Conteúdo não-conceitual nas Investigações Lógicas
Daniel Peluso Guilhermino
Recentemente, muitos comentadores têm se dedicado a estabelecer um diálogo entre Husserl e McDowell, utilizando como fio condutor para tanto a ideia de conteúdo conceitual. No interior dessa tendência, muitas análises têm surgido que se utilizam da ideia de conteúdo conceitual como pedra de toque hermenêutica para se compreender a teoria do preenchimento das Investigações Lógicas. O que se pretende, com isso, é dispor de um instrumental analítico mais eficiente para analisar uma antiga imputação de inconsistência à doutrina do preenchimento que Husserl ali apresenta. Embora as raízes dessas possíveis inconsistências remontem à leitura que Heidegger faz da doutrina da intuição categorial, elas só foram explicitamente tematizadas a partir das interpretações sugeridas por comentadores como Dreyfus e Mulligan. Basicamente, trata-se da observação de que a doutrina do preenchimento da 6ª Investigação supõe uma relação de fundação entre intuição simples (schlicht) e categorial que, no fim das contas, mostra-se insustentável. Isso porque – assim prossegue a observação – tal intuição simples já pressupõe a categorial como sua condição, o que acaba por produzir uma concepção paradoxal entre fundante-fundado, tornando a doutrina como um todo ininteligível.
No contexto do diálogo com McDowell, tal inconsistência se deixa decodificar nos seguintes termos: Husserl defende, a um só tempo, uma concepção conceitual e não-conceitual do conteúdo da percepção. O que legitima o emprego dessa terminologia é, em última instância, o conceito husserliano de matéria. A matéria é o momento do ato responsável tanto pela sua direcionalidade quanto pela determinação do sentido do objeto, sendo ela o momento que permanece idêntico na síntese de preenchimento. Ora, se ela é responsável pelo sentido do objeto – sentido este que, nas Investigações Lógicas, possui estrutura proposicional – e se a síntese de preenchimento garante que a matéria do conteúdo perceptivo seja idêntica à matéria signitivo-expressiva, então o conteúdo perceptivo possui estrutura proposicional, ou seja, ele é conceitual. Todavia, a doutrina do preenchimento insiste que a relação de cobertura (Deckung) que identifica matéria intuitiva e matéria signitivo-expressiva é apenas o primeiro passo. O segundo passo, e o mais importante, é o que traz à tona aquilo que confere intuitividade ao ato, a saber, a plenitude (Fülle). Essa plenitude, que não é senão o âmbito das impressões sensíveis, é, manifestamente, não-conceitual. O problema surge, porém, quando Husserl afirma, no §25 da 6ª Investigação, que a plenitude contém uma matéria que lhe é própria. Isso faria da plenitude, a um só tempo, conceitual e não-conceitual, o que torna a concepção das Investigações Lógicas do conteúdo perceptivo um tanto ambígua.
Pretendemos, com essa comunicação, apresentar esse problema e levantar uma hipótese interpretativa que julgamos pertinente para sua abordagem. Essa hipótese é aquela que distingue duas ordens de problema: uma hermenêutica e uma sistemática. A nível hermenêutico, deve ser avaliado se as Investigações Lógicas propõem uma visão conceitualista, não-conceitualista, ou híbrida acerca do conteúdo perceptivo. A nível sistemático, deve ser avaliado se tais visões são internamente consistentes, isto é, se respondem de modo consequente à pergunta que se propõem responder, qual seja, a pergunta pela possibilidade do conhecimento intuitivo. Por fim, pretendemos argumentar a favor da relevância de um estudo dessa natureza tanto para a exegese de Husserl quanto para os debates contemporâneos em filosofia da percepção.