Os estados de coisas a priori segundo Adolf Reinach
João Henrique Garcia Dias
Na filosofia de Kant e em quase toda a produção filosófica que lhe é posterior, diz-se a priori, em primeiro lugar, uma espécie de juízo, tomado ora em acepção puramente lógica — caso em que falamos de uma proposição a priori —, ora em acepção psicológica — caso em que falamos de um ato de juízo cujo conteúdo é uma proposição a priori. Uma proposição a priori pode ser identificada no universo de proposições desde que nela se encontrem universalidade e necessidade — que não se encontram, em sentido rigoroso, num juízo a posteriori.
Adolf Reinach não rejeita a caracterização do a priori a partir da necessidade e da universalidade, tal qual propõe Kant, mas determina, especialmente no artigo “A Interpretação de Kant do Problema de Hume” (1911) e na Introdução de “Os Fundamentos A Priori do Direito Civil” (1913), o sujeito dessa necessidade ou universalidade como sendo principalmente uma espécie de estado de coisas, e não uma espécie de juízo, como poderíamos crer.
Um estado de coisas não é um juízo, mas, antes, o correlato objetivo de um juízo. Alguns juízos têm como correlatos objetivos estados de coisas necessários — isto é, que não podem não ser como são. Ao juízo “sete é maior do que cinco” corresponde objetivamente o estado de coisas ser-sete-maior-do-que-cinco. Que nos demos ou não conta da necessidade de que seja assim, esse estado de coisas é necessariamente. O estado de coisas é a conexão essencial mesma de predicado e sujeito e, portanto, é assim para todos os casos em que estiverem conectados sete e ser-maior-do-que-cinco — daí sua universalidade.
Deste modo, a necessidade e a universalidade do estado de coisas a priori é anterior à do que Kant chama de juízo a priori. Isso porque o que faz um juízo ser a priori é exatamente o fato de ele ter como correlato objetivo um estado de coisas a priori. Um juízo vale necessária e universalmente porque a objetividade que ele intenciona é necessária e universalmente.
Estados de coisas a priori são objetos não apenas de disciplinas como a matemática e a física, mas encontram-se onde quer que haja conexões essenciais de um predicado e de um sujeito, isto é: conexões essenciais de dois itens da esfera objetiva, que, de determinado modo, se ligam sempre um ao outro e não podem não fazê-lo. Encontramos conexões desse tipo até mesmo na moral e no direito — e isso explica porque juízos a priori também são possíveis nessas disciplinas. O cumprimento extingue a promessa: eis um juízo a priori da esfera jurídica, que intenciona um estado de coisas necessário e universal, isto é, que ao cumprimento da promessa sempre e necessariamente se liga a sua extinção.
Além da importância sistemática para a filosofia e para outras disciplinas que tenham como objeto estados de coisas a priori, a doutrina de Reinach tem uma importante contribuição para a história da filosofia: ela sugere um caminho para a reinterpretação das relações de ideias de Hume, como a conexão essencial mesma de um predicado a um sujeito (uma estrutura essencial), o que extrapola o campo das meras proposições analíticas. Essa reinterpretação, por sua vez, exerceu grande influência na recepção de Hume pela fenomenologia, como Husserl reconheceu.