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Veja os textos que preparamos para você!

O CAPITALISMO E AS PRISÕES DO TRABALHO E DA SOLIDÃO 

Afonso Silvestre

 

Sombras no Paraíso (Varjoja paratiisissa)

Finlândia, 1986

Direção: Aki Kaurismäki

Roteiro: Aki Kaurismäki

 

 

 

O primeiro filme da que veio a ser chamada Trilogia do Proletariado do finlandês Aki Kaurismäki, traz uma reflexão sobre a vida de trabalhadores da base da pirâmide, no caso, que catam lixo ou atendem no caixa. Dois invisíveis que se envolvem e, a partir das suas angústias, o diretor faz sua reflexão sobre aqueles que não se veem na sociedade, os simplesmente úteis. Embora seu trabalho seja essencial, são tantos que se podem descartar. O argumento trata das vidas que se cruzam, de um lixeiro e uma caixa de supermercado. Desde o início, é fácil perceber a conexão com o mundo ocidental, com um jazz permeando as cenas de homens recolhendo lixo. E, nada sutilmente, para além do requinte do jazz, a sujeira contida no mundo do trabalho.

O filme traz estranheza para o espectador desavisado. As relações são contidas, distantes, os diálogos lacônicos, quase ausentes, e a estranheza se reforça pela fotografia e composição dos tipos entre os personagens. O filme se passa e foi feito em 1986, Guerra Fria, numa zona de interseção entre dois lados. Trata do proletariado numa nação capitalista, porém, com muito mais proximidade com a União Soviética que com o Ocidente. Isso por conta das particularidades da Finlândia. No momento do seu reconhecimento como nação (1917), teve tratamento mais respeitoso dos soviéticos que dos capitalistas suecos, dos quais se libertaram. Ali, na distante Finlândia, vermelhos eram social democratas, apoiados pelos soviéticos, contra a outra opção, os brancos, a extrema direita apoiada pelo governo alemão durante o período entreguerras.

Isto ocorreu porque a Finlândia livrou-se do domínio sueco no mesmo momento em que a Rússia fazia sua Revolução. A Finlândia é um país da zona cinzenta, lugar de pessoas distantes, solitárias, cujas relações são, majoritariamente, de trabalho. Pessoas que planejam um futuro sem saber que estão à beira da morte. Há preconceito (“você ainda está saindo com o homem do lixo?”), consumismo (cinema ocidental representado por filme do Sergio Leone), a presença constante do rock’n roll, muitos bens de consumo. Mas uma música tradicional finlandesa ocorre num momento de angústia e solidão da personagem.

Diante do laconismo dos personagens, o diretor abusa das figuras de retórica. Após a morte de um lixeiro enquanto trabalha, um cão negro atravessa um terreno lamacento sob uma ponte. Um símbolo de luto, ou a difícil jornada que um proletário atravessa entre a vida e a morte, vencendo a lama da marginalização da sua classe, etnia e outras características, como ser lixeiro. Mais que isso, em tradições finlandesas, o cachorro negro é associado à morte, ao sobrenatural, àquilo que não se pode saber, como as fatalidades. O filme expõe questões de desigualdade social e preconceito exacerbadas pela tensão durante a Guerra Fria.

Uma peripécia do diretor, cobrir lacunas deixadas pela ausência de diálogos com sons diegéticos de espaço e atos mecânicos de personagens. Homens que trabalham juntos há anos mas não trocam palavras, não sabem um da vida do outro. Até o momento em que o colega precisa propor um negócio. Ao redor deles e suas relações pragmáticas, uma Finlândia fria, nevoenta em azul e cinza granulados. Porém, essa história lenta vai mudar quando o lixeiro conhece a caixa do supermercado. As cores não serão mais frias. Ao redor, na grande loja, são quentes, tudo é amarelo e vermelho, luz. Mas a realidade continua fria lá fora. E vai permanecer porque é assim que as coisas são. O próprio casal são dois solitários. As relações são tensas antes mesmo de ocorrerem. Porque no interior de cada um existe a presença de uma história de condição social que não permite muito desenvolvimento para uma história de amor, de afetividades. Embora seja uma história de amor entre dois personagens isolados e solitários como a própria nação finlandesa.


