ENTREVISTA - Profa. titular emétira da PUC-SP Lucia Santaella

Na ocasião do 30º Encontro da Compós, organizado pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, que por sua vez comemora 50 anos, recebemos a Prof.ª Dr.ª Maria Lucia Santaella Braga para uma entrevista.

Lucia Santaella é pesquisadora nível 1A do CNPq, graduada em Letras Português e Inglês, com doutoramento em Teoria Literária na PUC-SP, Livre-Docência em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, e pós-doutorado na Universidade de Indiana, Estados Unidos, e na Universidade Gesamthochschule Kassel, na Alemanha. Atualmente é professora titular emérita da PUC-SP, atuando nos programas de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e Pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, no qual é Coordenadora. É Diretora do Centro de Investigação em Mídias Digitais e Coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos, na PUC-SP. Dentre seus diversos cargos, é presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica e já foi eleita presidente da Charles S. Peirce Society, dos EUA, em 2007. Além disso, foi professora convidada em universidades da Alemanha, Espanha, Portugal, Argentina e México. Publicou mais de 50 livros, recebendo 4 vezes o prêmio Jabuti, dentre outros. Também tem mais de 400 artigos publicados em periódicos científicos no Brasil e no Exterior. Suas áreas mais recentes de pesquisa são: Comunicação, Semiótica Cognitiva e Computacional, Inteligência Artificial, Estéticas Tecnológicas e Filosofia, e Metodologia da Ciência.

A professora nos fala, nessa conversa, sobre sua trajetória na PUC-SP, o início de seu interesse pela semiótica, as relações entre este campo e a comunicação, bem como considerações a respeito da tecnologia e da humanidade.



ENTREVISTADORA: O Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP é resultado de um processo que se iniciou em 1970, com a fundação do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária. Essa história se confunde um pouco com a sua, já que nesse percurso de 50 anos você sempre esteve envolvida com o COS. Quais são as memórias mais marcantes do início dessa trajetória?


LUCIA SANTAELLA: Realmente, minha vida está ligada indissoluvelmente ao COS. Quando o programa de Teoria Literária abriu na PUC-SP, foi uma iniciativa pioneira. Três programas de pós-graduação começaram naquela época: o de Linguística com a professora Celani (Maria Antonieta Alba Celani); o de Educação com o professor Joel Martins, com o qual eu trabalhei quando era ainda bem jovem, na PUC-SP; e o de Teoria Literária, aberto pela professora Lucrécia Ferrara.

Quando terminei a graduação recebi uma bolsa do British Council e me vi em plena Inglaterra, na época dos Beatles, minissaia, e eu voltei com a cabeça completamente atordoada, mas tomei uma decisão assim que cheguei: tomei a decisão de estudar.

Comecei entrando nos dois programas de Pós-Graduação [Teoria Literária e Linguística]. Fiz algumas disciplinas no programa de Linguística porque a Antonieta Celani tinha sido minha professora – inclusive eu já trabalhava na Cultura Inglesa. Eu teria que escolher um deles, e escolhi o de Teoria Literária porque não me via a vida inteira ensinando os alunos a falar inglês. Achei isso um pouco maçante, mas enfim, depende da vocação. Segui na Teoria Literária, e na época eu já era professora na PUC-SP, pois havia sido professora do Sedes Sapientiae. Eu me senti muito insegura, ainda com uma formação absolutamente precária ao continuar sendo professora sem ter um doutorado, e por isso entrei no doutorado direto. Fiz 18 disciplinas. Eu costumo dizer, quando os alunos reclamam muito, que escrevi meu doutorado dando 52 aulas por semana. Na época não se sonhava com bolsa de estudos, porém evidentemente eu não tinha que pagar porque era professora da PUC-SP.

Comecei a ser professora da PUC-SP em 1968, então são décadas! Eu estava fazendo um depoimento outro dia sobre os 75 anos da PUC-SP, e comecei a me recordar daquele tempo quando entrei na PUC-SP com 17 anos. O que mais me marcou naqueles anos, e depois nos anos que se seguiram, é mesmo esse desejo pelo conhecimento. Aliás, Deleuze diz que o conhecimento é uma máquina movida pelo desejo, e eu não tenho a menor dúvida disso.

