O teor político do juízo estético kantiano em Hannah Arendt
Bruno Nascimento de Abreu
Hannah Arendt, em seu ensaio “A Crise na Cultura”, defende o teor político do juízo de gosto kantiano. Para ela, a arbitrariedade do de gustibus non disputandum est não ofendera o senso estético do filósofo, mas sim seu senso político. Sensível ao caráter público da beleza, Kant viu nos aparentemente arbitrários juízos de gosto e nas discussões acerca dos objetos do prazer a raiz do senso comum humano. No apêndice intitulado “O Julgar”, de seu “A vida do Espírito”, Arendt defende que Kant parte precisamente da singularidade da escolha e da imediatez da sensação no juízo subjetivo, e por isso ele usa analogicamente o termo “gosto” - afinal, os juízos do paladar são os que menos deixam margem para elucubração, aferro-me imediatamente ao que a minha língua me “diz”. Há, porém, uma diferença essencial dentro dos juízos subjetivos que vai determinar a sua comunicabilidade: os juízos dos sentidos, dos quais os juízos do paladar fazem parte, não abrem um objeto pois se referem a meras quantidades de prazer frente a afecção de puras sensações; já os juízos denominados reflexivos atêm o ânimo à forma da representação dada de um objeto sensível. O “objeto” do primeiro é o agradável, e esse tipo de juízo de fato não é disputável. Já o objeto do segundo é a forma de uma aparição, na medida em que congrega certas sensações numa representação: essa forma, se nos causa prazer, é denominada a beleza de algo, e tal afirmação contém uma pretensão ao acordo universal. Não é a universalidade do conceito mas do modo de recepção subjetiva da aparição singular do objeto. Dizer que algo é belo é já pretender que todo outro concorde consigo no próprio sentimento interno. O juízo estético não é de conhecimento, portanto, mas tem uma dupla peculiaridade lógica: 1) universalidade sem conceito na pretensão do acordo e 2) necessidade exemplar, sem argumentos. E essa dupla peculiaridade na referência ao objeto determina um modo de pensar diverso do da ciência ou da moral, que seguem leis de subsunção e se pautam no acordo solitário do sujeito consigo próprio - pelo principio da não-contradição e pelo imperativo categórico. Tal modo diverso de pensamento é denominado por Kant de “pensamento alargado”. É um pensar que, em vez de comparar singularidades quanto a um universal determinado, conserva a singularidade dos objetos na reflexão à procura de uma universalidade. Procedemos através da representação das opiniões possíveis de outros, e assim vamos removendo do fundamento de determinação dos juízos as particularidades que atravancam a concordância. É aí que Arendt vê o teor político do juízo. Essa maneira de pensar remete à faculdade política da phrónesis, como distinta da virtude contemplativa do filósofo, cujas verdades transcendem a polis, e da técnica do artista, que toma tudo como meios para fins e portanto ameaça a durabilidade do mundo. Diz-nos porém que o elemento inédito em Kant é a descoberta dessa faculdade no exame do juízo estético, que ele então denomina “juízo puro”, ou livre, isto é, sem conteúdo. Sua matéria seria a comunicabilidade universal do sentimento interno que se liga à aparição singular de um objeto. É a atividade própria da cultura: atém-nos ao mundo, pelo modo de acolhida das formas de seus objetos, como a unidade da totalidade das coisas singulares que nele devem perdurar. O homem de gosto, na medida em que age sem coerção em seu amor ativo à beleza, faz a ponte entre os homens que produzem o mundo e os homens de ação, ou seja, entre os artistas e os políticos propriamente ditos, que decidem efetivamente como o mundo deve parecer.