OZU E(M) KAURISMAKI


Leonardo Araújo


No último Dezembro (2023) completaram 120 anos de nascimento de Yasujiro Ozu, que faleceu em 1963, na mesma data de seu nascimento (12/12). No documentário Conversando com Ozu, realizado em 1993 por Kogi Tanaka, em memória dos 90 anos do cineasta japonês, Aki Kaurismäki participa como um dos cineastas admiradores dessa obra que contabiliza mais de 50 longas-metragens. Ele aparece em uma fábrica, de frente para uma foto de Ozu, sentado ao lado de uma cafeteira vermelha, associada pelas imagens e pelas palavras a uma chaleira vermelha que Kaurismaki parece obcecado após ter visto-a em filmes de Ozu. Ele ressalta no cineasta japonês a capacidade de ir à essência da vida humana sem necessitar do recurso da violência. Ele atribui a Ozu a razão de seu abandono da pretensão de ter uma carreira literária, após assistir, em 1976, Era uma vez em Tóquio (1953) e decidir fazer filmes até o fim da vida, para provar a ele mesmo que nunca chegará ao nível do seu mestre.

Em sua participação, Kaurismäki declara que escolheu ser filmado numa fábrica velha por ser um homem que tende a olhar para o passado, acreditando que que Ozu possuía tendência similar. O cineasta finlandês também prenuncia que no seu túmulo estará escrito o título de um dos filmes de Ozu: ''Eu nasci, mas...''.  A importância do passado parece ainda mais ressaltada com o último filme de Kaurismäki, na medida em que é possível ver a mesma forma e os mesmos temas dos anos 80, quando iniciara sua carreira. Essa repetição sistemática – uma herança ozuniana incontestável – se nota mesmo nos detalhes cotidianos do enredo. Folhas de outono não teria um de seus motes narrativos principais se os personagens usassem celulares.

Não me parece, no entanto, que a relação com o passado seja a mesma de Ozu, sobretudo como Kaurismäki a descreve. Obviamente Ozu tem em mente as tradições culturais japonesas, mas sempre esteve muito atento a seu presente, não travado no passado, mas se propondo a pensar a passagem do tempo. Contudo, não é essa ideia que se nota em títulos do diretor de filmes como Nuvens passageiras, Sombras no paraíso e Folhas de outono, impregnados da noção de fugacidade?

         É curioso o destaque que Kaurismäki dá para ausência de violência no cinema de Ozu, sendo este um ponto fácil de encontrar em outros autores, e sendo esse talvez o traço contido em Kaurismäki que menos lembra Ozu, pois se aquele não chega a fazer dela um espetáculo, não a omite completamente, o embate físico e o sangue se apresentam nesses filmes, sobretudo no mundo masculino.

O ponto que parece mais comum em relação a Ozu, desprendido dos parágrafos anteriores, é a ideia de manutenção da forma: a repetição. Nisto Kaurismäki parece um verdadeiro herdeiro de Ozu, na repetição temática e formal que produzem filmes muito parecidos, sem se esgotarem. Da forma, destacam-se as atuações contidas, tendendo a desdramatização, ainda mais mecânicas que em Ozu, talvez tendendo mais para Robert Bresson, companheiro do cineasta japonês no que tange ao chamado estilo transcendental (conforme Paul Schrader[i]). Outra questão é o ritmo, que permanece no mesmo tom ao longo dos filmes - esse ponto em que Deleuze discordará de Schrader a respeito de Ozu [ii] - o de que não há distinção entre tempo forte e fraco - parece ser o caso em Kaurismäki: filmes que se dispõe aos nossos olhos e ouvidos sem variações bruscas. Essa parece ser uma forma de tratar do tema mais caro a esses dois diretores: o cotidiano das pessoas comuns, que vivem a vida com pequenos conflitos, com breves conquistas e constantes derrotas, seguidas de tristes olhares ou singelos sorrisos diante das banalidades e fatalidades da vida.