O primeiro doutorado do programa de Pós-Graduação em Teoria Literária, orientado pela Lucrécia Ferrara, foi o meu. Foi um momento de quase celebração, e fui aluna de professores inacreditáveis – fui aluna de Décio Pignatari, fiz 5 disciplinas com ele. Fui aluna do Haroldo de Campos, que eu persegui. Mesmo quando eu já era coordenadora e colega dele, continuava assistindo aquelas aulas absurdamente inspiradoras e fascinantes do Haroldo de Campos. Ele preparava cada aula com capricho e trazia todas as novidades intelectuais da Europa. Fui aluna também da Leyla Perrone-Moisés, uma grande professora, grande especialista em Barthes já naquela época; e também do Willi Bolle. Depois eles foram para a USP. Então daqueles primeiros anos essas são as lembranças principais.

Tem uma outra coisa interessante para falar: eu defendi a tese grávida. Eu estava de 5 meses, mas tive uma ameaça de aborto e quando isso acontece a mulher vira uma espécie, sabe? O animal feminino fica tão forte que, para você ter uma ideia, fui defender minha tese e lá estavam Antonio Candido, João Alexandre Barbosa, Mary Kato. Eu nem li a tese para defendê-la pois para mim o mais importante era conservar aquele filho. Enfim, isso são lembranças que ficam na vida da gente para sempre.


ENTREVISTADORA: Elas se mesclam também. É importante o que acontece na nossa vida e na nossa pesquisa. As duas questões estão muito imbricadas, a gente não tem a pesquisa separada da nossa vida pessoal.


LUCIA SANTAELLA: Completamente verdadeiro, é isso mesmo.


ENTREVISTADORA: Você falou um pouco de como era o programa ali no começo, sobre as bolsas que não existiam e que você dava mais de 50 horas-aula por semana, algo diferente do que a gente tem hoje. Nessa jornada de 50 anos quais foram as maiores mudanças na comunicação? O que permanece do início do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica para o que é hoje? Como você enxerga esse percurso?


LUCIA SANTAELLA: Então, eu fui aluna e, em 1978, fui incorporada ao corpo docente. Nesse momento em que eu fiquei colega dos meus ex-professores foi exatamente quando a Teoria Literária se converteu em Comunicação e Semiótica. Na época também não existia essa imensa burocracia que agora existe, ter que passar por uma série de trâmites. Como o programa era muito respeitado por conta do corpo docente, acho que passamos assim sem grandes dramas. Eu participei de todas as reuniões, e nessa época já estava completamente envolvida com a semiótica.

Eu ouvi a palavra “semiótica” pela primeira vez na minha vida em 1971, em uma reunião do British Council, e aí falei “o que será isso?”. Aquilo despertou minha curiosidade, e eu comecei a perseguir esse tema. Na minha tese de doutorado eu já entrava em Peirce, também trabalhava com Chomsky e tinha feito toda uma pesquisa também em Greimas, Hjelmslev, então já estava enfronhada na semiótica. Eu acho que essa é a marca registrada, para falar como o pessoal da publicidade fala: é o DNA do nosso programa. É uma comunicação que se estrutura, se organiza, a partir de um ponto de vista da semiótica. Isso é fundamental.

O que mudou da comunicação? A comunicação eu acho que é a área de conhecimento, o campo, para falar como Pierre Bourdieu – o campo e não a área, ou determinar um objeto previamente, isso é equivocado, mas ela é um campo – e como campo de estudo evolui numa velocidade estonteante, porque a comunicação depende das tecnologias que são utilizadas para os processos comunicativos. Aí vem toda aquela sequenciação com a qual eu gosto de trabalhar, que eu chamo de eras culturais: oralidade, escrita, era Gutemberg, a era da reprodutibilidade. São eras em que a comunicação vai se transformando, e hoje nós estamos assim, no vórtice de transformações profundas no universo da comunicação, com a comunicação digital, redes digitais, e agora monitoradas pela inteligência artificial.


ENTREVISTADORA: Você falou um pouco do seu início do conhecimento com a semiótica, em 1971. Foi aí que surgiu o interesse pela semiótica peirciana? Para quais direções essa sua pesquisa na semiótica peirciana te levou?


