje para as pesquisas em comunicação no Brasil, considerando o contexto político e cultural específico que estamos vivendo e levando em conta que ele será mais uma vez realizado de forma virtual?


LUCRÉCIA FERRARA: Não se faz comunicação sem meio técnico. A comunicação depende do meio técnico, mas não se confunde com ele, pois vai além dele. Não há possibilidade de dispensar o meio técnico. Não há comunicação sem meios. Evidentemente, com a revolução do digital enquanto meio técnico, a comunicação sofre um impacto, porém, vem respondendo a ele de maneira muito generosa, com outros investimentos científicos e outros elementos teóricos. O modo de fazer pesquisa foi bastante alterado após a revolução do digital. Hoje quase não é possível fazer pesquisa na área de comunicação sem um forte desenvolvimento empírico, sem uma forte base empírica. Não podemos esquecer que a comunicação é uma fenomenologia. A comunicação aparece e o modo como se dá a ver é característico do seu modo fenomênico de ser. A comunicação não está diante de um fenômeno, ela está vivendo integralmente este fenômeno, como consequência, trabalha com todas as variáveis políticas, sociais, culturais que a atingem enquanto fenômeno. A comunicação é uma área científica de vanguarda, uma ciência nova que, hoje, está caracterizando e demarcando seus parâmetros com mais clareza.

Esse encontro congrega todos os Programas de Pós-Graduação em Comunicação no mesmo local onde a área se iniciou constitui notável privilégio. Quando se instalou, junto à Capes ( 1985/86), a primeira coordenação da área de comunicação, havia cinco programas de pós-graduação. Crescemos muito e a PUC participou integralmente da formação de grande número de docentes que, hoje, atuam em vários programas em todo o território nacional. Muitos fizeram seus mestrados e doutorados na PUC-SP, de modo que, se hoje temos a possibilidade de comemorar o aniversário da Compós fazendo um encontro na própria PUC-SP, estamos permitindo que o Programa de Pós-Graduação inicial tenha o prazer de hospedar todos os outros programas nacionais da área de comunicação. Isso é, para o COS, um privilégio e motivo de grande alegria. Estamos realmente em condições de comemorar este Encontro.


ENTREVISTADOR: O tema do Compós deste ano é “Sobre constelações e observatórios: a pesquisa em comunicação e suas transversalidades”. Este tema remete à história dos Programas de Pós-Graduação na PUC-SP, onde pesquisas transversais ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária deram origem ao programa de Comunicação e Semiótica e permitiram a abertura de novos campos de estudo dentro da universidade. Como a Sra. entende este tema do Compós e o momento atual da pesquisa em comunicação no Brasil?


LUCRÉCIA FERRARA: A questão da transversalidade não é, exclusivamente, uma questão de trabalhar entre pesquisas, mas salienta-se que a natureza epistemológica da comunicação atravessa várias áreas científicas e essa realidade de investigação caracteriza sua transversalidade. Ela trabalha não nos limites, mas nas fronteiras de várias disciplinas. A transversalidade é característica epistemológica e ontológica da comunicação, lhe impõe dialogar com outras áreas científicas e considerar as questões sociais. Ao considerar o modo como o corpo é atingido por todos os meios e a eles responde, o conceito de midiatização pode corresponder a essa transversalidade .


ENTREVISTADOR: E este processo que estamos vivendo hoje de digitalização por conta de uma situação sanitária contribui para este fenômeno?


LUCRÉCIA FERRARA: Sem dúvida. Veja o que está acontecendo. Estamos dialogando diante de uma tela [a entrevista foi realizada por meio virtual]. Você poderia perguntar: será que, presencialmente, ocorre a mesma comunicação? Eu diria que é até mais instigante, porque exige sair da nossa realidade singular e caminhar para uma relação plural. Isso exige a possibilidade de darmos atenção ao outro com grande eloquência. Não acredito que se tenha vivido com tanta intensidade o fenômeno da alteridade como estamos vivendo hoje. Estamos vivendo esta alteridade trabalhando com o outro através de uma tela e, para me fazer entender, é necessário que me coloque no lugar do outro. Esse outro não está fora de mim, está dentro de mim. Veja aí a transversalidade.


ENTREVISTADOR: Muito obrigado pela disponibilidade de ter esta conversa conosco. Eu gostaria de lhe dar a oportunidade de acrescentar algo, de fazer alguma observação que ache relevante sobre o que conversamos antes de encerrarmos.


LUCRÉCIA FERRARA: Tenho sido convidada a falar sobre a origem do COS e sua história enquanto Programa de Pós-Graduação: seu início, o que significou, os passos dados que levaram a errar e a acertar. É muito agradável falar desse passado que me é muito caro, é o passado da minha vida acadêmica. Entretanto, acho que, hoje, o grande desafio do COS é olhar para o presente. Olhar para o COS não para buscar o que queríamos em 1978, mas o que queremos com o COS agora. Não significa planejar um COS para daqui 5 ou 10 anos, mas significa ver o COS hoje. É exatamente esta pergunta que me faço, e faria a você: que COS queremos hoje? O que é o COS hoje? O que seria possível ainda fazer para que o COS continuasse a ser um programa que fizesse jus aos 50 anos de idade? O COS tem condição de responder a este desafio? Evidentemente, quando analisamos 50 anos de vida do COS, estamos fazendo um prognóstico. Estamos dizendo: “O COS está aberto para o futuro”. Mas o momento social, cultural, político que estamos vivendo nos obriga a olhar para o COS e perguntar o que queremos que o COS seja hoje e em que medida estamos respondendo a este desafio. Porque, sem dúvida alguma, o COS está sendo desafiado. A própria realização do Encontro da Compós no COS é o paradigma deste desafio. O desafio do COS é o desafio da área de comunicação. Eu gostaria, se pudesse deixar uma última frase, que o COS tivesse a coragem de olhar-se e perguntar-se: “Que comunicação o COS quer estudar?”



Texto e entrevista: Me. Renê Eduardo Arruda