Mas quando Kaurismäki diz que escolheu um lugar antigo para falar de Ozu, revela outro elemento de seu próprio cinema, no fato de que esse lugar antigo é uma fábrica. O cotidiano filmado por Kaurismäki frequentemente é do proletariado. Seus pequenos conflitos são movidos pela falta de dinheiro, sua apatia parece se confundir com a frieza de trabalhadores e trabalhadoras que buscam um autocongelamento como modo de se anestesiar diante da prisão do mundo do trabalho, diante do tédio imposto por uma vida que rouba o tempo e deixa algumas horas a noite a serem consumidas com um jantar diante da TV ou do rádio velhos, e nos fins de semana - um bar, em que ocorrem os encontros, onde o espaço para Eros irrompe no meio da civilização.

Talvez a ênfase ao mundo do trabalho se apresentasse como a característica marcante de Aki que mais se distanciasse de Yasujiro. Mas seria um erro pensar assim. É o próprio Ozu quem se reconhece como um diretor do “gênero sobre assalariados''[iii] começando por Vida de assalariado, filme perdido de 1929. É certo que no pós-guerra Ozu parece se dedicar mais propriamente à família de classe média, mas o dinheiro permanece como questão. É sobre um filme dessa última fase que Ozu descreve um procedimento que é identificado a seu cinema de modo geral: a repetição desdramatizada do cotidiano. Mas trata-se de uma passagem focada na vida do trabalhador, quando afirma sobre Começo de primavera (1956): '' eu tentei retratar o phátos da vida de um assalariado em uma sociedade submetida à transformação. Eu tentei evitar tudo que fosse dramático, empilhando cenas onde nada acontecia, assim a plateia sentiria a tristeza dessa existência''.[iv]

Ozu estende a importância do trabalho em sua arte ao se considerar, enquanto artista, antes de tudo um trabalhador. Por isso ao falar de seu fazer cinematográfico, se comparou a um fabricante de tofu[v], que toda manhã se levanta para executar a mesma tarefa, com os mesmos objetivos e dedicação, se aprimorando a cada dia.

Kaurismäki poderia se apropriar das duas citações anteriores, com seu rigor e método que parece se repetir a cada filme. É perceptível no cinema do finlandês que mesmo com o efeito da repetição formal na repetição temática, quando se trata de seus enredos, não estão barrados os pequenos prazeres da vida, como fumar um cigarro ou assistir um show de rock, mas também o é com Ozu, em tomar uma dose de saquê ou saborear o aroma do chá verde sobre o arroz. Em ambos os cinemas, a repetição é ambígua. Em sentido mecânico, pode ser vista como parte de um cotidiano fastidioso. Mas a repetição formal, aliada ao minimalismo, possibilita a atenção aos detalhes, a força dos gestos mínimos, como um sorriso ambíguo de Setsuko Hara ou variações de olhar de Kati Outinen, fornecendo breves variações afetivas nas narrativas.

Poder-se-ia dizer também que Kaurismäki tende mais para a comédia. Isso se evidencia em Folhas de outono, uma de suas obras mais divertidas. Mas Ozu também soube produzir comédias, das quais eu poderia destacar aquela que leva um título também ligado precisamente ao último filme de Kaurismaki: Dias de outono.

Mas pensar que Kaurismäki apenas reproduz Ozu não faz o menor sentido a qualquer percepção sensível que se coloque diante das duas obras. Até o momento do presente texto quis apenas destacar pontos de contato nem sempre detectados, seguindo o rastro deixado pela reverência de um ao outro, ao declarar que seus filmes seguem os passos inalcançáveis do diretor de Pai e filha.

Pensando propriamente em Kaurismäki, penso em dois traços singulares que compõem a identidade de seu estilo : a) submeter a série de elementos citados (o ritmo, o tempo, a repetição, o trabalho, a desdramatização, o humor, o cotidiano) ao âmbito do absurdo - tudo parece se encontrar nessa esquisitice que não caminha para o surreal, mas para dentro do que nos é mais familiar, e daí brote um sorriso que mistura identificação e estranhamento; b) a apropriação do contexto geográfico: adentramos no clima frio finlandês, que se harmoniza com os gestos mecânicos e o sentimento de vazio (que no zen de Ozu, se confunde mais com a plenitude). Por vezes o ar gelado parece emoldurar a melancolia e as frustrações da classe trabalhadora.