LUCIA SANTAELLA: Para dizer a verdade, eu não comecei com a semiótica perciana. No meu doutorado trabalhei muito com os livros do Greimas da época, porque estava trabalhando na poética de Manuel Bandeira, com o elemento lexical, então a semiótica greimasiana era importante. Mas como eu queria colocar esse problema lexical em um movimento de transformação da obra, aí é que entrou o Peirce, porque a noção do interpretante em Peirce é uma noção dinâmica, que vai se desenvolvendo no tempo, se desenrolando no tempo, em um processo intertextual, metalinguístico. Mas eu me apaixonei pelo Peirce, e nem foi nas aulas do Décio Pignatari. Foi em um trecho do “A estrutura ausente”, do Umberto Eco, onde ele explica as três tríades de uma maneira assim, tão inspiradora. Eu estava com problemas na época, estava em busca de uma compreensão mais ontológica, filosófica, e a hora que li aquele trecho do Umberto Eco eu falei “é aqui que eu vou encontrar...”. Fui na casa do Décio – eu lembro até da roupa que eu estava vestindo – cheguei na casa dele ali em Perdizes e ele me emprestou as partes dos “Collected Papers” que ele achava que eu devia começar a estudar. Eu tirei xerox, que agora é proibido, e passei seis meses estudando aquilo como se fosse sânscrito. O Peirce, para quem começa, é muito complicado, é um outro jeito de pensar, é um outro jeito de escrever, é uma outra lógica. Durante seis meses, toda noite, virou até uma espécie de vício, mas no fim eu acho que consegui compreender.


ENTREVISTADORA: Nessa época ainda não tinha sido publicado aquele primeiro livro dele que saiu aqui no Brasil, “Semiótica e Filosofia”, que são alguns textos dos “Collected Papers”?


LUCIA SANTAELLA: Sim, já havia sido publicado, aquele livro que é da Cultrix, publicado em 1973. Porém, como é um livro editado por lógicos, não tinha nada da teoria semiótica, apenas dos modos de raciocínio. Mas todas as traduções de Peirce no Brasil são extremamente fragmentárias, tiradas dos “Collected Papers” que eu chamo de Frankenstein, porque é tudo fragmentado. Para você tirar tem que fazer um trabalho arqueológico de meses, anos, para você conseguir perceber qual é a continuidade e o desenvolvimento do pensamento de Peirce. Isso não vem pronto, é uma aventura.


ENTREVISTADORA: Realmente, porque são muitos textos que são reunidos nos “Collected Papers” e nesses livros são apenas alguns trechos, até cartas que ele escreve. Trazem algo que é importante para conhecermos o universo de Peirce, mas para conhecer esse todo é um pouco mais complexo.


LUCIA SANTAELLA: Eu tive sorte que nos anos 1980 eu comecei a frequentar a Universidade de Indiana, onde eu fiz cursos com os maiores especialistas em Peirce. Então aquilo foi ajudando a organizar as leituras prévias que eu tinha feito. Foram muitos estágios, eu fui doze vezes até 1994, mas daí começou minha fase alemã. Tenho saudades até hoje dos campi universitários dos EUA, na Alemanha não é igual. Aqueles campi são um convite, é um tamanho bem-estar que eu cantava na rua sozinha.


ENTREVISTADORA: Foi um percurso de descoberta total. Você fala dos grandes teóricos da semiótica, mas hoje você é uma dessas grandes teóricas da semiótica, principalmente da semiótica peirciana. É uma referência mundial nos estudos de Peirce, e muitos jovens pesquisadores começam a ter o contato com o Peirce através dos seus livros. Eu fui uma dessas alunas, quando estudava Artes Visuais na UFMS. A professora Eluiza, apresentando semiótica para a gente, indicou aquele livrinho “O que é semiótica”, a partir disso eu comecei a estudar semiótica e estou aqui hoje. Então posso dizer que você foi uma dessas grandes teóricas para mim.


LUCIA SANTAELLA: Aquele livro parece um rótulo, eu virei um vinho, ao invés de “Lucia Santaella” é “Semiótica”. Eu escrevi muitos livros sobre Peirce, primeiro para me ajudar na atividade – comecei a dar Peirce em pós-graduação antes de entrar como professora do COS, porque em 1976 eu já havia sido convidada para coordenar um programa de pós-graduação na Universidade Metodista de Piracicaba, e lá eu dava aulas. Então eu falei: “Preciso escrever, para facilitar a minha vida e a dos alunos”. Aí tem muitos livros que eu acho que escrevi para mim mesma, porque queria avançar no conhecimento e não há maneira melhor para avançar no conhecimento do que escrever. Porque é a hora que a gente escreve, como dizia o Décio Pignatari, quando você tem que agarrar o touro à unha. E as dúvidas quando elas aparecem, você está escrevendo, você cisca aqui, pega ali, pega o outro autor, “será que eu estou certa?”. Então é uma atividade onde realmente a aprendizagem se complementa de uma maneira muito maior do que dando uma aula, ou em trocas, ou em leituras. Escrever é o caminho.


ENTREVISTADORA: A gente descobre muito isso no processo da pesquisa. Falando nesses seus livros, tem um deles que tem muito a ver com o nosso programa que é o “Comunicação e Semiótica”, publicado em 2004, onde você e Winfried Noth trazem um panorama desses dois campos e traçam suas relações. De modo sumário, quais são os aspectos fundamentais que tornam pertinente esse vínculo entre a comunicação e a semiótica?


LUCIA SANTAELLA: Nós escrevemos esse livro para o programa, no sentido de esclarecer, porque quem está de fora, que nunca passou pelo programa, vê a relação entre comunicação e semiótica como um pouco estranha. Tem uns até que recusam valorizar, ou mesmo reconhecer, essa relação importante. Nós organizamos o livro, você deve conhecer, da seguinte maneira: o que há de semiótica na comunicação e o que há de comunicação na semiótica, buscando autores para que as coisas se amarrassem.

Mas eu parto de um axioma e eu acredito nele até alguém me provar que ele está errado, até agora ninguém me provou. Ele começa com Umberto Eco: não há cultura sem comunicação e não há comunicação sem signos. Nem as formigas, nem as abelhas se comunicam sem signos, as abelhas dançam. Então não há comunicação sem signos. Eu complemento Umberto Eco: não há signo sem que ele se corporifique em algum meio de transmissão. Eu gosto muito, inclusive [tem a ver com] o livro que eu estou agora finalizando, estou na reta final, que é “Do pós-humano ao neo-humano: a sétima revolução cognitiva dos sapiens”. As eras culturais correspondem a revoluções cognitivas, que estão materializadas culturalmente e trazem todas as consequências políticas, econômicas e psíquicas. Nesse aspecto eu não abro mão – a condição humana, de saída, é a condição de linguagem, é aquilo que constitui o humano, o resto vem tudo por acréscimo.


ENTREVISTADORA: Você estuda muito estas questões da tecnologia também, pesquisou e escreveu sobre isso muitas vezes. Como você enxerga as relações da sociedade hoje com a tecnologia? De que forma os aparelhos, como os smartphones, esses objetos inteligentes e também as redes sociais digitais influenciam no modo com que nos comunicamos e olhamos para o mundo?


LUCIA SANTAELLA: Pelo que eu falei antes, não há separação entre as tecnologias e as linguagens, é justamente sobre isso que daqui a pouco eu vou dar uma palestra no IEA da USP. A condição atual é uma condição vertiginosa. Desde que o mundo digital começou a se instalar, o mundo não apenas, como diz o Bauman, ficou líquido, a cultura é líquida, mas a cultura está em um ritmo de transformação que nos intimida, nos atemoriza, porque a tecnologia está avançando em uma velocidade muito maior do que a capacidade de cada um de nós, individual, de compreender. Inclusive fica muito difícil alcançar com o pensamento essa hipercomplexidade do mundo atual.