Em Kaurismäki, o que muitas vezes descongela a imagem é o aparecimento do vermelho, talvez mais presente em seu último longa. Mais pontual em Ozu, mas constante nos filmes coloridos. É a chaleira vermelha que Kaurismäki diz procurar incansavelmente. O calor do chá quente de Ozu, no cinema do finlandês, vem com a fagulha de acalanto nas relações humanas, no amor e na amizade, no companheirismo afetivo que faz-se desvelar a solidariedade de classe, impedindo a morte completa da esperança, permitindo vislumbrar no horizonte a possibilidade de futuros menos sombrios.

 



[i] SCHRADER, Paul. Transcendental style in film: Ozu, Bresson, Dreyer. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1988.

 

[ii] DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007, p.24.

 

[iii] Ozu sobre Vida de assalariado. In: Emoção e Poesia: o cinema de Yasujiro Ozu. Centro Cultural Banco do Brasil, 2010, p.29.

 

[iv] Ozu sobre Começo de Primavera. Emoção e Poesia: o cinema de Yasujiro Ozu. Centro Cultural Banco do Brasil, 2010, p.137.

 

[v] YOSHIDA, Kiju. O anticinema de Yasujiro Ozu. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 33.


FOLHAS DE ESPERANÇA SOPRADAS AO SABOR DOS VENTOS DE OUTONO


Rafael Carvalho

 

Folhas de Outono (Kuolleet lehdet)

Finlândia, 2023

Direção: Aki Kaurismäki

Roteiro: Aki Kaurismäki

 

 

 

Aki Kaurismäki é desses cineastas que moldaram um universo muito próprio em sua filmografia e não arredam o pé. Folhas de Outono é um belo exemplar do estilo afiado do diretor a complementar uma obra que se reconhece de longe. Aqui temos mais uma vez o velho conto dos corações solitários que se amparam enquanto o mundo desmorona, seja em escala mundial – notícias da guerra na Ucrânia são constantemente ouvidas no decorrer da trama –, seja no âmbito pessoal – os dois protagonistas vivem dificuldades de conseguir e segurar seus empregos médios.

 

Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen) se conhecem por acaso em um karaokê, mas demora para que a conexão entre eles se estabeleça – há desencontros e desconfianças no meio do caminho. Kaurismäki não tem pressa em consumar essa relação porque não se trata de suprir uma necessidade imediata, mas antes busca entender a personalidade de cada um, seus caprichos e vontades, enquanto o fosso da solidão dos protagonistas se revela mais nítido ao espectador. No cinema de Kaurismaki, abundam personagens assim melancólicos.

 

Há certas dicotomias presentes nas obras do diretor finlandês que são adoráveis de reencontrar a cada filme. A mais marcante é a frieza do elenco na composição dos personagens, sempre muito econômicos nos seus movimentos e na maneira de falar, herança bressoniana que o cineasta não omite, assim como não esconde o tanto de ternura que escapa do filme, criando um efeito de contraposição muito particular. Se aparentemente as relações humanas são gélidas, no fundo elas se revelam muito mais emocionais à medida que desvendamos os anseios de cada um ali.

 

Esse contraste aparece com evidência também na própria composição visual do filme – algo que já acompanha Kaurismäki à décadas. Os ambientes sombrios são pontuados por objetos de cena e elementos de cores vivas, por vezes pastéis, mas sempre em contraste com a escuridão. Isso já estava presente lá em Sombras do Paraíso, por exemplo, quase 40 anos antes desse seu mais recente filme, ainda que de modo não tão refinado assim, e passou a ser o carimbo visual que torna seus filmes reconhecíveis de longe.

 

Em Folhas de Outono há ainda uma dessincronia curiosa: os personagens acessam informações sobre a atual guerra na Ucrânia através de um rádio antiquíssimo, assim como anotam números de telefone em papeizinhos (ariscos como as folhas das árvores que caem no outono e são levados ao sabor do vento), ligando uns para os outros em velhos aparelhos de telefone ou de orelhões nas ruas. Com isso, o filme cria um paralelo entre passado e presente que parece inserir seu universo narrativo em um entretempo indefinido, deslocado, mas tão palpável e fugidio como o concreto das coisas atuais.