Isso começou quando eu fui convidada pelo DAAD, em 1987, para a Universidade Livre de Berlin. Eu fiz minha pesquisa lá e fiquei muito impressionada principalmente porque a pesquisadora que me convidou, em 1987, tinha um computador na sala. Eu fiquei com inveja e pensei “chegando em São Paulo eu vou comprar um computador”, porque eu vi o quanto que ela ganhava sobre quem ficava bordando com lápis e papel, como eu. Eu não escrevia, eu bordava. E daí comecei a perceber naquele estágio, em Berlin – quando ainda tinha o muro, era uma cidade pós-moderna avant la lettre – eu falei: “daqui pra frente eu vou estudar”, porque isso vai trazer uma transformação profunda para a área de comunicação. E escrevi naquela época, uma época em que ninguém falava em mídias, já havia escrito e publicado, em 1992, o livrinho “Cultura das mídias”. Depois ele foi expandido e recentemente foi republicado em e-book, que é uma coisa que eu vou fazer: os livros que eu acho que valem a pena, em vez de reeditar em papel eu vou reeditar em e-book. Afinal o mundo digital está aí, não adianta a gente brigar com ele.


ENTREVISTADORA: Você consegue acompanhar as mudanças? Porque, como você disse, elas são muito rápidas. Recentemente fizemos as lives no Instagram do COS, por exemplo, tem acontecido muito essas interações on-line. Como é, durante esse tempo todo, acompanhar essas mudanças rápidas da tecnologia?


LUCIA SANTAELLA: Vou te falar, não acompanho sozinha. Eu tive a sorte de ter orientandos e pessoas que me procuram para pós-doc com temas bastante avançados, eu assumo o risco de acompanhar e aprendo com elas. Aliás, se eu puser as especializações que eu orientei, já vai quase chegando a trezentas [orientações] que defenderam. Aprendi muito. Eu acho que na vida intelectual a gente não pode temer correr risco. Se erra, corrige, não é? O humano erra e é do erro que vem toda a capacidade criativa do ser humano, senão ele ficaria estacionado onde ele está.

Mas hoje eu devo confessar que está muito difícil conseguir acompanhar. Esse último livro que eu organizei, “Blockchain”, para mim foi uma loucura, porque eu sou completamente analfabeta em matemática. Quando eu vejo equações na minha frente o cérebro trava, então foi um grande esforço. Em 2019 eu organizei um livro sobre redes sociais, redes digitais e inteligência artificial, que também é um tema complicadíssimo, pois envolve entender como funcionam redes neurais, deep learning, machine learning, e são todos algoritmos de matemática. Mas a gente faz um esforço. E por outro lado eu trago todas essas questões para o lado do humano, pois o que me interessa não é a tecnologia em si, mas o que ela faz conosco, em que medida o próprio ser humano se transforma. Aliás, uma frase de Marx, pra mim a frase mais lapidar de Marx, é essa: transformando a natureza o ser humano transforma a sua própria natureza, não há uma essência humana, nós somos seres em transformação. É difícil aceitar porque nos tira de um certo conforto – “é assim e assim será”. Não, acabou essa história. Como será é imprevisível, incerto.

Ainda por cima a humanidade foi pega por essa pandemia, que não tem humilhação maior para o ser humano do que... bem, nem quero entrar porque daí a gente acaba caindo nos lamentos e lamúrias dos tremores políticos que a gente vive. Hoje eu comecei a olhar um vídeo dessa CPI – eu estou na Alemanha, essa é minha casa da Alemanha, aliás eu só consegui entrar neste país porque eu tenho uma certidão de casamento com um alemão, senão brasileiro não entra – mas eu parei porque me deu vontade de chorar. Aqui na distância parece que as coisas tocam a gente mais profundamente, é muito triste. Mas enfim, esperança na nossa posição de educadores é algo que não podemos perder. Eu ando encantada, desde o ano passado, com a maneira como os jovens têm reagido. Eu dou muitas aulas, dou aula nas especializações, na ECA, coordeno uma especialização há 16 anos, monto outros cursos de extensão, que daí eu passo para alguns professores, e eu fico encantada. Você sabe, você foi minha aluna. A gente abre um [grupo de] WhatsApp e eu fico seguindo, é uma coisa impressionante, daqui para frente a gente tem que lembrar desse poder que os jovens têm para a aprendizagem colaborativa, que eu acho que se intensificou nesta pandemia. Claro que, embora todas as contradições sobre as quais eu vou falar daqui a pouquinho lá na outra aula, nós temos que render graças ao fato de que podemos ter e pudemos ter e continuando a ter essa condição de diálogo. Porque nessa experiência também, da pandemia, as minhas aulas mudaram, elas são mais dialogantes, elas ficaram realmente invertidas. Você foi minha aluna, você sabe como era, e quando eu dava aula [antes da pandemia] não era assim, porque acho que eu ficava entregue à minha paixão pela fala, e não dava tanta vazão, a não ser alguma pergunta aqui e ali. Mesmo que a gente volte no presencial, acho que nós ficamos marcados por essa experiência, de qualquer maneira ela tem que nos marcar. Eu acho que nós temos que mudar, é um artigo que eu escrevi, [a partir de] aquele livro do Sloterdijk, que você tem que mudar sua vida.


ENTREVISTADORA: Eu queria só fazer uma última pergunta, porque a gente está aqui realizando o 30º Encontro da Compós, e tem tudo a ver com isso que você está falando, com essas mudanças. O encontro está acontecendo mesmo que a gente não possa se encontrar pessoalmente, como ele sempre foi, então desde o ano passado ele acontece on-line. Esse ano ele vem com essa temática “Sobre constelações e observatórios”, que nos possibilita pensar a Comunicação sob o ponto de vista poético. Como você compreende esse tema no momento que vivemos hoje com a pandemia?


LUCIA SANTAELLA: Você falar em Compós e poético corre no meu sangue. As pessoas não sabem, porque nós somos animais sem memória, mas eu fui fundadora da Compós. Nós fizemos reuniões durante três, quatro meses, de um pequeno grupo que fundou a Compós, e eu fui da primeira diretoria da Compós. Inclusive houve um ano, que agora eu não consigo me lembrar, nos anos 1990, que a Compós foi realizada na PUC-SP [VII Encontro da Compós, em 1998], foi um encontro enorme, maravilhoso.

Quando você fala da poética, a poética para mim é inseparável da comunicação. A comunicação sem a arte e sem a poesia vira comunicação trivial, importante claro, mas ela se renova [na poética]. Tanto é que eu escrevi um livrinho, que vendeu quase tanto como “O que é semiótica”, chamado “Por que as comunicações e as artes estão convergindo?”, um livrinho pequeno. Aquilo tudo estava tão na minha cabeça – eu tinha dado um curso lá na Universidade Federal do Espírito Santo – que escrevi esse livro em uns dez, quinze dias, porque já estava todo o material que eu tinha dado o curso. Falei: “eu não posso deixar agora essas ideias que eu desenvolvi”. Mas está lá, é inseparável, a comunicação e as artes hoje convergiram, uma não existe sem a outra. A comunicação se alimenta de grandes, por exemplo: como é possível falar de tecnologia na comunicação ignorando os games? Também vou dar uma palestra sobre o assunto, e criei o grupo de games no COS.

Eu acho que essa é a chave, a gente vai criando as coisas, entregando para o outro e o outro que toque para frente. Como diz o Chico Buarque – é assim que eu vejo meus livros também, eu não volto para um livro que eu já escrevi, eu quero escrever outro – o Chico diz assim: faço minhas canções, ponho no mundo e elas caem na vida. Então, a vida daquilo que a gente faz não fica presa em nós, esse eu acho que é o caminho. Obrigada!


ENTREVISTADORA: Eu que agradeço, Lucia Santaella. É sempre um prazer enorme conversar com você, ouvir suas histórias, seus pontos de vista. Deixo esse espaço final aberto, se você quiser fazer alguma consideração final.


LUCIA SANTAELLA: Quero dar os parabéns ao COS, celebrando 50 anos, quando a PUC-SP celebra 75 anos, olha que lindo! É um casamento. Eu não vou falar quantos anos eu estou celebrando, o que eu posso dizer é que eu estou na PUC-SP desde que eu tinha 17 anos. Eu costumava dizer que ela é uma espécie de minha segunda casa, só que com a pandemia foi a PUC-SP que entrou na minha casa! É isso, um beijo.


Texto e entrevista: Ma. Luma Santos de Oliveira