 

E talvez porque esteja lidando com aspectos emocionais mais personalizados nesse pequeno melodrama (ultimamente o diretor tem feito filmes mais políticos, como o tema dos refugiados na Europa que aparecem nos seus dois últimos longas, O Outro Lado da Esperança e O Porto), há aqui uma abertura maior para o humor. As tiradas cômicas do filme são sutis, mas capazes de arrancar boas gargalhadas da plateia ou pequenos sorrisos de cumplicidade diante dos modos inusitados por onde a narrativa caminha. Uma delas acontece na saída do cinema quando o casal resolve assistir a uma inesperada sessão de Os Mortos Não Morrem, filme de zumbis (péssimo por sinal) dirigido por Jim Jarmusch, e os comentários pós sessão não poderiam ser mais inusitados (com os cacoetes da cinefilia). É o tipo de surpresa irreverente que encontramos nos filmes do diretor finlandês.

 

Porém, por trás desse tom chistoso e gozador, Kaurismäki também sedimenta um olhar social para a vida desses pequenos operários, tentando sobreviver numa sociedade de opressões, pontuadas pelas guerras mundo afora, mas também pelas batalhas cotidianas contra a precarização do trabalho e da moradia, o desemprego, contra os vícios e mesmo contra as intransigências pessoais que formatam o comportamento dos indivíduos – Ansa e Holappa são dois bicudos que demoram a aceitar e lidar com as faltas um do outro.

 

Apesar de todos esses conflitos, o cinema de Kaurismäki sempre fez seus personagens – e a nós também – vislumbrarmos alguma dose de esperança em meio ao caos. Há sempre um afago que se encontra no ombro amigo ou nos braços dos amantes. Tais encontros é que ditarão o nível de resiliência necessária para seguir adiante. Quem simboliza essa esperança pode muito bem já estar ao nosso lado.


KAURISMAKI E A VANGUARDA DO COTIDIANO: ENTRE DESILUSÃO E RESILIÊNCIA 


Ian Carvalho


O cineasta

Aki Kaurismaki manteve uma devoção impressionantemente firme à classe trabalhadora e aos desajustados da sociedade ao longo de sua produtiva carreira cinematográfica. Assim como Yasujiro Ozu, um herói querido por ele, retornou repetidamente ao terreno da vida comum do trabalhador e dos párias para extrair um rico espectro de personagens e experiências. O diretor finlandês estabeleceu de maneira muito firme a situação do proletariado como tema principal, permanecendo notavelmente consistente também em estilo. Os filmes de Kaurismaki mapeiam as provações e tribulações de sobreviver no clima severo da sociedade capitalista, acompanhando proscritos mansos e perdedores solidários enquanto fazem o que podem para se manterem vivos e serem felizes. Trabalho e vida amorosa são prioridades-chave em Sombras no Paraíso (1986), o terceiro longa de Kaurismaki, no qual o solitário coletor de lixo Nikander (Matti Pellonpaa, que é uma presença tão familiar e nutritiva no cinema de Kaurismaki quanto Gunnar Bjornstrand ou Erland Josephson no de Ingmar Bergman) desajeitadamente corteja a taciturna caixa de supermercado Ilona (Kati Outinen, que poderia ser considerada a Liv Ullmann de Kaurismaki). Ariel (1988) irresistivelmente transforma a busca por emprego em uma odisséia selvagem e imprevisível, enquanto Nuvens Passageiras (1996) adota uma abordagem mais sóbria em sua estória de um casal corajoso (Outinen e Kari Vaananen) lutando para encontrar novo trabalho em Helsinque. Em La Vie de Boheme (1992), as fantásticas aventuras parisienses de três artistas famintos são confrontadas pelas cruéis realidades da pobreza, fome, problemas com a lei e doenças. Mesmo no “clássico cult” de Kaurismaki, Leningrad Cowboys Go to America (1989), a jornada de uma banda pelos Estados Unidos revela uma paisagem de fazendas, fábricas enfumaçadas e bares cheios de clientes operários.

A forma distinta como o finlandês aborda esses assuntos tornou-se uma marca registrada instantaneamente reconhecível de seu cinema, consistindo em uma preferência por cores vibrantes e espaços meticulosamente organizados, trilhas sonoras compostas de rock, blues, tango e peças clássicas, performances musicais ao vivo, emoções contidas demais de seus atores (muitos dos quais colaboradores regulares), e um senso de humor atípico, resvalando no absurdo. Seu mundo de estranhas figuras comicamente taciturnas e rock 'n' roll inexpressivo lhe rendeu comparações com Jim Jarmusch, um bom amigo dele. Já o senso de artifício e disciplina que ele exerce na elaboração de seus filmes enseja a influência em cineastas como Wes Anderson. Seu domínio estilístico é notável, bem como o de Ozu, Robert Bresson e Roy Andersson.

Com relação ao elo com Jarmusch, ambos os cineastas têm uma propensão para o humor inexpressivo e empregam um estilo de filme minimalista, com uma forte preferência por trilhas sonoras de pop vintage, jazz ou rock. Jarmusch gosta de colocar seus personagens em cenários levemente surrealistas, enquanto as histórias tragicômicas de Kaurismäki – muitas vezes pastiches de film noir, road movies e melodrama – estão enraizadas no mundano. Apesar de essa parecer ser a influência mais proeminente, em todas as comparações, não há substância tão espessa que consiga revelar uma estética compartilhada entre qualquer cineasta e o mestre finlandês. Kaurismäki é sui generis.

A desolação

Há uma grande alegria em descobrir Kaurismäki, como seus personagens: estão sempre vivenciando descobertas. Grande parte da tensão cômica em seus filmes vem da forma inexpressiva como seus protagonistas encaram o problema da existência social. Em seus filmes estamos sempre diante de uma miseranda realidade: o sistema capitalista além de ser sombrio é também extremamente desolador frente às subjetividades humanas. O que torna a desolação intolerável é a perda do eu, da subjetividade e dos desejos, que só podem ser confirmados em sua identidade social com nossos pares.

Sendo assim, dentro da lógica capitalista em que vida e trabalho são inseparáveis, se torna difícil estabelecer uma delimitação clara e segura do sujeito nas condições de seu ofício. O teórico cultural Mark Fisher, em seu livro “Capitalist Realism: Is There No Alternative?” aponta que o capital nos acompanha até nos sonhos. O tempo para de ser linear, torna-se caótico, fragmentado em divisões puntiformes. Na medida em que a produção e a distribuição são reestruturadas, também é reestruturado o sistema nervoso. Para funcionar com eficiência como um componente do modo de produção por demanda, é necessário desenvolver uma capacidade de responder a eventos imprevisíveis, é preciso aprender a viver em condições de total instabilidade, de precariedade. Períodos de trabalho alternam-se com dias de desemprego. De repente, nós nos vemos presos em uma série de empregos de curto prazo, impossibilitado de planejar o futuro e eis a destruição da vida em vida.

Para além da desolação do hilota, do marginalizado, também do trabalhador assalariado, o capitalismo contribui para uma crise de saúde mental, caracterizada por depressão, ansiedade e alienação. A busca incessante pelo sucesso, a competitividade implacável e a constante pressão para consumir geram um sentido de desesperança e impotência entre os indivíduos, mesmo os mais conscientes, os agitadores progressistas, os educadores. Daí mesmo diante de crises econômicas e sociais, a ideologia capitalista continua a dominar nosso pensamento, limitando nossa capacidade de imaginar, buscar e implementar mudanças significativas. Isso também notamos nas narrativas de Kaurismaki, onde personagens mais conscientes, agentes mais ativos ou pessoas muito bondosas são levadas à paralisia por medo e insegurança.

As figuras retratadas pelo mestre do desânimo representam a desilusão do mundo, enquanto simultaneamente buscam reescrever seus próprios destinos. Seja através de planos de fuga ou de vingança, explícitos ou simbólicos, elas evocam um sentimento de esperança, sugerindo que até mesmo os perdedores podem desafiar as normas estabelecidas e transcender as limitações de uma existência em declínio. De maneira única, essas personagens conseguem minar as estruturas do capitalismo ao engajarem-se em uma batalha pessoal, porém politicamente carregada, divergindo das expectativas impostas pelo seu contexto e abrindo caminho para novas e tangíveis possibilidades de vida. Por isso meu Kaurismaki preferido é o otimista!